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Segunda fase da aplicação da pena: redução aquém do mínimo legal

Agenda 02/04/2014 às 15:25

A súmula 231 do STJ, segundo a qual a circunstância atenuante não pode reduzir a pena abaixo do mínimo legal, faz com que pessoas em situações totalmente diversas sejam condenadas a penas idênticas.

A aplicação da pena, entendida como a atividade judicial consistente em individualizar a reprimenda penal a ser imposta a alguém que tenha sido condenado pela prática de um delito, não pode estar dissociada dos postulados constitucionais, sobretudo dos direitos e garantias individuais do cidadão.

Daí porque a Súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual a incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal, apresenta um enunciado que não encontra respaldo legal no ordenamento jurídico pátrio, sobretudo por se tratar de interpretação que restringe a liberdade individual do cidadão.

Das regras que ditam a sistemática da aplicação da pena no Código Penal, não se existe qualquer proibição para que a pena possa ser reduzida aquém do mínimo legal na segunda fase de aplicação da pena, nem mesmo de maneira implícita – o que seria discutível do ponto de vista da legalidade estrita.

A ausência de norma que sustente o entendimento da Súmula 231 foi notada pelo ilustre penalista Ney Moura Teles:

“a presença de circunstâncias atenuantes pode fazer com que a pena seja reduzida a quantidade abaixo do grau mínimo, o que deve ocorrer pelo menos em todas as situações em que a pena-base, fixada com atenção às circunstâncias do art. 59 do Código Penal, tiver sido fixada no grau mínimo, e estiver presente pelo menos uma circunstância atenuante, sem o concurso de qualquer agravante. Vale dizer, na segunda etapa, o juiz, tendo fixado a pena-base no grau mínimo, verificando a existência de, pelo menos uma atenuante, deverá incidir, sobre o quantum fixado na primeira etapa, uma diminuição, fazendo com que a pena-base seja reduzida aquém do grau mínimo. Por que tal não poderia ser feito?

Por que a lei não permitiria tal operação?

Ora, a lei não a proíbe. Não há nenhuma norma informando tal impossibilidade, e, se não há vedação expressa, não se pode aceitá-la. Fernando Galvão afirmou que não há critérios legais que orientem o juiz quanto à determinação do quantum atenuador. Não é verdade. O critério geral incerto no art. 59, que deve presidir todas as etapas da aplicação da pena: a necessidade e a suficiência, da quantidade, para reprovação e prevenção do crime. O juiz atenuará, conforme seja o necessário e suficiente, dentro de seu prudente arbítrio. Só não há um critério expressa e especificamente determinado, como nas causas de diminuição, mas nem por isso se pode afirmar a inexistência de critério”.[1]

Realmente, não há qualquer norma jurídica, seja no Código Penal, seja em lei especial, que proíba, na segunda fase de aplicação da pena, a imposição de sanção abaixo do mínimo legal cominado.

Mas não é só o princípio constitucional da legalidade penal que é violado pelo entendimento do Superior Tribunal de Justiça. Referida súmula também afronta a igualdade, pois impõe que penas idênticas sejam aplicadas a pessoas que se encontram em situações diversas. Basta pensar que ao condenado que tenha sido reconhecida uma atenuante terá contra si a aplicação de pena idêntica a outro condenado que não faça jus a qualquer circunstância atenuadora, caso ambos tenham a pena-base fixada no mínimo legal.

Assim, a violação ao postulado da igualdade consiste justamente em dar tratamento isonômico a duas situações nitidamente distintas.

Ao impedir a redução da pena na segunda fase de sua aplicação, a Súmula - nas hipóteses de sua incidência - criou um piso mínimo não previsto em lei e com isso tornou a pena invariavelmente desproporcional, pois ela sempre será maior do que por lei deveria ser.

Não se pode perder de vista que, pela opção de nossa legislação, que adotou o sistema trifásico idealizado por Nelson Hungria, o que não pode ultrapassar os limites previstos na sanção imposta ao tipo penal é tão somente a pena-base, consoante o art. 59, inciso II, do Código Penal.

O legislador optou por estabelecer limites ao julgador apenas e tão-somente quando da aplicação da pena-base, que, no sistema trifásico, não se confunde com a aplicação das atenuantes.

O mesmo não ocorria no sistema bifásico de aplicação da pena, revogado pela Lei nº 7.209/84, no qual as circunstâncias agravantes ou atenuantes eram consideradas na primeira fase, juntamente com as circunstâncias judiciais, sendo que, na segunda fase, incidiam as causas de aumento e diminuição de pena.

Portanto, nos parece que a vedação contida na referida súmula parte de premissa equivocada, na medida em que a impossibilidade de aplicação das circunstâncias atenuantes aquém do mínimo legal se faz presente apenas no sistema bifásico, no qual a consideração das circunstâncias judiciais, atenuantes e agravantes são analisadas em única fase. No entanto, referido sistema é direito positivo revogado e superado com o advento da ‘nova’ parte geral do Código Penal editada em 1984.

