VI. Improbidade administrativa por violação aos princípios da administração pública
A Lei n. 8.429/92 conceitua, no seu art. 11, como ato de improbidade aquele que atenta contra os princípios da administração publica qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições.
A improbidade administrativa decorrente da violação dos princípios da administração pública somente se caracteriza se houver dolo na conduta do agente público (dolo genérico), sob pena de se caracterizar responsabilidade objetiva do Estado.
Como citado anteriormente, a forma culposa somente é admitida no ato de improbidade administrativa relacionado à lesão ao erário (art. 10 da Lei n. 8.429/92), não sendo aplicável aos demais tipos (arts. 9º e 11 da Lei n. 8.429/92).
Assim para que seja configurada a prática de atos de improbidade administrativa por violação aos princípios da Administração Públicos é necessária a prova de conduta dolosa, visto que a mera irregularidade ou ilegalidade não caracteriza ato de improbidade.
Marino Pazzaglini Filho ao discorrer sobre a característica residual do art. 11 (violação aos princípios administrativos) ensina que:
“O preceito do art. 11 é residual e só é aplicável quando não configuradas as demais modalidades de improbidade administrativa. Indaga-se, agora: toda violação da legalidade caracteriza improbidade administrativa? Claro que não, pois, se tal premissa fosse verdadeira, qualquer ação ou omissão do agente público contrária à lei seria alçada à categoria de improbidade administrativa, independentemente de sua natureza, gravidade ou disposição de espírito que levou o agente político a praticá-la. A ilegalidade não é sinônimo de improbidade e a ocorrência daquela, por si só, não configura ato de improbidade administrativa.”[18]
Não é admitida a culpa nos atos violadores aos princípios administrativos por ausência de previsão legal (a culpa só é admitida no art.10) e porque a reprovabilidade da conduta somente pode ser imputada a quem a praticou voluntaria e conscientemente.
Assim, o ato considerado desidioso ou desrespeitoso por si só não é suficiente para configurar violação aos princípios da Administração Pública ou de seus deveres ante a ausência de elemento subjetivo na conduta do agente. Sobre o assunto encontra-se o seguintes julgado do Superior Tribunal de Justiça, de lavra do Benedito Gonçalves:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ART. 11 DA LEI N. 8.429/92. CONTRATAÇÃO DIRETA POR DISPENSA DE LICITAÇÃO. FORNECIMENTO DE LANCHES MATINAIS. DOLO NÃO CONFIGURADO. SUCESSIVA RENOVAÇÃO DO CONTRATO MOTIVADA EM FACE DAS PECULIARIDADES DO OBJETO LICITADO.
1. O STJ ostenta entendimento uníssono segundo o qual, para que seja reconhecida a tipificação da conduta do réu como incurso nas previsões da Lei de Improbidade Administrativa, é necessária a demonstração do elemento subjetivo, consubstanciado pelo dolo para os tipos previstos nos artigos 9º e 11 e, ao menos, pela culpa, nas hipóteses do artigo 10. Precedentes: AgRg no AREsp 20.747/SP, Relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 23/11/2011 REsp 1.130.198/RR, Relator Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 15/12/2010; EREsp 479.812/SP, Relator Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Seção, DJe 27/9/2010; REsp 1.149.427/SC, Relator Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 9/9/2010; EREsp 875.163/RS, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, DJe 30/6/2010.
2. In casu, pretende-se a condenação dos réus, ora recorrentes, por suposto desrespeito aos princípios da Administração Pública (art. 11 da Lei de improbidade Administrativa). Sucede que a Corte de apelação não indicou nenhum elemento de prova direto que evidenciasse o agir doloso do administrador, baseando-se o juízo de valor em presunção de dolo, de modo que é mister a reforma do acórdão recorrido.
