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A caracterização do uso indevido de informação privilegiada à luz da Lei nº 10.303/2001

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Agenda 01/02/2002 às 01:00

5. Meios de prova nos casos de insider trading

A prova na Justiça depende de dois aspectos: objetivo, que é o meio pelo qual se demonstra a existência ou a inexistência do fato; e subjetivo, que é a convicção do próprio juiz. A prova é tão importante para o processo que, sem ela, este não poderia subsistir: qui probare non potest nihil habet (quem não pode provar nada tem). Entretanto, há casos em que a prova não tem como ser composta por documentos escritos, ou por uma confissão. Especialmente no insider trading a prova se dá por meio de indícios, que irão conduzir a uma presunção.

O indício é o ponto de partida; já a presunção são conseqüências deduzidas de um fato conhecido, não destinado a funcionar como prova, para chegar a um fato desconhecido. Como explica Moacyr Amaral Santos, em seu livro "Prova judiciária no cível e comercial", "o indício é o fato conhecido do qual, em virtude do princípio da causalidade, se induz o fato desconhecido, ao qual se atribui a função de causa ou efeito em relação ao fato conhecido".

No curso do inquérito e processo administrativo instaurado pela CVM serão aceitas todas as provas admitidas em direito (art. 12. da Res. 454/77 – BACEN). E os Códigos Civil e de Processo Civil autorizam a presunção como meio de prova. No Código Civil temos o art. 136. que dispõe que:

"Art. 136. - Os atos jurídicos, a que se não impõe forma especial, poderão provar-se mediante:

I - confissão;

II - atos processados em juízo;

III - documentos públicos ou particulares;

IV - testemunhas;

V - presunção;

VI - exames e vistorias;

VII - arbitramento." (grifo nosso)

Já no Código de Processo Civil, 3 artigos autorizam o uso de presunção como meio de prova:

"Art. 131. - O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que Ihe formaram o convencimento."

"Art. 332. - Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa."

"Art. 335. - Em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial."

O uso da presunção, ainda que válido para que se possa comprovar um ato observado no mercado, mas sem documento que o comprove, é bem mais nocivo para o réu. Isso porque o agente que, por exemplo, possui cargo no conselho de administração de uma empresa e aplica em bolsa nas ações dessa mesma empresa é forte candidato a acusado de insider trading. Mesmo que ele tenha aplicado no mercado sem informações obtidas por sua função no conselho, mas somente com base nos conhecimento dele - resultante de estudos avançados do mercado de valores mobiliários -, diante dos indícios contra ele e do nexo de causalidade que esses indícios possuem com o fato dele obter lucro no mercado, o agente poderia facilmente ser acusado de haver se utilizado de informações privilegiadas para obter vantagem indevida. E com certeza seria demasiado penoso ao agente demonstrar o contrário.

A responsabilidade do agente pode ser entendida como objetiva – quando a única coisa necessária para condená-lo é o nexo de causalidade entre o dano verificado e uma conduta antijurídica do agente – ou subjetiva – quando além do nexo de causalidade é necessário que se apure se houve culpa ou dolo por parte do agente. Nos casos de insider trading essa discussão sobre qual é a responsabilidade tomada como base não me parece vital, uma vez que em todos os casos há uma presunção de culpa dada pelo dever de informar. De qualquer forma, observa-se que no caso do insider trading o mais importante é o nexo de causalidade, que se baseará em indícios. Deve ser observado também que nesses casos é invertido o ônus da prova: não cabe ao órgão acusador provar a responsabilidade do insider, e sim ao insider provar a ausência de sua responsabilidade administrativa, civil ou criminal.

Por isso é tão vital que aquele que, por sua função, é enquadrado pela Lei n.º 6.385/76 e pela Lei n.º 6.404/76 como passível de obter informação privilegiada em uma determinada empresa deve manter-se afastado da compra, pelo menos direta, dos papéis dessa empresa negociados no mercado.


