4. O DIREITO À SAÚDE COMO DIREITO FUNDAMENTAL
Sendo a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 uma Constituição dirigente, volta-se à análise da Constituição e seu preâmbulo, que definem valores a serem observados pela nação e, juntamente com a positivação existente em seus Títulos, denotam verdadeiro caráter vinculativo.
Impende destacar que, entre as finalidades delineadas pela Constituição Federal, está a preservação e observação dos chamados “direitos fundamentais”.
Carl Schmitt (apud BONAVIDES, 2004) estabeleceu interessantes critérios formais de caracterização:
O constitucionalista aponta ser possível considerar por direitos fundamentais todos os direitos ou garantias nomeados e especificados em carta constitucional.
Aponta também que os direitos fundamentais são aqueles direitos que receberam da Constituição um grau mais elevado de garantia ou de segurança; ou são imutáveis (unabänderliche) ou pelo menos de mudança dificultada (erschwert).
Sob o prisma material, destaca Schmitt (apud BONAVIDES, 2004, p. 561) que “[...] os direitos fundamentais variam de acordo com a ideologia, a modalidade de Estado, a espécie de valores e princípios que a Constituição consagra”.
Em suma, para o autor, cada Estado tem seus direitos fundamentais específicos.
Para Cury (2005, p. 1),
Direitos fundamentais, em sentido estrito, podem ser conceituados como o conjunto de normas que cuidam dos direitos e liberdades garantidos institucionalmente pelo direito positivo de determinado Estado; devem sua denominação ao caráter básico e fundamentador de toda ordem jurídica.
Contudo, uma conceituação que traz efeitos mais amplos e aproveitáveis à posterior análise do direito à saúde é o de que
[...] os direitos fundamentais são resultados da personalização e positivação constitucional de determinados valores básicos (daí seu conteúdo axiológico), integrando, ao lado dos princípios estruturais e organizacionais (a assim denominada parte orgânica ou organizatória da Constituição), a substância propriamente dita, o núcleo substancial, formado pelas decisões fundamentais, da ordem normativa, revelando que mesmo num Estado constitucional democrático se tornam necessárias (necessidade que se fez sentir da forma mais contundente no período que sucedeu à Segunda Grande Guerra) certas vinculações de cunho material para fazer frente aos espectros da ditadura e do totalitarismo (SARLET, 2005, p. 70).
Esse aspecto trazido por Sarlet (2005) retrata bem o fenômeno ocorrido em vários países no período do pós-guerra, em ondas de afetação e abrangência, através de nítidas previsões normativas visando regrar e preservar direitos ligados à própria existência humana em seu aspecto mais humanístico e humanitário e suas relações.
O trauma trazido às nações durante o período de guerra e a percepção da capacidade de destruição e indiferença do homem pelo homem, surtiram o sentimento da necessidade de se estabelecer parâmetros mais sensíveis aos atos humanos, em respeito à própria vida e a sua fruição em sociedade.
Não se pode olvidar a pré-existência dos direitos fundamentais e suas previsões normativas, inclusive com a conceituação de parte da doutrina das chamadas gerações ou dimensões dos direitos fundamentais.
A doutrina chega a mencionar até cinco gerações, ao que pertenceriam à primeira geração os direitos individuais, nascidos e caracterizados pela titularidade individual e pela possibilidade de serem opostos e resistidos contra a vontade estatal – Estado Liberal; na segunda, estariam os direitos sociais, que exigiriam do Estado prestações positivas tendentes a garanti-los e proporcionar efetividade, sob pena de ineficácia; na terceira, os direitos transindividuais, também denominados de direitos difusos e coletivos, em que inexistiria determinação de seus titulares e o bem jurídico posta-se como indivisível; na quarta, os direitos relacionados com a biotecnologia e bioengenharia, em que se versa a vida e a morte e “cópia” de seres humanos; e, na quinta geração, os direitos da realidade virtual e cibernética (OLIVERIA JÚNIOR, 2000 apud SCHWARTZ, 2001).
No entanto, é importante destacar que, se há uma espécie de classificação dos chamados direitos fundamentais e esses direitos tiveram pontos marcantes em determinados períodos históricos, tem-se que estão invariavelmente relacionados e nem sempre é possível apontar um período estanque de suas previsões e normatizações, o que lança a um quadro meramente didático, referida classificação.
A verdade é que está mais nítido nos dias de hoje, dada a complexidade das relações humanas e vida em coletividade, o fato de um direito poder apresentar nuances que, se observada a classificação em tela, estarão relacionadas e enquadráveis em duas ou mais gerações, como ocorre com o direito à saúde.
Transparece forte e de maneira ampla na doutrina e na jurisprudência pátria o tratamento dispensado ao direito à saúde, como sendo um direito fundamental.