3. Recursos especiais providos, divergindo do relator, Sr. Ministro Teori Albino Zavaski.
(REsp 1192056/DF, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, Rel. p/ Acórdão Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/04/2012, DJe 26/09/2012)
No que concerne ao elemento subjetivo, o Ministro Luiz Fux, no julgamento do REsp nº 480.387/SP, assinalou que é necessária cautela na análise das regras insertas no art.11, em razão da sua amplitude, sob o risco de condutas meramente irregulares, suscetíveis de correção administrativa, ante a ausência de má-fé do administrador, serem consideradas como atos de improbidade administrativa. Interesse se mostra a reprodução da riquíssima ementa do julgado:
AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. AUSÊNCIA DE MÁ-FÉ DO ADMINISTRADOR PÚBLICO.
1. A Lei 8.429/92 da Ação de Improbidade Administrativa, que explicitou o cânone do art. 37, § 4º da Constituição Federal, teve como escopo impor sanções aos agentes públicos incursos em atos de improbidade nos casos em que: a) importem em enriquecimento ilícito (art.9º); b) que causem prejuízo ao erário público (art. 10); c) que atentem contra os princípios da Administração Pública (art. 11), aqui também compreendida a lesão à moralidade administrativa.
2. Destarte, para que ocorra o ato de improbidade disciplinado pela referida norma, é mister o alcance de um dos bens jurídicos acima referidos e tutelados pela norma especial.
3. No caso específico do art. 11, é necessária cautela na exegese das regras nele insertas, porquanto sua amplitude constitui risco para o intérprete induzindo-o a acoimar de ímprobas condutas meramente irregulares, suscetíveis de correção administrativa, posto ausente a má-fé do administrador público e preservada a moralidade administrativa.
4. In casu, evidencia-se que os atos praticados pelos agentes públicos, consubstanciados na alienação de remédios ao Município vizinho em estado de calamidade, sem prévia autorização legal, descaracterizam a improbidade strictu senso, uma vez que ausentes o enriquecimento ilícito dos agentes municipais e a lesividade ao erário. A conduta fática não configura a improbidade.
5. É que comprovou-se nos autos que os recorrentes, agentes políticos da Prefeitura de Diadema, agiram de boa-fé na tentativa de ajudar o município vizinho de Avanhandava a solucionar um problema iminente de saúde pública gerado por contaminação na merenda escolar, que culminou no surto epidêmico de diarréia na população carente e que o estado de calamidade pública dispensa a prática de formalidades licitatórias que venha a colocar em risco a vida, a integridade das pessoas, bens e serviços, ante o retardamento da prestação necessária.
6. É cediço que a má-fé é premissa do ato ilegal e ímprobo. Consectariamente, a ilegalidade só adquire o status de improbidade quando a conduta antijurídica fere os princípios constitucionais da Administração Pública coadjuvados pela má-fé do administrador. A improbidade administrativa, mais que um ato ilegal, deve traduzir, necessariamente, a falta de boa-fé, a desonestidade, o que não restou comprovado nos autos pelas informações disponíveis no acórdão recorrido, calcadas, inclusive, nas conclusões da Comissão de Inquérito.
7. É de sabença que a alienação da res publica reclama, em regra, licitação, à luz do sistema de imposições legais que condicionam e delimitam a atuação daqueles que lidam com o patrimônio e com o interesse público. Todavia, o art. 17, I, "b", da lei 8.666/93 dispensa a licitação para a alienação de bens da Administração Pública, quando exsurge o interesse público e desde que haja valoração da oportunidade e conveniência, conceitos estes inerentes ao mérito administrativo, insindicável, portanto, pelo Judiciário.
8. In casu, raciocínio diverso esbarraria no art. 196 da Constituição Federal, que assim dispõe: "A saúde é considerada dever do Estado, o qual deverá garanti-la através do desenvolvimento de políticas sociais e econômicas ou pelo acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.", dispositivo que recebeu como influxo os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da promoção do bem comum e erradicação de desigualdades e do direito à vida (art. 5º, caput), cânones que remontam às mais antigas Declarações Universais dos Direitos do Homem.
