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A estrutura da Organização das Nações Unidas e seus desafios contemporâneos:

reforma institucional e proteção de direitos humanos

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Agenda 06/02/2014 às 10:38

IV-  Conclusões: Desafios contemporâneos (reforma institucional e proteção de direitos humanos)

Diante da definição estrutural das Nações Unidas e de seu organograma sistêmico, cabe concluir o artigo mediante a discussão de seu papel no enfrentamento dos desafios contemporâneos. Este debate abarcará dois temas bem amplos, o pleito pela reforma institucional e a forma utilizada pela organização para remediar as reiteras e generalizadas violações de direitos humanos pelo mundo.

A principal demanda por mudanças gira em torno de uma alteração tanto em aspectos jurídicos quanto em políticos da Carta, documento datado de 1945, que ainda reflete a configuração daquele contexto. A discussão mais produtiva concentra-se nos poderes excessivos atribuídos ao seu órgão de cúpula.

Em relação ao vetor político, muito se discute sobre a hierarquia liderada pelo Conselho de Segurança e a impotência de outros órgãos mais democráticos, como a Assembleia Geral (que engloba como membros todos os signatários da Carta) ou mesmo o Secretariado Geral (cujo Secretário é eleito pelos membros). Temas de maior capilaridade e relevância como direitos humanos, meio ambiente e desenvolvimento econômico e social são preteridos em favor da ênfase desproporcional dada à segurança militar coletiva. As decisões mais determinantes são tomadas por um órgão executivo, altamente discriminatório e pouco representativo. A distinção interna do Conselho de Segurança entre membros permanentes e rotativos aflora o condomínio segregacionista de poder, pois reflete a dominância dos países vencedores da Segunda Guerra Mundial, composição que não representa mais a atual balança de poder no cenário internacional.

No tocante ao prisma jurídico, verifica-se a desigual distribuição de competências e poderes dentro da organização. Os assuntos mais relevantes relativos ao escopo principal, a garantia da paz e da segurança internacional, são exclusivos de um órgão executivo, sobre cujas decisões não há qualquer controle de legalidade. As resoluções do Conselho de Segurança são obrigatórias e vinculam as nações independentemente de sua vontade em cumpri-la ou aceitá-la. Esse procedimento de deliberação é viciado por um poder jurídico exclusivo que os membros permanentes detêm no quórum de aprovação, o veto jurídico[34] (previsto no artigo 27.3, da Carta da ONU), que garante a imposição da vontade de Estados Unidos, Reino Unido, França, China e Rússia nos assuntos considerados de maior relevância para a segurança coletiva. Esta prerrogativa é frequentemente utilizada de forma abusiva, pois seu exercício reflete a predominância do interesse nacional de cada Estado detentor na discussão.

Teóricos voltados à defesa dos valores democráticos e os outros Estados, prejudicados por esta configuração seletiva do poder, identificam e, obviamente, criticam esta discrepância, propondo reformas à instituição, sobretudo, no topo de sua estrutura piramidal. O principal argumento é a função pública internacional exercida pela ONU, a qual deveria ser pautada por princípios oriundos do constitucionalismo liberal. Neste sentido, diversas alternativas já foram levantadas. Desde a década de 1990, as propostas começaram a ganhar força. Inicialmente, aumentou-se o direito de voz dos países não membros nas sessões. Em 1997, o projeto pioneiro conhecido como Razali previa a ampliação do Conselho de Segurança para 24 assentos, sendo cinco dos nove novos membros eleitos pela Assembleia Geral para ocupar novas cinco cadeiras permanentes, sem mencionar a ampliação do direito de veto. Em 2003, um Grupo de Notáveis foi convocado para repensar a ordem internacional, ante a celebração dos 60 anos da organização em 2005. Deste trabalho surgiram duas alternativas que continuavam a não tocar na polêmica ampliação do poder de veto dos membros atualmente detentores: a primeira, a proposta A sugeriu o aumento de seis novos assentos permanentes, totalizando 11, enquanto que haveria a inclusão de mais três assentos não permanentes, totalizando 13, cuja soma daria os 24 da anterior Proposta Razali; a segunda, a proposta B, prezava pelo surgimento de 8 membros semi-permanentes (com mandato de 4 anos) e a inclusão de uma cadeira de membro não permanente, totalizando 11, cuja soma dos assentos permanentes, semi-permanentes e não permanentes também seria igual a 24. Estas iniciativas polarizaram o debate em torno de grandes grupos de interesses. O Brasil juntou-se a Índia, Japão e Alemanha para formar o Grupo dos Quatro (G-4), o qual propunha em 2005 o aumento de 6 cadeiras permanentes para além das 5 já existentes (para os quatro e mais dois países africanos) e de 4 não permanentes, para além das 10 ocupadas. Este pleito apesar de plural e abrangente geograficamente, não obteve muito apoio por defender a ampliação do poder de veto a todos os novos membros permanentes, ou seja, para os desejados 11. Para angariar maior adesão sugeriu um prazo experimental de 15 anos, findo o qual estaria extinto o direito de veto aos seis novos membros permanentes. A União Africana apresentou a sua visão, de acordo com a qual deveria haver o acréscimo de 11 cadeiras, sendo seis permanentes com poder de veto, o que ratificava a proposta do G-4, e cinco não permanentes. Para contrapor os projetos anteriores, o grupo Unidos pelo Consenso agregou os países, como Itália e Argentina, favoráveis à expansão das cadeiras do Conselho de Segurança (em 10 novos membros permanentes) sem a ampliação do direito de veto. Os Estados Unidos admitiam apenas a inclusão de dois novos assentos permanentes para Japão e Alemanha com fulcro na capacidade econômica de ambos e em sua considerável contribuição para o orçamento da ONU.

