1.Introdução
A temática “férias de dois meses” costuma despertar manifestações extremas, seja na tentativa de defendê-la ou atacá-la, geralmente com uma retórica retumbante e com tons emotivos ou passionais. Os defensores, costumeiramente as entidades profissionais, defendem ardorosamente referido direito, usando argumentações jurídicas, sociais e biológicas. Os detratores baseiam-se em critérios isonômicos e, em muitos casos, partem para o ataque pessoal, demonstrando algum grau de rancor para com as carreiras, notadamente a magistratura.
Apesar de ser um tema muito secundário no debate jurídico nacional, a questão ganha magnitude por envolver opiniões e debates do mais humilde servidor público (e trabalhadores da iniciativa privada) até a cúpula dos tribunais brasileiros (e também das demais carreiras). Os magistrados tornaram-se verdadeiras “genis” das frustrações nacionais, sempre sendo os principais culpados por todas as mazelas sociais e jurídicas, ainda que o processo não dependa única e exclusivamente deles[1].
Outro ponto a ser realçado é que o senso comum associa imediatamente férias de dois meses aos magistrados, esquecendo-se completamente que há outras carreiras com o mesmo direito/privilégio. Para as demais carreiras chega a ser interessante essa amnésia seletiva, visto que não precisam argumentar perante a mídia e opinião pública (ou fazê-las de uma maneira mais simples) sobre a necessidade das férias de dois meses.
2.Marcos legais
Na CRFB, apesar de minuciosa sobre várias disposições do Poder Judiciário (especialmente no tocante a promoções, remoção e outros aspectos internos dos tribunais), não encontramos menção acerca das férias de dois meses para as carreiras jurídicas. Há menção ao fato de as férias (não se menciona o período, devendo ser buscado na CLT tal interstício temporal) deverem ser remuneradas com um terço a mais do que o salário normal[2]. Na Lei 8112/90, que regula os direitos e deveres dos servidores públicos federais, menciona-se que as férias serão de 30 dias[3] e o servidor receberá o respectivo adicional[4]. Em relação aos servidores estaduais, as leis seguem o padrão e dispõem em 30 dias o período de férias.
No que tange aos magistrados, o Art. 93 da CRFB dispõe que
Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura (...)
Enquanto a referida lei complementar não é editada (e faz-se muito necessária), vige a Lei Complementar 35/79 (Lei Orgânica da Magistratura – LOMAN). Referido dispositivo legal possui inúmeros trechos em contradição com a atual CRFB ou que não se aplicam mais. Assim, o CNJ vem ganhando papel de referência ao “atualizar” a lei, bem como diversos tribunais, administrativamente, acabam por regular alguns aspectos (gerando, em vários casos, cizânias judiciais). Encontra-se no Art. 66 da LC 35/79 a disposição acerca das férias:
Art. 66 - Os magistrados terão direito a férias anuais, por sessenta dias, coletivas ou individuais.
Com relação aos membros do Ministério Público, a Lei 8625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público) versa que
Art. 51. O direito a férias anuais, coletivas e individuais, do membro do Ministério Público, será igual ao dos Magistrados, regulando a Lei Orgânica a sua concessão e aplicando-se o disposto no art. 7º, inciso XVII, da Constituição Federal.
Referida lei dispõe sobre normas gerais de organização dos Ministérios Públicos estaduais, cabendo aos respectivos procuradores-gerais de justiça, mediante lei complementar estadual, dispor sobre normas específicas de organização, atribuições e estatuto do respectivo Ministério Público[5].
Ainda que caiba aos procuradores-gerais a iniciativa da lei, as férias serão de sessenta dias, por simetria com as férias da magistratura. Por sua vez, a Lei Complementar 75/93 (organiza o Ministério Público da União), no Art. 220, dispõe expressamente que as férias dos integrantes do MPU serão de sessenta dias.
