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Da coculpabilidade penal

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Agenda 20/11/2013 às 07:43

6 TEORIAS CONTRÁRIAS A COCULPABILIDADE

6.1 Negação à Teoria da Coculpabilidade

Em que pese a lógica dos argumentos até aqui aduzidos a favor da coculpabilidade, que preconiza a atenuação, ou, em alguns casos, até mesmo a isenção da pena daqueles que acabam por cometer crimes por franca influência pela sua situação socioeconômica e cultural, porque vivem completamente à margem da sociedade, boa parcela da doutrina e praticamente a totalidade da jurisprudência atual se mostra reticente quanto à adoção do princípio.

Dentre os doutrinadores que renegam os argumentos da teoria da coculpabilidade, podemos citar Guilherme de Souza Nucci, que em seu Código Penal Comentado assevera que

não nos parece correta essa visão. Ainda que se possa concluir que o Estado deixa de prestar a devida assistência à sociedade, não é por isso que nasce qualquer justificativa ou amparo para o cometimento de delitos, implicando em fator de atenuação da pena. Aliás, fosse assim, existiriam muitos outros ‘coculpáveis’ na rota do criminoso, como os pais que não cuidaram bem do filho ou o colega na escola que humilhou o companheiro de sala, tudo a fundamentar a aplicação da atenuante do art. 66 do Código Penal, vulgarizando-a. Embora os exemplos narrados possam ser considerados como fatores de impulso ao agente para a prática de uma infração penal qualquer, na realidade, em última análise, prevalece a sua própria vontade, não se podendo contemplar tais circunstâncias como suficientemente relevantes para aplicar a atenuação.[30]

Contudo, em que pese o brilhantismo do renomado autor e magistrado, não andou bem em comparar o Estado com outros organismos do corpo social. Isto porque o Estado, ao contrário dos demais, avocou para si a responsabilidade de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais”, conforme preconiza o art. 3º, III da Constituição da República.

Deste compromisso Constitucional decorre a corresponsabilização do Estado quando descumpre seu objetivo fundamental a tal ponto que acaba por influenciar na própria autodeterminação do cidadão marginalizado que comete um delito.

Uma outra parcela da doutrina vislumbra um outro argumento, visando rechaçar o princípio da coculpabilidade. Segundo alguns doutrinadores, a coculpabilidade partiria de pressupostos falaciosos, qual seja, de que criminalidade decorre da pobreza e, em última análise ao próprio sistema capitalista, ao imputar o motivo pela prática do delito a situação econômica do autor. Assim:

Lógico que a estrutura capitalista, atualmente renovada pelo discurso único da globalização neoliberal, produz miséria econômica e social. No entanto, estabelecer relações assimétricas e deterministas entre o modelo econômico e os índices de criminalidade é retomar, desde outro local, método (etiológico) tão caro aos seguidores de Ferri, Lombroso e Garófalo.[31]

Destarte, os argumentos falaciosos da coculpabilidade  consistiriam em: “a) permanecia extremamente vinculada à ideia de que a criminalidade é efeito da pobreza; b) subestimava ou relevava a seletividade criminalizante, o que pressuporia aceitar o funcionamento igualitário e até natural do sistema penal”[32].

Contudo, também não assiste razão a estes argumentos. Isto porque a coculpabilidade não visa premiar, conceder um salvo conduto, ou atenuar a sanção penal de “pessoas pobres”.

Absolutamente, a coculpabilidade visa mais do que isso. A teoria foi construída para proteger aqueles que vivem em situação de vulnerabilidade. Este conceito de vulnerabilidade é muito mais largo que a simples análise da situação econômica.

Entende-se por situação de vulnerabilidade aquela na qual a pessoa se coloca quando o sistema penal a seleciona e a utiliza como instrumento para justificar seu próprio exercício de poder, pois é o grau de vulnerabilidade ao sistema penal que decide a seleção e não o cometimento do injusto, porque há muitíssimos mais injustos penais iguais e piores que deixam o sistema penal indiferente.[33]

Vale dizer que, apesar de eventual discussão de cunho etimológico, esta culpabilidade pela vulnerabilidade e coculpabilidade são conceitos sinônimos, conforme conclui Grégore Moura:

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Entendemos ser a co-culpabilidade sinônimo de culpabilidade pela vulnerabilidade, visto que a inadimplência do Estado, ou seja, a co-culpabilidade é que leva o agente a ser mais vulnerável ao poder punitivo. Além disso, o conceito de culpabilidade não deve ser aplicado apenas aos mais vulneráveis, já que deve ser considerado como terceiro elemento do conceito analítico de crime tanto para os mais vulneráveis, quanto para aqueles que não se encontram nesta situação.[34]

Destarte, em que pese o brilhantismo dos argumentos contrários a coculpabilidade, a aplicação do princípio não prescinde de verificar-se todo o arcabouço social do autor do delito, não se reduzindo unicamente à situação econômico/financeira, tendo por finalidade alargar o debate da dogmática acerca do alcance das causas atenuante, ou mesmo exculpantes.