6. Casos já ocorridos e julgados pela CVM de insider trading

Ainda que até a promulgação da "Nova Lei das S.A." (que alterou também a Lei da CVM) os casos de insider trading não eram considerados como crime, a CVM sempre os averiguou mediante processo administrativo, e nos casos mais graves remetia ao Ministério Público para que fossem tomadas as medidas legais, como já foi exposto.

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Nos casos de inquérito para a averiguação de uso de informação privilegiada encontramos 4 defesas mais comumente utilizadas pelos acusados:

  1. o acusado tenta provar que, ainda que fosse uma das pessoas da administração da companhia, não tinha acesso à informação privilegiada;

  2. as pessoas que compraram ou venderam ações no período objeto da acusação da CVM não tiveram prejuízo real com a atuação do insider no mercado;

  3. o acusado tenta provar que suas negociações no mercado não objetivavam lucro ou prejuízo, uma vez que ele tinha a necessidade urgente de se desfazer das ações para atender compromissos financeiros;

  4. o acusado é um participante ativo do mercado de capitais, negociando rotineiramente inclusive com as ações da companhia, e não faria sentido ele parar de negociar só porque é um insider.

O interessante ao se observar os casos já ocorridos é averiguar o entendimento do órgão julgador quanto ao assunto. A CVM já se manifestou afirmando que publicará novas Instruções mudando a regulamentação em vigor de forma a se adaptar às novas regras da Lei das S.A., reavaliando inclusive a Instrução CVM n.º 31, que trata do fornecimento de informações privilegiadas. Porém ao se analisar inquéritos administrativos já julgados, pode-se obter uma boa perspectiva de qual é o entendimento da CVM acerca do assunto e os rumos que ela provavelmente tomará.

No famoso caso da empresa Supergasbrás, Inquérito CVM n.º 14/80, temos uma exposição de argumentos muito interessante por parte do acusado e o afastamento desses mesmos argumentos pela CVM. A Supergasbrás comunicou em 31/10/78 à BVRJ o fato relevante relativo à venda de 2 prédios à IBM, o que gerou um lucro 2 vezes e meia superior ao lucro operacional da cia. Só que no início de 1978 houve uma inusitada movimentação com as ações da companhia, o que fez com que as ações, até então de pouca liquidez, tivessem seu preço disparado, chegando a um patamar tal que não havia mais como subir quando foi divulgado o fato relevante. A CVM entendeu que houve um vazamento de informação e ainda que outras pessoas, além do acusado que é membro do Conselho de Administração da Supergasbrás, também tenham comprado ações no período, supostamente de posse da mesma informação, elas não foram arroladas no processo administrativo por não serem administradores da empresa vendedora do imóvel. (isso foi alterado com a Instrução CVM n.º 31/84, que estipulou que o insider trading também "aplica-se a quem quer que tenha conhecimento de informação referente a ato ou fato relevante, sabendo que se trata de informação privilegiada ainda não divulgada ao mercado.") O acusado argumentou que: ele era contra a venda do imóvel e achava que essa venda depreciaria a imagem da empresa; ele investiu nas ações da companhia seguindo recomendações de um expert no assunto; ele voltou a operar na bolsa depois da notificação do fato relevante, comprando ações ao preço que as vendeu; a cotação subiu antes da divulgação da informação e se a informação vazou, causando essa subida na cotação, ela perdeu o caráter de privilegiada. A CVM derruba todos esses argumentos, alegando que se a informação vazou, é bem provável que tenha sido através do acusado, ele mesmo um comprador das ações da empresa. Além disso o bem tutelado pela CVM "é a confiabilidade do mercado de ações e o acionista minoritário, vítima, muitas vezes, da falta de escrúpulo do administrador ganancioso", e com isso não importa se a cotação subiu antes ou depois da divulgação do fato relevante, uma vez que a caracterização do ilícito – "relação de causalidade entre o conhecimento da informação pelo administrador e sua iniciativa de comprar e vender valores mobiliários de emissão da sociedade" com intenção de obter vantagem patrimonial dessa operação - ocorreu claramente. Assim, além de aplicação de multa a CVM estipula que a SMI deverá cientificar os vendedores das ações compradas pelo acusado no período apontado do conteúdo da decisão do inquérito, para que, se quiserem, fazerem valer seus direitos perante o Poder Judiciário.