Com relação aos defensores públicos, o Art. 134, §1º, da CRFB menciona que
§ 1º Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais.
A Lei Complementar 80/94 foi editada em obediência ao comando constitucional. É importante esclarecer que a referida lei organiza a Defensoria Pública da União (Defensoria Pública Federal) e normas gerais para as defensorias públicas estaduais[6]. Até a edição da Lei Complementar 98/99, os membros da então Defensoria Pública da União e do Distrito Federal eram de sessenta dias. Manteve-se intacta a disposição acerca das férias dos defensores estaduais, cabendo aos entes estaduais dispor sobre os direitos, embora também lhes seja garantido os direitos da própria LC 80/94[7].
É plenamente possível que existam defensores estaduais que gozam de sessenta dias férias, enquanto outros defensores (federais e do DF), de estados limítrofes ou não, podem vir a não gozar de referido direito/privilégio.[8]
No que se refere à Advocacia pública, no plano federal temos a Advocacia Geral da União[9], enquanto que nos estados há as procuradorias. A LC 73/93 versa sobre a AGU e, no que tange às férias, é aplicável a Lei 8.112/90 (lei dos servidores públicos federais).[10]
3. A razão de ser das férias
As férias possuem um objetivo social e outro físico: o físico serve para que a pessoa possa “esquecer”, ainda que minimamente, as tarefas e obrigações do seu labor, enquanto que o fim social é para a pessoa poder reforçar seus laços sociais, realizar uma viagem, dedicar-se mais a atividades acadêmicas ou simplesmente gozar o ócio.
Assim, as férias, antes de tudo, são uma maneira de preservar a saúde (mental e física) da pessoa. Ainda que o labor da pessoa seja muito pouco estressante ou apresente pouco grau de complexidade, o cidadão terá direito às férias.
No plano público, a grande massa de servidores (civis e militares) e empregados públicos possuem direito a férias remuneradas de trinta dias (e o respectivo acréscimo constitucional), não importando o fato de sua função ser a de um mero “carimbador” em alguma repartição ou a de um piloto de caça da força aérea brasileira.
A essencialidade das férias é tão latente que a CLT proíbe que sua totalidade seja “vendida” pelo trabalhador, de modo a tentar preservar a saúde do mesmo. No serviço público, como regra geral, não é permitida a venda de férias (é plenamente possível o parcelamento do período, de acordo com a conveniência da Administração e opção da pessoa).
Contudo, por diversas razões, há inúmeros casos em que o servidor não goza as férias por inúmeros períodos e, posteriormente, requer a conversão desse período em pecúnia. É uma maneira mínima de reparar uma lesão causada pelo ente estatal que impediu ou dificultou o gozo desse sagrado direito constitucional.
4. As férias de dois meses
É sempre importante realizar uma distinção entre prerrogativa funcional e privilégio. A prerrogativa funcional, logicamente, decorre da necessidade do próprio cargo público e, por isso, não se confunde com a pessoa ocupante. Ela é uma proteção ao cargo, à pessoa e à sociedade, pois garante um patamar ideal ou mínimo para o exercício do mister. O privilégio, por sua vez, que pode vir travestido legalmente de “prerrogativa” e de todo um discurso pomposo em sua defesa, é algo concedido não pelo cargo em si, mas por conta da pessoa, da posição política ou jurídica.
Certamente há uma zona cinzenta em alguns casos e a prerrogativa pode ser vista como privilégio, a depender, por exemplo, de alguma posição política ou do próprio caso concreto. As férias de dois meses são vistas como privilégio ou prerrogativa, a depender da “posição” do combate.
Tristemente, o debate acerca do período de férias acaba por descambar em um embate, deixando a razão de lado. Virulentos ataques pessoais, ironias, ofensas e reclamações genéricas e generalizantes reinam. Os defensores dos dois meses podem vir a ser ofendidos e quem não concorda com esse período de férias é costumeiramente chamado de invejoso, “detrator”... Com certeza esta não é a melhor forma de debate e análise. Passionalismos, retóricas retumbantes e catastrofismos não são úteis e pouco acrescentam às discussões minimamente civilizadas. Menos ainda ataques pessoais e ofensas generalizantes, que tanto empobrecem as “análises”.
