Resumo: O presente artigo pretende expor brevemente as origens do princípio do Devido Processo Legal e seu desenvolvimento até o presente, bem como comparar suas diferentes aplicações nos sistemas jurídicos romano-germânico, islâmico e de common law.
Abstract: This article aims to expose briefly the origins of the principle of Due Process of Law and its development until today, as well as to compare its different uses in the systems of civil law, common law and Islamic law.
1. Origens e Histórico do Desenvolvimento
O conceito do Princípio do Devido Processo Legal tem origem em 15 de junho de 1215, na Magna Carta das Liberdades inglesa ratificada por rei João, denominado “Sem Terra”. O artigo 39 de tal documento é que traz a primeira referência ao princípio. “Per legemterrae” foi a expressão utilizada, sendo essa a primeira ideia do que hoje é chamado de devido processo legal. Na verdade, o rei inglês só admitiu o teor do documento porque estava sendo pressionado pelos nobres, os quais queriam enfraquecer, com a carta de direitos posta à apreciação, o autoritarismo vivido pelo povo inglês em função da monarquia. Os barões ingleses se juntaram à Igreja, representada pelo Arcebispo de Canterbury, e formaram o Exército de Deus e da Santa Igreja; foi esse o ponto crucial que fez direitos individuais serem assegurados perante o Estado. Ressalta-se, portanto, que o monarca não tinha intenção nenhuma em garantir os direitos dos seus nacionais, e, além disso, os beneficiados dessa atitude foram de forma imediata a minoria, ou seja, os nobres e os membros do clero. Inicialmente, o princípio do devido processo legal era conhecido como “lawofland”, isto é, os direitos naturais que estavam elencados na Carta só poderiam ser restritos pelo Estado através de procedimentos aceitos pela sociedade da Common Law conforme os precedentes, e esses últimos eram obtidos através das decisões reais que informavam o comportamento e as regras daquela comunidade. O relevante em relação à origem inglesa é que o fato histórico teve uma grande repercussão, sendo, por fim, utilizado como parâmetro nas Constituições modernas.
Quando as Colônias da América do Norte decidiram se unir e constituir os Estados Unidos da América, houve a formulação de uma Constituição, todavia, a mesma não foi ratificada por muitos Estados, visto que não existiam disposições expressas sobre os direitos individuais, e isso abria espaço para o autoritarismo estatal. Por isso, os federalistas sugeriram que a Constituição americana fosse ratificada e emendada com assuntos relativos aos direitos reclamados. Desta forma, em 1789, James Madison introduziu uma série de emendas no Congresso, e dez dessas foram transformadas na Bill ofRights. A dificuldade encontrada naquele momento foi a de que os Estados, possuidores de autonomia e Constituições próprias, não estavam dispostos e terem restrições com a declaração de direitos encontrada na Constituição Federal. Tempos depois, em 1868, há a promulgação da Décima Quarta Emenda de ordem nacional, e, então, aconteceu a consagração da cláusula do dueprocessoflaw. O teor dessa emenda sustentava que “no personshallbe... deprivedoflife, libertyorproperty, withoutdueprocessoflaw”, ou seja, “nenhuma pessoa será privada de sua vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal”. A Quinta Emenda à Constituição norte-americana, também é usada como referência do princípio do devido processo legal, o seu conteúdo é o direito de permanecer calado e não se auto-incriminar; ela não trata tão especificamente do que seria a cláusula, mas a data de sua publicação é a utilizada como marco na definição do assunto, que é o ano de 1789.
Vale ressaltar que, embora essas duas passagens sejam as que tenham colocado em evidência a exigência da garantia jurídica em questão, desde as sociedades arcaicas houve a adoção de instrumentos e métodos para o conhecimento e a decisão de determinadas condutas consideradas como transgressoras das regras estabelecidas no âmbito social.
Há diferentes tratados que tratam desse assunto, os quais serviram de base para a positivação do devido processo legal no Estado Democrático de Direito de diversos países. A Declaração Universal dos Direitos Humanos é um exemplo, e traz no seu texto a seguinte recomendação:
Artigo IX. Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado;
Artigo X. Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele;
Artigo XI. 1. Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. 2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.
Não é muito diferente o que a Convenção Americana de Direitos Humanos dispõe em seu inciso 2 do artigo 7: “Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas constituições políticas dos Estados Partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas”. Ainda como limitador do conteúdo da cláusula do devido processo legal está o inteiro teor do artigo 8 dessa mesma convenção supracitada:
1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por um tradutor ou intérprete, caso não compreenda ou não fale a língua do juízo ou tribunal; b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada; c) concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa; d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor; e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio, nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei; f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos; g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada; h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior.
3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza.