9. A atuação do Ministério Público, pro populo, nas ações difusas, justificam, ao ângulo da lógica jurídica, sua dispensa em suportar os ônus sucumbenciais, acaso inacolhida a ação civil pública.
10. Consectariamente, o Ministério Público não deve ser condenado ao pagamento de honorários advocatícios e despesas processuais, salvo se comprovada má-fé.
11. Recursos especiais providos. (REsp 480387/SP, julgado em 16/03/2004, DJ 24/05/2004, p. 163)
Pressupondo a necessidade de consciência da ilicitude da conduta pelo administrador, a Lei de Improbidade Administrativa impõe a presença do elemento volitivo doloso para consecução do art. 11, mas será que tal determinação legal abrange também o dolo eventual?
No dolo eventual a vontade do agente prevê a provável consecução do resultado, mas, apesar disto, a conduta é praticada, consentindo o agente com o advento daquele.
Assim, para a configuração do dolo eventual é necessário a demonstração da antevisão do resultado, do fim proibido, baseado nas circunstâncias do fato.
Sobre as características do dolo eventual, antevisão do resultado e aceitação do risco de produzi-lo, bem como sua distinção da culpa consciente, ensina a Ministra Jane Silva, do Superior Tribunal de Justiça:
2. A doutrina penal brasileira instrui que o dolo, conquanto constitua elemento subjetivo do tipo, deve ser compreendido sob dois aspectos: o cognitivo, que traduz o conhecimento dos elementos objetivos do tipo, e o volitivo, configurado pela vontade de realizar a conduta típica.
3. O elemento cognitivo consiste no efetivo conhecimento de que o resultado poderá ocorrer, isto é, o efetivo conhecimento dos elementos integrantes do tipo penal objetivo. A mera possibilidade de conhecimento, o chamado “conhecimento potencial”, não basta para caracterizar o elemento cognitivo do dolo. No elemento volitivo, por seu turno, o agente quer a produção do resultado de forma direta – dolo direto – ou admite a possibilidade de que o resultado sobrevenha – dolo eventual.
4. Considerando que o dolo eventual não é extraído da mente do acusado, mas das circunstâncias do fato, na hipótese em que a denúncia limita-se a narrar o elemento cognitivo do dolo, o seu aspecto de conhecimento pressuposto ao querer (vontade), não há como concluir pela existência do dolo eventual. Para tanto, há que evidenciar como e em que momento o sujeito assumiu o risco de produzir o resultado, isto é, admitiu e aceitou o risco de produzi-lo. Deve-se demonstrar a antevisão do resultado, isto é, a percepção de que é possível causá-lo antes da realização do comportamento." [19].
Considerando que a improbidade trata-se de uma ilegalidade ou irregularidade qualificada pela conduta do agente, verifica-se que é necessária presença do dolo para prática de ato ímprobo.
No dolo eventual, o agente não quer diretamente a realização do tipo, mas aceita como possível ou até provável a produção do resultado, assumindo o risco (art. 18, II, do Código Penal).
A relação de vontade entre o resultado e o agente é o que distingue dolo da culpa, como ensina Cezar Roberto Bitencourt que:
“A consciência e a vontade, que representam a essência do dolo, também devem estar presentes no dolo eventual. Para que este se configure é insuficiente a mera ciência da probabilidade do resultado ou a atuação consciente da possibilidade concreta da produção desse resultado como sustentam os defensores da teoria da probabilidade. É indispensável uma determinação relação de vontade entre o resultado e o agente e é exatamente esse elemento volitivo que distingue dolo ou culpa.”[20]
Assim, não há discussão acerca da existência do dolo, direto ou eventual, como elemento do ato de improbidade administrativa do art. 11, visto que a própria lei impõe a presença do elemento volitivo. A indagação que se faz no presente trabalho é a forma de comprovação do dolo eventual no caso de violação aos princípios administrativos, dada a presente subjetividade de seus conceitos.