Conforme já foi explanado, as férias possuem seu viés social e de mantença da saúde do indivíduo. Uma situação costumeiramente vislumbrada nas notícias de diversos meios de comunicação são as férias de dois meses dos magistrados. Estes se tornaram alvo de todos os tipos de críticas, inclusive quanto à atuação profissional (celeridade e/ou qualidade das decisões, por exemplo), por conta do privilégio/prerrogativa. Por ignorância ou má fé as críticas não são direcionadas a outras carreiras.
É praticamente impossível que em um quadro gigantesco de magistrados haja uma parcela que não atue conforme a dignidade da profissão exige. Porém, o mesmo ocorre na classe dos defensores e advogados públicos (e privados), membros do ministério público e servidores em geral. Assim, proferir críticas rasas contra toda uma carreira porque determinado juiz ou desembargador desagrada de alguma maneira é algo infantil e tolo. Felizmente as corregedorias vêm ganhando força (ainda que não na proporção desejável), assim como o CNJ e CNMP.
4.1 “Há previsão legal para as férias de dois meses”
A frase do título é costumeiramente usada para defender a existência de férias de dois meses. Entretanto, essa “saída” argumentativa é das mais paupérrimas, haja vista que o processo legislativo sofre influências do momento político de sua elaboração e, com isso, engloba-se o lobby das associações representativas, posições pessoais dos congressistas e suas naturais atecnias e a disposição do poder político dominante em negociar (e o limite da negociação).
Tomando a Lei Orgânica da Magistratura como exemplo, é possível verificar que seu contexto de elaboração é completamente diverso do atual (regime autoritário x regime democrático). Assim, prender-se a uma oportuna legalidade estrita é pretender retornar aos tempos do juiz boca da lei. Além disso, ignora-se toda a questão dos princípios constitucionais e a hermenêutica constitucional e infralegal.
Um ponto interessante é que a interpretação escudada simplesmente na literalidade da lei é uma faca de dois gumes, visto que em determinado momento ela poderá ser prejudicial. Como o sistema jurídico deve ser coerente, não é crível que um meio interpretativo seja extremado em um momento e, casuisticamente, sofra uma flexibilização (ainda que em nome do vulgarizado princípio da dignidade humana).
Merece destaque, também, o fato de que não é porque algo “está na lei” que instantaneamente cria-se um dogma. Não se nega que determinadas matérias, por conta de sua magnitude e por garantirem direitos e condições mínimas para o funcionamento do Estado (abarcando, aí, seus cidadãos), não são tão maleáveis pelos legisladores. As cláusulas pétreas, fundamentais a todos, não podem ser abolidas ou extintas, mas é aceito em parcela da doutrina e das cortes nacionais que elas podem sofrer mitigações, desde que se mantenha o núcleo essencial.
Férias são um direito essencial à pessoa e, por tal razão, o referido direito não pode ser extinto. Contudo, a duração das mesmas, a possibilidade de parcelamento e de “venda” e demais aspectos que gravitam em volta do referido direito podem ser alvo legislativo.
Daí ser possível concluir que o fim do segundo mês de férias não violaria tal instituto jurídico, haja vista que existiria um período de trinta dias para descanso da pessoa (não se vulneraria frontalmente o direito). Tampouco feriria a dignidade humana, haja vista que se aceitarmos a linha interpretativa de que a redução de um mês de férias afetaria o importantíssimo fundamento constitucional acima mencionado, atestar-se-ia que praticamente todos os trabalhadores, públicos ou privados, são costumeiramente violados em sua dignidade por parte do Estado e dos empregadores.