6.2 Coculpabilidade às Avessas

A chamada coculpabilidade às avessas, mais que uma construção teórica, é uma constatação da praxe adotada pelo ordenamento jurídico pátrio.

Como visto, a coculpabilidade defende a atenuação ou até mesmo a extinção da pena daqueles que praticam crimes em decorrência do estreitamento de sua autodeterminação em virtude de sua situação de vulnerabilidade perante a sociedade e o sistema penal, vivendo à margem da sociedade.

Esta atenuação ou mesmo extinção da pena, ainda que não positivada, é defendida por boa parte da doutrina.

Contudo, o que se observa ou analisar a legislação brasileira é a existência de um mens legis contrário à coculpabilidade, que pode ser designado por “coculpabilidade às avessas”. Segundo Grégore Moura, a coculpabilidade às avessas pode se manifestar com “a tipificação de condutas dirigidas a pessoas marginalizadas, ou aplicando penas mais brandas aos detentores do poder econômicos, ou ainda como fator de diminuição e também aumento da reprovação social e penal”[35].

Um dos exemplos mais claros desta coculpabilidade às avessas é a tipificação, na Lei de Contravenções Penais (Decreto Lei nº 3.688/41) de condutas tais como a mendicância (art. 60 da LCP, hoje revogado pela Lei 11.983/2009) e a vadiagem.

A tipificação de tais “condutas” demonstra de forma límpida a existência de uma coculpabilidade às avessas, tendo em conta que se dirige a um publico alvo, qual seja, justamente os marginalizados e excluídos do convívio em sociedade.

Portanto, “conclui-se, assim, que a criminalização da mendicância e da vadiagem, além de ser resquício da odiosa culpabilidade do autor, é expresso reconhecimento da incapacidade do Estado em prover as necessidades de sua população.”[36]

Outra vertente da “coculpabilidade às avessas” pode-se vislumbrar no que diz respeito aos crimes contra a ordem tributária. Nestes delitos a reparação do dano consubstancia-se em causa de extinção da punibilidade, com fulcro no art. 168-A, §2º do Código Penal.

A sinecura da lei em relação aos detentores do poderio econômico é notória. Isto porque os crimes contra a ordem tributária também possuem público alvo definidos, ou seja, em regra são cometidos pelas classes mais abastadas. Daí se denota a preferência do legislador pela classe dominante, da qual faz parte.

Nos crime comuns a reparação do dano gera uma diminuição de pena, seja como causa geral de diminuição de pena (art. 16 do CP), seja como causa atenuante (art. 65, III, “b”, do CP).

Já nos crimes contra a ordem tributária, a reparação do dano gera outra benesse, com previsão da extinção da punibilidade com o pagamento do tributo devido.

Vale destacar que é notória a falta de coerência e unidade no ordenamento jurídico, que, com tais previsões, “propaga a discriminação social e econômica mediante a discriminação legal em afronta direta a igualdade material”[37], perpetuando, na prática, o que se denomina “coculpabilidade às avessas”.


7 CONCLUSÃO

O presente trabalho visou a analisar a existência de uma corresponsabilidade do Estado e da sociedade na diminuição da autodeterminação de cidadãos marginalizados quando da prática de delitos.

Isto porque, na moderna dogmática penal, com a evolução da teoria do delito, a necessidade da pena e o juízo de reprovabilidade devem ser individualizados e pormenorizados, para se concluir qual a real parcela de culpa e a necessidade da pena para o autor do fato delituoso, ao ponto de que se a pena não for necessária sequer deve ser aplicada.

O próprio Estado elencou para si, como objetivo fundamental, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais”, é o chamado princípio da igualdade material.

Quando o Estado descumpre seu objetivo fundamental, não proporcionando a todos as mesmas condições, chegando ao ponto de deixar vulneráveis ao sistema penal repressivo determinadas situações deve arcar com parcela de culpa pela infração ao ordenamento jurídico.