4. O acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos.
5. O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça.
Após o conhecimento desses dispositivos, é necessário focar no ordenamento jurídico brasileiro. A doutrina brasileira desde antes de 1988 já entendia reconhecida a cláusula, até mesmo por regras expressas de outros princípios que integram o conteúdo do princípio maior. Contudo, é na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que há a explicitação, mais especificamente o artigo 5º, inciso LIV: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. A ideia de um devido processo legal no Brasil abrange processos judiciais penais, civis e administrativos, mas essa ampla abrangência só foi possível hodiernamente, isto é, foi uma mudança progressiva, incluindo inicialmente somente a jurisdição penal, em seguida a civil, e, por fim, a esfera administrativa.
A cláusula, finalmente, é um pré-requisito para a legitimação de uma possível punição por parte do Estado, sendo necessária a sua observação, e, mais importante ainda, a compreensão do que ela realmente é, o que ela engloba; tentando, assim, evitar possíveis más aplicações em casos concretos.
2. O Princípio do Devido Processo Legal no Direito Comparado
O princípio do Devido Processo Legal, como já vimos, não é único ao sistema jurídico brasileiro, muito pelo contrário, está presente em todas as famílias de sistemas normativos vigentes, desde o Common Law, onde teve sua origem, até a Charia, onde vem se firmando contemporaneamente. Vejamos sua interpretação nos diferentes sistemas jurídicos.
2.1. Common Law
O conceito do devido processo legal tem sua origem e teve sua primeira aparição na Magna Carta de 1215, cujo artigo 39 dizia:
“Nenhum homem livre será capturado, ou levado prisioneiro, ou privado dos bens, ou exilado, ou de qualquer modo destruído, e nunca usaremos da força contra ele, e nunca mandaremos que outros o façam, salvo em processo legal por seus pares ou de acordo com as leis da terra”[1]
O artigo 39 da Magna Carta serviu de inspiração para a edição da quinta e da décima-quarta emendas à Constituição norte-americana, que mencionam o respeito ao devido processo legal pelos governos federal e estadual, respectivamente.
A jurisprudência norte-americana, notadamente pela Suprema Corte, entende que o devido processo legal engloba quatro aspectos: o Devido Processo Procedimental (em processos cíveis e penais), que se estende a todo procedimento de governo que possa acarretar em privação de um indivíduo; o Devido Processo Substantivo, que,em contrapartida, assegura o cidadão contra medidas que extrapolem o poder do Estado; a Invalidade por Vagueza (void for vagueness), que proíbe e invalida normas que sejam excessivamente vagas e impossibilitem a compreensão pelo homem médio; e a Incorporação da Carta de Direitos, que faz vincular não só a administração federal, mas também a dos estados à Carta de Direitos (Bill ofRights), as dez primeiras emendas à Constituição norte-americana.
A interpretação do devido processo legal no Reino Unido é mais restritiva. Apesar de opiniões jurisprudenciais diversas, o entendimento atual é de que, os atos do parlamento britânico são impassíveis de controle jurisdicional, excetuando-se aí, então, o devido processo legal. O sistema jurídico britânico possui outros princípios que visam garantir o equivalente ao devido processo legal americano nas órbitas administrativa e executiva, por exemplo.
Na Austrália, também por ter um governo parlamentarista, o que causa certa mistura entre os poderes legislativo e executivo, a compreensão de devido processo legal é igualmente um tanto limitada. Alguns atos do legislativo não são passíveis de apreciação pelo judiciário, o que pode gerar uma limitação ao devido processo. Não há nenhuma menção constitucional ao devido processo legal e, por isso, a interpretação doutrinária se dá no sentido de compreender o devido processo somente no âmbito judiciário, diferente do que se vê nos EUA e no sistema jurídico brasileiro.
2.2.Sistema Romano-Germânico
O começo da instalação na Europa do conceito de devido processo se deu a partir da Revolução Francesa e em toda a Europa, via de regra, utiliza-se modernamente como base para a doutrina do devido processo legal a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, adotada pelo Conselho da Europa[2] em1950, que contempla, em seu artigo 6º, o “Direito a um processo equitativo”. Tal direito é compreende alguns princípios, como o da celeridade do processo, do contraditório e ampla defesa, do in dubio pro reo, etc.
Apesar da previsão supranacional de tal princípio, algumas constituições europeias possuem também uma citação objetiva ao devido processo, como é o caso da constituição espanhola, em seu artigo 24.2, que menciona o direito a um “processo público célere e com todas as garantias”[3].
No Pacto de San José da Costa Rica concernente aos países americanos, aceito pelo Brasil em 1992, consta a previsão, em seu inciso 2 do artigo 7: “Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas constituições políticas dos Estados Partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas”.