Independentemente da particularidade de cada proposta, todas esbarram no rígido procedimento de emenda e de reforma previsto na própria Carta, os quais, além da maioria qualificada de 2/3 de votos afirmativos dos membros da Assembleia Geral, exigem a necessária ratificação interna em cada um dos cinco Estados detentores do poder de veto, o que, na prática, inviabiliza quaisquer alterações substanciais. Partindo do pressuposto realista de que o poder é um jogo de soma zero, ou seja, relativo, se uns ganham significa que outros perdem, logo, tendo em vista que os Estados defendem seus interesses nacionais, não abdicarão de parcela de sua prerrogativa de decidir ou de impor sua vontade em última instância sobre a solução das questões internacionais mais sensíveis para favorecer a organização ou a coletividade internacional. A convivência entre Estados é explicada por meio dos interesses nacionais e das relações de força e de poder. O Estado é colocado no centro das discussões, sempre atuando em favor do interesse nacional, que imediatamente é o de sobreviver e impor sua vontade em um ambiente descentralizado e horizontal por meio do acúmulo de poder. Não há como pensar a sociedade internacional fora de um sistema de equilíbrio de poder, que coordena o ambiente anárquico (sem um poder hierarquicamente superior) dos Estados. Essa aparente ordenação não segue a semântica convencional. Não há ordem na acepção clássica do termo, mas uma disposição dos Estados, ao mesmo tempo rígida e precária, que necessita da desordem, para que continue se fortalecendo e se perpetuando (FIORI, 2007).

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Além do comportamento egoístico, uma ampliação da prerrogativa do veto dificultaria ainda mais a obtenção do quórum necessário e a célere tomada de decisões em situações emergenciais. A reforma da década de 1960 que aumento o número de cadeiras não permanentes de 6 para 10, totalizando os atuais 15 membros do Conselho de Segurança foi a única substancial em quase setenta anos, somada a pontuais modificações procedimentais, menos relevantes. Logo, ainda que emerjam propostas, as mudanças substanciais necessárias parecem cada vez mais irreais dentro da lógica onusiana, a qual se insere no projeto hegemônico de poder estadunidense. A política institucionalizada opera em função de um condomínio que reúne as potências vencedoras do conflito mundial, conhecido como o Conselho de Segurança da ONU, único órgão detentor da prerrogativa excepcional de autorização do uso da força na seara internacional, em nome da segurança coletiva, conceito amplo e de difícil determinação, a qual é dada, na prática, pelos países detentores do poder de veto.

Com a ínfima probabilidade de alterações jurídicas, cabe discutir eventuais modificações na forma de agir da organização, sobretudo, em relação à proteção dos Direitos Humanos. Desde sua entrada em vigor, a ONU desempenha um papel relevante para a consolidação do direito internacional dos direitos humanos. A partir do pós-guerra, entendeu-se pela consolidação de um sistema geral de proteção do indivíduo que regularia as garantias do ser humano, sem defini-las, contudo. Em seu âmbito foram celebrados documentos importantes como a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 e os Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais de 1966, além de viabilizar e incentivar acordos regionais neste sentido. A prioridade internacional no contexto de conflito ideológico era dada, entretanto, para a segurança, obscurecendo o debate sobre outros temas. O panorama da Guerra Fria polarizou os direitos entre capitalistas e socialistas e, consequentemente, engessou um diálogo internacional mais amplo e produtivo, que só foi retomado com a dissolução da União Soviética. O fim do embate ideológico abriu espaço para a discussão de temas de interesse de toda sociedade internacional, o que se transformou em uma falsa euforia e um horizonte exageradamente e oportunamente otimista, no qual o fim das ideologias traria um dogma indiscutível, o de proteger o ser humano. O discurso consensual que envolve a necessidade de proteção dos valores humanos leva Koskenniemi a afirmar o caráter ideológico que os cerca, como se fossem a nova religião da modernidade agnóstica (KOSKENIEMMI, 2004: p.15): “Human rights, it is often said, are the religion of (an agnostic) modernity.”.