Silva, J. (1997, p. 298), ao analisar a Constituição Federal de 1988, chega a explanar que “[...] é espantoso como um bem extraordinariamente relevante à vida humana só agora é elevado à condição de direito fundamental do homem”.
Nas linhas de hermenêutica, tem-se que não é preciso um instituto ou direito estar expressamente consignado como tal para que assim apresente determinada “conceituação” e efeitos.
Ferraz Júnior (apud CITTADINO, 2004, p. 46) aponta que “[...] o procedimento hermenêutico de captação do sentido do conteúdo das normas torna-se compreensão valorativa conforme procedimentos próprios da análise e da ponderação de valores”.
Infere-se da Constituição da República Federativa do Brasil/1988, que o título II, que dispõe expressamente Dos Direitos e Garantias Fundamentais, engloba o capítulo II, o qual estabelece o direito à saúde (art. 6º)[5], chegando-se à fórmula: direitos fundamentais = direitos individuais + direitos sociais.
Assim, além da clara idéia que deve pautar o direito à saúde como sendo um direito fundamental, em razão de sua própria natureza (conforme acima exposto), há no ordenamento jurídico brasileiro expressa conceituação nesse sentido.
Cury (2005, p. 2) sobre a idéia em testilha leciona que
[...] numa interpretação ética dos direitos humanos, fundada em valores intrínsecos à racionalidade humana, deve-se compreender os direitos sociais como direitos essenciais e inafastáveis, e, por conseguinte, fundamentais. A partir dessa interpretação dos direitos humanos, pode-se falar em “direitos fundamentais sociais”.
A Lei n. 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde), em seu artigo 2º, dispõe expressamente a natureza da saúde como direito fundamental, in verbis: “Art. 2º. A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”.
O Supremo Tribunal Federal, com a força de explicitar a interpretação da Constituição Federal e torná-la definitiva em âmbito pretoriano, vem afirmando continuamente ser o direito à saúde um direito fundamental.
A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário n. 271.286 AgR/RS, que teve como relator o ministro Celso de Mello, já assinalou que “O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida”.[6]
O direito à saúde, aqui abarcado o direito ao atendimento médico e a medicamentos, também está previsto no artigo 196 da Constituição da República Federativa do Brasil, o qual estabelece que
[...] a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
A análise do dispositivo constitucional em tela deve ser realizada em consonância não apenas com as finalidades traçadas pela Constituição, em sua vertente dirigente, como também à luz de seus fundamentos, mormente a cidadania (art. 1º, II), dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e do direito fundamental à vida (art. 5º).
A harmonização está também estampada no artigo 5º § 2º que estabelece: “[...] os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Fica expressamente consignada a assunção, pela Constituição Federal de 1988, da tese da existência de “[...] direitos que, por seu conteúdo e por sua substância, pertencem ao corpo fundamental da Constituição de um Estado” (SARLET, 2005, p. 91), até mesmo aqueles não constantes no texto constitucional. Basta que atendam e estejam relacionados ao regime e aos princípios aventados.
Nesse pensamento, fazendo a associação do artigo 196, com o artigo 1º, incisos II e III e artigo 5º, tem-se que o direito à saúde, além de um direito fundamental social (art. 6º), deve ser compreendido como um direito fundamental do homem em si considerado (também um direito individual).
Vale lembrar que o direito à saúde, mormente o direito ao atendimento médico e a medicamentos, tem ínsito, em razão da natureza do Estado brasileiro (Estado Democrático de Direito), a idéia de meios e mecanismos tendentes ao seu exercício (direito material).
O artigo 196 apresenta as questões do “acesso universal igualitário” e da “promoção” da saúde que, aliadas à idéia de cidadania do artigo 1º, inciso II, chega-se à individualização do direito, postando-o também como o direito fundamental individual de toda pessoa, no exercício da cidadania, obter do Estado a devida e escorreita prestação médica que lhe é assegurada pela norma maior (art. 5º, XXXV).
A cidadania pode ser conceituada como a “[...] titularidade de direitos individuais e sociais (coletivos lato sensu), com a prerrogativa (faculdade) de obter e reivindicar direitos ou ter assegurado o acesso aos meios de proteção e defesa” (informação verbal).[7]
Depreende-se, ainda, que a questão da obtenção do atendimento médico deve ser efetivada de forma a cumprir integralmente seu mister, sob pena de se atentar contra a dignidade da pessoa humana (Constituição Federal, art. 1º, inciso III) e, assim, afetar um direito fundamental individual.
A peculiaridade está na compreensão da saúde humana diretamente relacionada à primariedade dos bens jurídicos tutelados pelo ordenamento jurídico.