A maioria das constituições dos países americanos de direito romano-germânico possuem previsões ao devido processo legal ou a princípios dele derivados em suas Constituições, como é o caso da Constituição da Argentina, em seu artigo 18:
“Art. 18. Ningún habitante de la Nación puede ser penado sinjuicioprevio fundado enley anterior al hechodelproceso, nijuzgado por comisionesespeciales, o sacado de losjueces designados por laley antes delhecho de la causa [...]”;
Da constituição Chilena, em seu art. 19 Nº 3, que garante a todas as pessoas “a igual proteção da lei no exercício de seus direitos”;
E, é claro, da Constituição da República Federativa do Brasil, que prevê no inciso LIV do art. 5º que “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
2.3. Direito Islâmico
Desde a entrada de todas as nações islâmicas para a Organização das Nações Unidas, as mesmas ficaram sujeitas a vários tratados internacionais sobre direitos humanos, salientando a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A Charia não tem nenhum dispositivo que impeça a entrada desses tratados internacionais no ordenamento jurídico interno dos Estados, entretanto, a aplicabilidade deles varia um tanto dos demais países de tradição romano-germânica ou de common law.
Apesar de algumas diferenças, como, por exemplo, a aplicação automática de sanções para determinados comportamentos, os princípios fundamentais do devido processo legal são, via de regra, seguidos pelo sistema jurídico da Charia. Algumas exceções acontecem em países como Sudão, onde há distorções pelo governo do direito ao devido processo para opressão de minorias étnicas, devido ao histórico de conflitos desde 1983 no país, decorrentes da guerra civil sudanesa.
A progressiva adoção pela lei islâmica do direito ao devido processo não obsta, entretanto, que ainda haja graves ameaças e ofensas a direitos humanos naqueles países, bem como a aplicação da Charia a minorias não islâmicas.
3. Referências
BASSIOUNI, M.C. Sources of Islamic Law, and the Protection of Human Rights in the Islamic Criminal Justice System. Islamic Criminal Justice System, 1982. p. 50.
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EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Convenção para a proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais - Portuguese Version. Council of Europe, 2010. Disponivel em: <http://www.echr.coe.int/NR/rdonlyres/7510566B-AE54-44B9-A163-912EF12B8BA4/0/POR_CONV.pdf>. Acesso em: 23 outubro 2012.
HILHORST, Sean. Use of Force in the Sudan: Between Islamic Law and International Law. Muslim World Journal Of Human Rights, 2008. p. 27-28.
MINISTÈRE DE LA JUSTICE - RÉPUBLIQUE FRANÇAISE. Le droit à un procès équitable. Ministère de la Justice, 2002. Disponivel em: <http://www.justice.gouv.fr/organisation-de-la-justice-10031/les-fondements-et-principes-10032/le-droit-a-un-proces-equitable-10027.html>. Acesso em: 23 outubro 2012.
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THE Magna Carta. Constitution Society, 1992. Disponivel em: <http://www.constitution.org/eng/magnacar.htm>. Acesso em: 22 outubro 2012.
TURBAY JR., Albino Gabriel. Uma introdução ao princípio do devido processo legal: a origem no direito comparado, conceitos, a inserção no sistema constitucional brasileiro e suas formas de aplicação. Âmbito Jurídico. Disponível em: . Acesso em: 28 out. 2012.
VOID for Vagueness. LAW.COM. Disponivel em: <http://dictionary.law.com/Default.aspx?selected=2228>. Acesso em: 22 outubro 2012.
WHAT is the “incorporation” of the Bill of Rights? Rottenstein Law Group, 2010. Disponivel em: <http://www.rotlaw.com/legal-library/what-is-the-incorporation-of-the-bill-of-rights/>. Acesso em: 22 outubro 2012.
Notas
[1]THE Magna Carta.Constitution Society, 1992.Disponivel em: <http://www.constitution.org/eng/magnacar.htm>. Acesso em: 22 outubro 2012
[2] Não confundir com o Conselho da União Europeia. Este somente reafirma, em sua carta de direitos fundamentais, o estabelecido pelo Conselho da Europa.
[3] “Asimismo, todos tienenderechoalJuezordinario predeterminado por laley, a la defensa y a laasistencia de letrado, a ser informados de laacusación formulada contra ellos, a unproceso público sindilacionesindebidas y con todas lasgarantías, a utilizar losmedios de prueba pertinentes para su defensa, a no declarar contra símismos, a no confesarseculpables y a lapresunción de inocencia. La ley regulará los casos en que, por razón de parentesco o de secreto profesional, no se estará obligado a declarar sobre hechospresuntamentedelictivos”. Grifo nosso.