Outro interessante caso é o Inquérito CVM n.º 29/82. A BVRJ remeteu à CVM relatório relativo a operações com ações ON da White Martins S.A. entre 02 e 31.03.81, onde se constatou a atuação de membro do Conselho de Administração e da diretoria entre os compradores em dias anteriores à divulgação de fato relevante ao mercado – que era a apuração de elevados lucros da companhia no corrente exercício social. O membro do Conselho argumentou que: não houve uso de informação relevante nem obtenção de vantagem; ele era um investidor habitual dos papéis da companhia e todos os anos adquiria papéis dela; ele comprou quando o mercado se tornou vendedor e mesmo após a divulgação dos resultados continuou adquirindo ações da companhia; a informação tida pela CVM como privilegiada já era de seu conhecimento desde o início do ano, mas isso não o fez operar naquele período; sua participação no capital social era insignificante (0,04%). O diretor argumentou que: ele só tomou conhecimento da informação com a publicação dos resultados da companhia, não lhe cabendo deliberar sobre destinação de lucros, aumento de capital, etc (atribuições do Conselho de Administração); a companhia já demonstrava publicamente seu bom desempenho financeiro, não sendo isso uma informação privilegiada; a compra de ações da companhia foi resultado de análise da conjuntura econômica e não de conhecimento desigual de informações da companhia; ele não se desfez das ações que comprou e abriu seu sigilo bancário para comprovar sua argumentação. A CVM reconheceu a qualidade das argumentações, aceitando algumas e refutando outras. Um entendimento da CVM é que o prejuízo exigido pelo ilícito de insider trading não precisa ser diretamente ao vendedor (acionista minoritário), bastando que ele seja potencial, ou seja, o fato do vendedor não saber da informação privilegiada já caracteriza o prejuízo potencial; o fato do vendedor declarar não se sentir prejudicado só afasta a possibilidade de que ele busque perdas e danos, mas o prejuízo objetivo já foi materializado. Esse entendimento, porém, não é unânime, o que leva alguns diretores da CVM a votar pela absolvição dos 2 acusados. A participação no capital social da cia também foi considerada irrelevante pela CVM. O argumento de que o acusado é um investidor habitual, ainda que tenha gerado admiração por parte da CVM, não convenceu seus diretores. O que gerou a absolvição do diretor da companhia foi o argumento dele de que, por não ser do Conselho de Administração, não possuía conhecimento das deliberações desse órgão. O que se nota nesse caso é uma divergência até mesmo dentro da CVM quanto à caracterização do ilícito de insider trading. Em todo caso, duas opiniões de membros da CVM valem a pena ser destacados: o Presidente Herculano Borges da Fonseca em seu voto expõe que nos casos de insider o que interessa não é o subjetivismo, já que o "fato objetivo a que o órgão público deve se ater é a operação de compra e venda de ações que, com base em informações privilegiadas, gera lucros." O relator Diretor Paulo de Tarso Medeiros ao explicar o porquê do argumento de coincidência da compra de ações e da ocorrência de fato relevante ter sido refutado diz que "coincidências podem ocorrer, daí o cuidado que os participantes do mercado têm que ter em evitar situações de aparente conflito de interesse. É quase impossível o julgador conhecer a motivação do investidor. Tenta, quando muito, deduzi-la de um comportamento. O melhor antídoto continua sendo, entretanto, a limitação consciente de sua atuação no mercado."