Não se nega a importância para o cenário nacional dos magistrados, defensores públicos, advogados públicos e membros do Ministério Público, como também não se pode negar a importância dos demais ofícios, desde o pequeno empresário, um gari e um executivo de uma multinacional. Nenhuma função é mais ou menos importante que a outra, havendo expressa previsão constitucional de vedação de distinção do trabalho técnico, manual ou científico.
Lamentavelmente, diversos membros do cenário jurídico possuem patologias no órgão humano mais sensível: a vaidade. Com isso, por terem logrado êxito em um concurso muito disputado e talvez pelo fato de determinadas funções possuírem um “status” muito grande, tornam-se vaidosos e arrogantes, ignorando que sua função basilar é servir ao público da melhor maneira.
Os diversos ofícios, públicos ou privados, possuem sua importância para todos e também possuem suas peculiaridades. Logo, não é viável igualar todos com base na isonomia, pois seria uma atitude pueril e inócua. As restrições e prerrogativas de um magistrado não podem ser as mesmas impostas a um técnico em edificações. O mesmo se aplica a administradores de sociedades e a microempresários.
Por essa razão, a CRFB e o ordenamento infralegal impõem restrições ou criam prerrogativas de modo a garantir que o mister possa ser exercido dignamente. Essa linha de raciocínio justifica a existência de vedações a diversos membros das carreiras jurídicas, bem como justifica também as prerrogativas e direitos inerentes.[11] Seria algo deveras tormentoso que um juiz pudesse receber custas processuais, por exemplo. Ou que um promotor também pudesse receber. Os singelos exemplos retratados mostram que é necessário estatuir uma via de liberdade para os atores jurídicos. Nessa mesma via é preciso estabelecer o limite, a fim de que a liberdade não venha a se tornar uma libertinagem.
Logo, não é viável querer igualar a atuação de caminhoneiros com defensores públicos, mas também não é crível que o segundo ofício seja visto como “melhor” ou “mais importante”. Estabelecidas as diferenças, o questionamento é se as férias de sessenta dias seriam uma prerrogativa ou privilégio?
4.2 “As férias são um pacote de atrativos para a carreira”
O título acima gera um questionamento: afinal, as férias de sessenta dias seriam uma prerrogativa institucional ou um modo de atrair candidatos? Se as férias são prerrogativas, o argumento costumeiramente usado de “atrativo” para a carreira cai por terra. Isso ocorreria porque sendo um “atrativo”, o raciocínio de que elas seriam imperiosas à atividade deixa de existir e, assim, interesses corporativos seriam a única razão para a manutenção do status quo.
Como regra geral, os vencimentos da área pública, especialmente na área jurídica, são maiores que os pagos na iniciativa privada. Abstraindo-se se isso é ou não justou e coerente, verifica-se uma busca cada vez maior de pessoas interessadas em cargos públicos justamente pelo salário mais elevado, além de outras razões.
Os concursos da área jurídica são muito disputados e difíceis, com várias fases e provas orais. Os salários costumam ser bem atrativos e não é raro ver diversos advogados privados com vontade de deixar seu ofício para se tornarem advogados públicos, defensores... O mercado de trabalho da advocacia está inchado e bem tormentoso, o que prejudica os que já possuem alguma experiência no setor e, especialmente, os ingressantes.
Os salários sofrem um achatamento por conta do “excesso” de causídicos e, por isso, os concursos públicos são vistos como a ponte para uma remuneração salutar. Além disso, as exigências da profissão, a costumeira ausência de jornada definida e tempos de descanso são fatores que contribuem para o desânimo de diversos advogados, novos ou não.
Dificilmente algum candidato opta por determinada carreira jurídica tendo por base a questão das férias. Vocação, preferência e, principalmente, a remuneração são fatores de atração. As férias são apenas mais um fator (secundário).