Conforme demonstrado, o princípio da coculpabilidade possui status de princípio constitucional implícito, decorrente do próprio princípio da igualdade material e da individualização da pena, se constituindo em verdadeiro instrumento de efetivação da individualização da pena.

A criação e aplicação do princípio da coculpabilidade se faz necessária ante a total falência do Direito Penal em cumprir sua missão precípua na sociedade, qual seja, exercer o controle social.

Contudo, como o Direito Penal é imposto pela classe dominante, que é quem efetivamente cria os tipos penais e todo o sistema de aplicação das norma de Direito Penal, esta classe seleciona os destinatários deste ramo do ordenamento jurídico.

Essa seleção arbitrária dos rcebedores das normas penais gera uma flagrante deslegitimação deste, pois a aplicação da pena, ao contrário de ressocializar, serve para estigmatizar o cidadão que comete um delito. Esta deslegitimação decorre também da chamada cifra oculta do crime, que consiste em delitos que jamais chegam ao conhecimento da autoridade policial, quem dirá do poder judiciário.

Assim, a criação doutrinária da coculpabilidade vem ao socorro do direito penal, junto com outros princípios, tentar resgatar e novamente legitimar o direito penal, para que este não permaneça como um mero instrumento de segregação entre as classes dominantes e dominadas.

Também restou demonstrado que, apesar da força da construção doutrinária da coculpabilidade, na prática os tribunais não vem aceitando e aplicando o aludido princípio, principalmente sob o argumento de que este não se encontra positivado no ordenamento jurídico.

A doutrina então sugere a positivação da coculpabilidade, apresentando, na esteira de Grégore Moura, três opções para a positivação.

A primeira seria acrescentar a coculpabilidade nas circunstâncias judiciais do art. 59 do CP, a exemplo do que se tem nos Diplomas Repressivos de Argentina e Peru.

A segunda opção seria acrescentar a coculpabilidade como uma causa atenuante expressa.

Já a terceira opção seria tornar a coculpabilidade uma causa geral de diminuição de pena, prevista no art. 29 do Código Penal. Além disso, para casos mais extremados, como no exemplo dos mendigos que vivem sob o viaduto, trazido por Rogério Greco, o coculpabilidade deveria acarretar na extinção da punibilidade. Esta opção, embora mais ousada, é a mais condizente com a realidade social vivida hoje em nosso país.

Assim, a coculpabilidade deveria ser prevista como causa geral de diminuição de pena e, em casos extremos, causa extintiva da punibilidade.

Em que pese a força lógica e sociológica dos argumentos que defendem a coculpabilidade, parcela de doutrina nega esta corresponsabilidade do Estado, conforme visto. Ao que parece estes insignes autores se olvidam de que o próprio estado chamou para si a responsabilidade de promover a erradicação da pobreza e marginalização, além de negar a força do meio social na formação do indivíduo.

Além de tudo isto, foi visto que, na prática, as Leis do Brasil estabelecem uma “coculpabilidade às avessas”, tipificando conduta que apenas “pessoas pobres” podem cometer, tais como mendicância e vadiagem, e garantindo benesses aos crimes que apenas pessoas abastadas cometem, como a extinção da punibilidade nos crimes contra a ordem tributária, quando do pagamento do tributo.

Analisando tudo isto, o que se percebe é que a coculpabilidade do Estado existe sim, e não pode ser negada, se fazendo imperioso um esforço para ver sua positivação e uma mudança de mentalidade do legislador penal e dos tribunais pátrios, visando resgatar o próprio sistema penal como fator social, para que o Direito Penal deixe de ser um sistema de controle de classe e passe a cumprir sua função social.


REFERÊNCIAS

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GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal - Parte Geral Volume I, 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011.

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MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 24. Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2009.

MOURA, Grégore Moreira de. Do princípio da co-culpabilidade no direito penal. Rio de Janeiro: Impetus 2006.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 10 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

PASCHOAL, Janaína Conceição. Constitucionalização, criminalização e direito penal mínimo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

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ROXIN, Claus. Derecho Penal – Parte General. Tomo I, Civitas, Madrid, 1997.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro – Parte Geral. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas. Tradução: Vania Romano. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 268.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BOLDRINI, Luan Campos. Da coculpabilidade penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3794, 20 nov. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25909. Acesso em: 22 nov. 2024.

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