7. Contradição entre o crime de insider trading e a Instrução CVM n.º 302/99

Não fica claro na legislação pertinente quem são as pessoas que naturalmente obtém informações privilegiadas devido a suas funções dentro da companhia. No começo desse trabalho já foram delimitadas as pessoas nas Leis n.º 6404/76 e 6385/76 que são passíveis de obter informações privilegiadas – administradores, sendo que essa responsabilidade dos administradores aplica-se a conselheiros e diretores - ; membros de quaisquer órgãos, criados pelo estatuto, com funções técnicas ou destinados a aconselhar os administradores; subordinados ou terceiros de confiança das pessoas relacionadas nos itens anteriores; membros do Conselho Fiscal e acionistas controladores (com a nova lei, também os minoritários).

Isso engloba praticamente todos os membros da companhia, o que não permite uma visão clara da questão.

Fazendo-se uma analogia, observa-se que na Instrução CVM n.º 302/99 há um artigo que, ainda que não tenha sido elaborado com o intuito de evitar o insider trading, pode ser aplicado a ele.

"Art. 86. O fundo não pode deter mais de dez por cento de seu patrimônio líquido em títulos ou valores mobiliários de emissão do administrador ou de empresas ligadas, vedada a aquisição de ações de emissão do administrador.

§1º - …………………………………………………………………………………………

§ 2º Considera-se empresa ligada aquela em que o administrador do fundo ou o gestor da carteira, seus controladores, administradores ou respectivos cônjuges, companheiros ou parentes, até o segundo grau, participem em percentagem superior a dez por cento do capital social, direta ou indiretamente, individualmente ou em conjunto, ou na qual ocupem cargo de administração."

Esse dispositivo permite que o administrador de um fundo compre valores ou títulos de uma empresa ligada a ele até o limite de 10%. Sendo o administrador ou gestor do fundo também controlador ou administrador de uma empresa ele obtém informações privilegiadas dessa empresa decorrente de sua função. E quando através do fundo ele compra títulos e valores dessa empresa ele está usando informações privilegiadas para auferir vantagem, o que caracteriza o crime de insider trading. Só que esse tipo de operação está amparada legalmente, até certo ponto, pela Instrução CVM n.º 302/99, uma vez que o artigo 86 permite que o fundo possua até 10% de seu patrimônio líquido nessa situação.

Com isso observa-se uma contradição na legislação. Não deveriam haver brechas para o crime de insider trading, portanto uma das duas legislações deveria ser alterada. Ou se admite que o crime de insider trading só se caracteriza ao se manipular um determinado número de ações no mercado – o que soa inverossímil -, ou se revoga o dispositivo da Instrução n.º 302/99 que está em contradição.


Bibliografia

ALMEIDA, Ricardo Jose De, BUENO, Artur Franco e BRAGA, Régis Fernando De Ribeiro. IV SEMEAD - Teste sobre a Eficiência Informacional do Mercado Brasileiro em Relação ao Anúncio ou Divulgação de Fusões/Aquisições no Período entre maio de 1995 e janeiro de 1998, outubro de 1999;

EIZIRIK, Nelson. Insider Trading e Responsabilidade Civil de Administrador de Companhia Aberta. Revista de Direito Mercantil, São Paulo: nº 50, pp.42-56, abr./jun. 1983;

LIMA, Osmar Brina Corrêa. Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedade Anônima;

MÜSSNICH, Francisco A.M. A Utilização Desleal de Informações Privilegiadas – Insider Trading – no Brasil e nos Estados Unidos. Revista de Direito Mercantil. São Paulo: n° 34, pp.31-51, abr.- jun. 1979;

PARENTE, Norma Jonssen. Aspectos Jurídicos do Insider Trading. Superintendência Jurídica da CVM, junho de 1978;

SANTOS, Moacyr Amaral. Prova Judiciária no Cível e no Criminal.

Sobre a autora
Denise Figueiredo de Paula Gomes

acadêmica da Faculdade Nacional de Direito – UFRJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Denise Figueiredo Paula. A caracterização do uso indevido de informação privilegiada à luz da Lei nº 10.303/2001. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. -516, 1 fev. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2600. Acesso em: 21 nov. 2024.

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