Assim, no que concerne à análise do elemento subjetivo é sempre necessária cautela, sob pena de se considerar ímprobas condutas meramente irregulares, suscetíveis de correção administrativa, visto que ausente a má-fé do administrador, sem violação à moralidade administrativa.
Acerca do elemento subjetivo dos atos de improbidade, adverte Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves que:[21]
“No direito moderno, assume ares de dogma a concepção de que não é admissível a imputatio iuris de um resultado danoso sem um fato de ligação psíquica que a ele vincule o agente.
Ressalvados os casos em que a responsabilidade objetiva esteja expressamente prevista no ordenamento jurídico, é insuficiente a mera demonstração do vínculo causal objetivo entre a conduta do agente e o resultado, não será possível demonstrar ‘menosprezo ou descaso pela ordem jurídica e, portanto, a censurabilidade que justifica a punição (malum passionis ob malum actionis).’
O elemento subjetivo que deflagará este elo de encadeamento lógico entre vontade, conduta e resultado, com a consequente demonstração da culpabilidade do agente, poderá apresentar-se sob duas únicas formas: dolo e culpa.
(...)
A Lei nº 8.429/92 agrupou a tipologia dos atos de improbidade em três dispositivos distintos. O art. 9º versa sobre os atos que importam em enriquecimento ilícito, o art. 10 sobre aqueles que causam prejuízo ao erário (rectius: patrimônio público) e o art. 11 sobre os atos que atentam contra os princípios administrativos. Somente o art. 10 se refere ao elemento subjetivo do agente, sendo expresso ao falar em ‘qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa’, enquanto que os dois outros preceitos nada dispõem a respeito.
Partindo-se a premissa de que a responsabilidade objetiva pressupõe normatização expressa nesse sentido, constata-se que: a) a prática de atos de improbidade previstos nos arts. 9º e 11 exige o dolo do agente; b) a tipologia inserido no art. 10 admite que ato seja praticado com dolo ou com culpa; c) o mero vínculo entre a conduta do agente a o resultado do ilícito não é passível de configurar improbidade.
Diz-que os ilícitos previstos nos arts. 9ª e 11 não admitem a culpa em razão de dois fatores. De acordo com o primeiro, a reprovabilidade da conduta somente pode ser imputada àquele que a praticou voluntariamente, almejando o resultado lesivo, enquanto que a punição do descuido ou da falta de atenção pressupõe expressa previsão legal, o que se encontra ausente na hipótese. No que concerne ao segundo, tem-se um fator lógico-sistemático da exclusão, pois tendo sido a culpa prevista unicamente no art. 10, afigura-se evidente que a mens legis é restringi-la a tais hipóteses, excluindo-a das demais.
Insta ressaltar que se trata de ato administrativo que traz em si a presunção de legitimidade, ou seja, presunção de que nasceu em conformidade com as devidas normas legais. Tal característica deflui da própria natureza do ato administrativo, como ato emanado de agente integrante da estrutura do Estado.[22]
A imputação de conduta culposa (ato desidioso) não pode ser elemento caracterizador do significado de assumir o risco no dolo eventual. Aliás para a imputação de dolo eventual na violação dos princípios administrativos, dada a subjetividade de seus conceitos, deve ser conjugada com a análise dos elementos objetivos do art. 9º e 10.
Ressalta-se que nesse estudo examina-se a violação dos princípios administrativos e não aos deveres descritos nos incisos do art.11, porque nesse caso não há dificuldade de interpretação em razão do rol de condutas infracionais descritas (violação aos deveres funcionais). O questionamento cinge-se à conduta que não se encontra elencados nos incisos de I a VII do citado artigo.
Assim, para que seja configurado o dolo eventual no caso do art. 11, as provas carreadas no inquérito e na instrução processual devem demonstrar que houve violação aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência quando da prática de atos de improbidade elencados nos art. 9ª e 10, de forma a evitar que meras irregularidades, sem má-fé do administrador sejam consideradas atos de improbidade.