Não obstante as freqüentes e intermitentes discussões filosóficas, a saúde é tida como o bem primário mais valioso, já que de nada vale assegurar um direito (seja ele qual for) se a afetação à saúde de seu titular impende seu exercício.
O ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, Ilmar Galvão, no Recurso Extraordinário n. 232.335/RS, ao se posicionar favorável ao dever do Estado em fornecer medicamento a uma cidadã, afirmou:
A autora faz jus ao direito pleiteado, relativo à saúde, já que tem, por base, o maior dos direitos fundamentais, previsto no art. 5º da Constituição Federal, que é o direito à vida, sem o qual, por razões óbvias, os demais direitos se tornam de nenhum valor.
Oportuna a digressão de Martins (1985, p. 27), ao afirmar que
O ser humano é a única razão do Estado. O Estado está conformado para servi-lo, como instrumento por ele criado com tal finalidade. Nenhuma construção artificial, todavia, pode prevalecer sobre os seus inalienáveis direitos e liberdades, posto que o Estado é um meio de realização do ser humano e não um fim em si mesmo.
Não se pode eclipsar o fato de que o conceito de saúde estampado no artigo 5º, caput, deve ser harmonizado pelo princípio da dignidade humana (art. 1º, III), para se esposar que a Constituição Federal prevê como direito fundamental da pessoa humana o direto à vida digna.
Segundo Barroso (2003a, p. 334),
Dignidade da pessoa humana expressa um conjunto de valores civilizatórios incorporados ao patrimônio da humanidade. O conteúdo jurídico do princípio vem associado aos direitos fundamentais, envolvendo aspectos dos direitos individuais, políticos e sociais. Seu núcleo material elementar é composto do “mínimo existencial”, locução que identifica o conjunto de bens e utilidades básicas para a subsistência física e indispensável ao desfrute da própria liberdade. Aquém daquele patamar, ainda quando haja sobrevivência, não há dignidade.
É por isso que a previsão de direito ao atendimento médico a aos medicamentos a serem utilizados na obtenção e preservação de um estado de saúde digno deve ser visto de forma eficaz e efetiva.
Isso exposto, ou seja, sendo a saúde (atendimento médico e acesso a medicamentos) um direito fundamental, tem-se implicações e conseqüências de variadas ordens, percutindo no alcance das normas co-relatas, bem como em sua aplicabilidade, eficácia e limites, o que será analisado a seguir.
5 - CONCLUSÃO
Após o desenvolvimento do presente estudo, obtém-se as seguintes conclusões:
1. O direito à saúde está previsto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988;
2. Espelhando a “vontade do País”, que se constitui em uma República Democrática de Direito, a Constituição Federal aponta como fundamento, finalidade e dever do Estado, assegurar e promover, a todos (membros da família coletiva ou individualmente considerados), a saúde (Preâmbulo da Constituição Federal, art. 6º e art. 196);
3. O direito ao atendimento médico e ao acesso a medicamentos constitui, além de um direito social (art. 6º), também um direito individual (art. 5º, c.c. art. 1º, II e III c.c. art. 196), já que confere a todo cidadão o direito à uma vida digna e saudável;
4. Por sua própria natureza e descrição normativa, seja social ou individual, o direito à saúde constitui verdadeiro direito fundamental (ligada à concepção da própria existência humana).
REFERÊNCIAS
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SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 13. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1997.
Notas
[1] Art. 138. Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas: [...] f) adotar medidas legislativas e administrativas tendentes a restringir a mortalidade e a morbidade infantis; e de higiene social, que impeçam a propagação das doenças transmissíveis; g) cuidar da higiene mental e incentivar a luta contra os venenos sociais.
[2] Art. 8º, XIV.
[3] Art. 25. Toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e a sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto a alimentação, vestuário, ao alojamento, a assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários; e tem direito a segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes de sua vontade.
[4] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
[5] O caput do art. 6º da Constituição da República Federativa do Brasil/1988 teve nova redação através da Emenda Constitucional n.º 26, de 14 de fevereiro de 2000.
[6] No mesmo sentido: RE n. 273.834-Min. Celso de Mello; AgR n. 232.469-Min. Marco Aurélio; AgR n. 236.644-Min. Maurício Correa, RE n. 232.335-Min. Celso de Mello; RE n. 236.200-Min. Maurício Correa; RE n. 247.900-Min. Marco Aurélio.
[7] Frase do Procurador da República Alexandre Amaral Gavronski, em aula proferida na Unaes-Faculdade de Campo Grande/ESMPMS (Pós Graduação em Direito Constitucional), no dia 29 de abril de 2005, com o tema O acesso à justiça dos direitos coletivos no Estado Democrático de Direito.