Como os direitos humanos são um conceito de conteúdo variável no tempo e no espaço, existem diversas formas de interpretá-los. Esta tarefa no sistema internacional hodierna cabe em última instância ao Conselho de Segurança, o qual atuará em situações extremadas. Como a ONU é uma organização eminentemente ocidental, na qual prevalece a vontade de cinco grandes potências, atuará de acordo com estes interesses, utilizando a manipulação do discurso para a imposição de valores ou legitimação de intervenção externa, distorcendo o argumento da resistência e da conquista das garantias do indivíduo (DOUZINAS, 2009: p.13):

“Quando os apologistas do pragmatismo decretam o fim da ideologia, da história ou da utopia, eles não assinalam o triunfo dos direitos chega quando eles perdem seu fim utópico (...). Os direitos humanos perdem seu fim, argumentava-se, quando deixam de ser o discurso e a prática da resistência contra a dominação e a opressão públicas e privadas para se transformar em instrumentos de política externa das grandes potências do momento, a ética de uma missão civilizatória contemporânea que espalha o capitalismo e a democracia nos rincões mais escuros do planeta.”

Apesar do inédito desenvolvimento normativo e teórico alcançado pelo tema, sua prática no cenário internacional continua paradoxalmente seletiva e discriminatória (DOUZINAS, 2009: p. 17): “Permitam-me repetir: os direitos humanos têm apenas paradoxos a oferecer.”. Com fulcro numa perspectiva que mescla elementos do realismo com outros do marxismo, Fiori escancara a contradição entre teoria e prática, ao explicar a proeminência que valores ditos universais, como os direitos humanos, ganharam no contexto hodierno, como garantias amplas e vagas, passíveis de distorção pelos Estados em prol da efetivação de seus interesses nacionais, que são, na grande maioria das vezes, determinados pelas elites que controlam os governos internos (FIORI, 2011):

“Em última instância, este também é o motivo pelo qual a discussão sobre Direitos Humanos, no campo internacional, se transformou - depois do fim da Guerra Fria - num terreno cercado de boas intenções, mas minado pelo oportunismo e pela hipocrisia. Porque existe, de fato, uma fronteira muito tênue e imprecisa entre a defesa do princípio geral, como projeto e como utopia, e a arrogância de alguns estados e governos que se autoatribuem o “direito natural” de arbitrar e difundir, pela força, a taboa ocidental dos direitos humanos.”.

O autor complementa o pensamento, destacando a política por trás do argumenta da universalidade na aplicação das normas protetoras de direitos humanos (FIORI, 2011):

“Independentemente do que se pense sobre o fundamento e a universalidade dos direitos humanos, não há a menor dúvida que, do ponto de vista das relações entre os Estados dentro do sistema mundial, eles sempre são esgrimidos e utilizados como instrumento de legitimação das decisões geopolíticas e geoeconômicas das grandes potencias. Por isto, as decisões sobre este assunto nos foros internacionais são sempre políticas e instrumentais e variam segundo a vontade e segundo os interesses estratégicos destas grandes potências.”

Ainda que haja perspectiva de transformação deste panorama, é possível tentar alterar os efeitos ou a direção da atuação. A ONU enfrenta uma encruzilhada na tomada de soluções mais incisivas na proteção do ser humano. Se por um lado, existe a pressão internacional para que aja rapidamente nos momentos de convulsão, por outro, o remédio por ela adotado é a via militar, a qual pode até surtir efeitos na instabilidade inicial, porém, por meio de mais ou da deterioração da violência, como demonstram os recentes casos de intervenção armada e de missões de paz. A tendência atual é catastrófica. Cada vez mais são aprovadas intervenções militares pelo Conselho de Segurança com a justificativa humanitária, enquanto que as missões de paz autorizadas ganha um caráter mais e mais intervencionista nos assuntos internos dos Estados receptores. Ambas as vias promotoras da paz, que são completamente distintas, estão se confundindo, pois cometem o mesmo erro: utilizam a via militar para remediar o combate da violação de direitos humanos, visto que agrava a violência. A força, quando necessária, deve ser utilizada de forma pontual, sendo um apêndice de uma ampla cooperação internacional seja mais abrangente, envolvendo outras áreas das ciências.

Mesmo ante as críticas que podem ser levantadas tanto em relação à sua atuação para a proteção de direitos humanos quanto em pouca margem de reforma institucional, entender o funcionamento e a estrutura da ONU é fundamental para que esta não seja nem subestimada nem supervalorizada. É uma tentativa de proporcionar o concerto e a cooperação entre os países, na qual prevalece a vontade das grandes potências que a criaram sob a lógica hegemônica que marca a configuração internacional hodiernamente. Além da política dos Estados, a organização internacional é pelo direito internacional, ramo jurídico que se constitui sobre o postulado da soberania estatal. Em outras palavras, um contexto de elevada complexidade, bem diferente do que acontece no direito interno de cada Estado. Logo, esta (des) ordem imperfeita é melhor do que não se ter nenhuma ou uma forma imposta de organização (ZOLO, 2002: p. 443): “In situations of high complexity and turbulence of environmental variables, it is more functional to live with a certain degree of disorder than to seek to impose a perfect order.”.

Sobre o autor
Luiz Felipe Brandão Osório

Graduado em Direito pela UFJF. Mestre e Doutorando em Economia Política Internacional pela UFRJ. Professor de Direito Internacional na UFRJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OSÓRIO, Luiz Felipe Brandão. A estrutura da Organização das Nações Unidas e seus desafios contemporâneos:: reforma institucional e proteção de direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3872, 6 fev. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26644. Acesso em: 23 dez. 2024.

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