Não se nega que o trabalho das carreiras jurídicas possui uma forte carga de estresse emocional, ainda mais por lidar com pessoas, direta ou indiretamente. Questões familiares, licitações hospitalares, prisões ou concessão de liberdade, por exemplo, envolvem dramas humanos em todas as partes, especialmente em quem decide. É uma decisão que poderá repercutir com força na sociedade e, caso não seja analisada detidamente, o transtorno causado será imenso e de difícil reparação.
Não se nega também que diversos outros ofícios também possuem uma forte carga estressante. Basta pensar em bombeiros e policiais militares, plantonistas de emergências hospitalares, pilotos de aeronaves... Há ofícios que são bem menos estressantes que outros, enquanto que alguns profissionais lidam diuturnamente com questões delicadas. Mesmo nesses ofícios mais estressantes não se verifica a existência legal de férias de sessenta dias (instrumentos coletivos de trabalho ou a negociação entre empregador e empregado podem, em tese, estipular tal concessão).
Dentro das carreiras jurídicas nota-se a existência de lotações mais estressantes que outras por inúmeros fatores: estrutura de trabalho e da localização, volume de trabalho... É impossível crer que os integrantes de uma carreira jurídica trabalhem igualitariamente, pois há diversas variáveis em jogo, especialmente no setor público, que possui inúmeros fatores que podem “travar” a atuação do mesmo.
Alegar o estresse como fator necessário para a existência de férias de sessenta dias não é saudável, especialmente se for considerado que há diversas defensorias públicas e procuradores estaduais que gozam de apenas trinta dias de descanso, mesmo enfrentando questões idênticas a dos profissionais que atuam em um estado que garanta férias maiores. Quando se faz a mesma comparação com a iniciativa privada, a probabilidade de esse período a mais de descanso ser visto como um privilégio inconcebível é imensa.
Justamente para compensar as naturais intercorrências da carreira é que há regramento específico, além de servirem para manter uma atratividade. O mesmo pensamento vale para a existência de direitos e prerrogativas. A mudança de mentalidade da sociedade é um fator a ser levado em conta, haja vista que, se no passado não soava mal a existência de um período maior de férias, atualmente vê-se que a noção vigente é de mostrar que a área pública não deve ser vista como um fim, mas tendo funcionalidade ao país.
Além do período maior de férias, há também o recesso de final de ano. Ainda que haja escala de plantão em ambos os períodos, especialmente no recesso a atividade judiciária é bem menor. As carreiras jurídicas organizam plantões e, com isso, muitos podem gozar as festividades do final do ano. Não se defende que os membros das carreiras não possam gozar das referidas festividades, mas apenas demonstra-se que é mais um período de interrupção, ainda que parcial, das atividades forenses que, somadas às férias maiores, soam indiscutivelmente ruim à sociedade.
Alegar que há falta de profissionais é razoável e justo, mas essa alegação é um fato praticamente unânime no serviço público, pois sempre haverá ausência de pessoal em quantidade suficiente (férias, licenças, exonerações), tendo em conta que as atividades estatais são múltiplas e o tamanho das administrações exige uma multiplicidade de servidores e empregados. A solução para isso é uma racionalização administrativa e, sendo necessária, a contratação de mais pessoas.
Uma última questão a ser ressaltada é a possibilidade de venda das férias. Ora, se o referido período é usado para atualização profissional ou descanso, é, no mínimo, contraditório que possa existir a possibilidade de venda, parcial ou integral, e o consequente recebimento em pecúnia. Novamente vem à tona a indagação: privilégio ou atrativo para a carreira? Mais instigante ainda é o fato de o período para descanso ser usado para aumentar a conta bancária. Se é possível realizar a venda do período a mais de descanso, então é possível observar que trinta dias bastam para a atualização profissional ou recuperação da saúde social e mental.
A atualização profissional é algo salutar a todo profissional e ela não há impedimentos para que seja feita concomitantemente ao labor. Especialmente nas carreiras jurídicas, é comum o órgão oferecer cursos e palestras ou, então, financiar ou estimular a qualificação dos membros, inclusive com o afastamento remunerado por longos períodos. Ler livros, ir a teatros, exposições, cinemas ou praticar esportes é algo plenamente realizável nas férias, feriados e nos dias laborativos. Basta a pessoa possuir um mínimo de organização que poderá fazer outras atividades (se não conseguir fazer todas, ao menos alguma delas).
5. Conclusão
Por ser uma temática sensível às carreiras jurídicas e por envolver assuntos que envolvem diretamente o cotidiano dos membros, a questão ganha contornos passionais. Entretanto, ainda que seja impossível afastar a mistura de sentimentos no debate acerca da legitimidade das férias de sessenta dias, faz-se necessário manter um mínimo de racionalidade e até mesmo frieza.
A pressão de diversos atores sociais pela extinção ou, ao menos, modificação da dinâmica do que foi retratado neste artigo vem ganhando força paulatinamente. Atores renomados da própria magistratura já se manifestaram e manifestam-se pelo fim da prerrogativa/privilégio, verificando, pois, que é anacrônico e carrega, indiscutivelmente, uma verve de privilégio inconcebível perante a sociedade.
Notas
[1] Ofícios que não respondidos em tempo hábil e, com isso, a necessidade de expedição de mandado de busca e apreensão; os atos burocráticos cartorários, ainda que totalmente digitais, demandam tempo; a qualidade de causídicos ou a desídia de membros das carreiras que gravitam em volta do processo; a complexidade de uma perícia judicial... Alguns exemplos de questões sobre as quais um juiz não tem um poder “divino” e que podem contribuir para uma lentidão.
[2] Art. 7, XVII.
[3] Art. 77.
[4] Art. 76.
[5] Art. 2º da Lei 8625/93.
[6] A Emenda Constitucional 69/12 transferiu a competência da União para o próprio Distrito Federal e este passa a ser o responsável pela organização e manutenção da Defensoria Pública que irá atuar no limite territorial. Obviamente que diversas disposições da LC 80/94 serão aplicáveis para a Defensoria do Distrito Federal
[7] O Art. 39, §2º menciona que os “membros da Defensoria Pública da União (Federal) têm os direitos assegurados pela Lei 8112/90 e nesta lei complementar”. Como as férias previstas na lei que regula os servidores públicos federais são de 30 dias, os defensores públicos federais gozam de 30 dias para descanso. O mesmo entendimento é aplicável à Defensoria do Distrito Federal, conforme Art. 84, §2º.
[8] Através de consultas aos sites das defensorias públicas estaduais e buscando nas legislações correlatas (algumas Leis Orgânicas dispõem expressamente acerca das férias, enquanto outras remetem às legislações que regulam os servidores públicos estaduais), é possível traçar um panorama acerca de quais defensores podem gozar de sessenta dias de férias. Esclareça-se que a consulta foi feita através dos sites institucionais (alguns disponibilizavam a legislação temática) e também por meio do Google (quando não havia disponibilização da legislação temática) e, por isso, caso haja eventual ato administrativo dispondo em contrário, este será flagrantemente ilegal. Os seguintes Estados garantem férias de sessenta dias: RJ, MS, MT, RO, TO, AP, PA, MA, BA e AL.
[9] Esta engloba os Advogados da União, os Procuradores Federais, os Procuradores da Fazenda Nacional e os Procuradores do Banco Central. São quatro carreiras distintas e cujo acesso depende de concurso público específico.
[10] Nos estados, cada lei orgânica da respectiva procuradoria irá dispor, entre outros assuntos, acerca das férias.
[11] É ingenuidade crer que todas as prerrogativas ou direitos decorrem pura e simplesmente da necessidade de garantir condições mínimas para o exercício da função. A pressão das entidades de classe, o reconhecimento social e dependência do poder político podem ajudar ou atrapalhar na busca por mais direitos travestidos de prerrogativas.