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Nesse sentido, o magistério de Cezar Roberto Bittencourt:

“O equivocado entendimento de que ‘circunstância atenuante’ não pode levar a pena para aquém do mínimo cominado ao delito partiu de interpretação analógica desautorizada, baseada na proibição que constava no texto original do parágrafo único do art. 48 do Código Penal de 1940, não repetido, destaque-se, na Reforma Penal de 1984 (Lei n. 7.209/84). Ademais, esse dispositivo disciplinava uma causa especial de diminuição de pena — quando o agente quis participar de crime menos grave — mas impedia que ficasse abaixo do mínimo cominado. De notar que nem mesmo esse diploma revogado (parte geral) estendia tal previsão às circunstâncias atenuantes, ao contrário do que entendeu a interpretação posterior à sua revogação. Lúcido, também nesse sentido, o magistério de Caníbal quando afirma: “É que estes posicionamentos respeitáveis estão, todos, embasados na orientação doutrinária e jurisprudencial anterior à reforma penal de 1984 que suprimiu o único dispositivo que a vedava, por extensão — e só por extensão — engendrada por orientação hermenêutica, que a atenuação da pena por incidência de atenuante não pudesse vir para aquém do mínimo. Isto é, se está raciocinando com base em direito não mais positivo”[2]

No entanto, a opção legislativa pátria foi a do sistema trifásico, consoante se extrai do artigo 68 do Código Penal. Assim, na segunda fase de aplicação da pena, o legislador não repetiu a restrição que fez no artigo 59, inciso II. Ao contrário, foi expresso em afirmar que a as circunstâncias ali arroladas sempre seriam consideradas, como consta no artigo 65, caput, do Código Penal.

Repare-se que o legislador não opôs qualquer ressalva quando disse: sempre.

Sendo assim, a referida Súmula, com a devida vênia, não encontra respaldo na legislação, sendo, portanto, entendimento contra legem.

A tese que ora se defende vem ganhando adeptos na doutrina nacional, a ponto de não ser mais possível afirmar que o enunciado esposado na Súmula 231 do Egrégio Superior Tribunal de Justiça constitui entendimento dominante entre os juristas pátrios.

Cabe, aqui, citar o entendimento do penalista Juarez Cirino dos Santos:

“O limite de atenuação da pena por circunstâncias legais é controvertido, porque existem duas posições diferentes: a) posição dominante na literatura e na jurisprudência brasileira (condensada em súmula do STJ), adota como limite de atenuação da pena o mínimo da pena privativa de liberdade cominada no tipo legal; b) não obstante, crescente posição minoritária admite atenuação da abaixo do mínimo da pena cominada. Por duas razões principais: primeiro, não existe nenhuma proibição legal contra atenuar a pena abaixo do mínimo legal, porque o princípio da legalidade garante a liberdade do indivíduo contra o poder punitivo do Estado – e não o poder punitivo do Estado contra a liberdade do indivíduo; segundo, o critério dominante quebra o princípio da igualdade legal (no concurso de pessoas o co-réu menor de 21 anos é prejudicado pela fixação da pena no mínimo legal com base nas circunstâncias judiciais), porque direitos definidos em lei não podem ser suprimidos por aplicação invertida do princípio da legalidade. Aliás, a proibição de reduzir a pena abaixo do limite mínimo cominado, na hipótese de circunstâncias atenuantes obrigatórias, constitui analogia in malam partem, fundada na proibição de circunstâncias agravantes excederem o limite máximo da pena cominada – precisamente aquele processo de integração do Direito Penal proibido pelo princípio da legalidade. Mais não é preciso dizer”[3] (sem grifo no original).

O renomado professor Rogério Greco também registra sua posição:

“Objeto de muita discussão tem sido a possibilidade de se reduzir a pena-base aquém do mínimo ou aumentá-la além do máximo nesse segundo momento de fixação da pena. O STJ, por intermédio da Súmula nº 231, expressou o seu posicionamento no sentido de que “a incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal”. Essa, infelizmente, tem sido a posição da maioria de nossos autores, que, numa interpretação contra legem, não permitem a redução da pena-base em virtude da existência de uma atenuante, se aquela tiver sido fixada em seu patamar mínimo.

Dissemos que tal interpretação é contrária à lei porque o art. 65 não excepciona sua aplicação aos casos em que a pena-base tenha sido fixada acima do mínimo legal. Pelo contrário. O mencionado artigo afirma, categoricamente, que são circunstâncias que sempre atenuam a pena. Por que razão utilizaria o legislador o advérbio sempre se fosse sua intenção deixar de aplicar a redução, em virtude da existência de uma circunstância atenuante, quando a pena-base fosse fixada em seu grau mínimo?

(...)

O argumento de que o juiz estaria legislando se reduzisse a pena aquém do mínimo ou aumentasse alem do máximo não nos convence. Isto porque o art. 59 do Código Penal, que cuida da fixação da pena-base, é claro em dizer que o juiz deverá estabelecer a quantidade de pena aplicável nos limites previstos. O juiz jamais poderá fugir aos limites determinados pela lei na fixação da pena-base. Contudo, tal proibição não se estende às demais etapas previstas pelo art. 68 do Código Penal[4]. (sem destaque no original).

Cite-se, ainda, o ilustre doutrinador Luiz Regis Prado:

“As circunstâncias agravantes ou atenuantes não podem, em tese, conduzir à fixação da pena abaixo ou acima, respectivamente, dos limites mínimo e máximo abstratamente cominados. Entretanto, se na determinação da quantidade da pena-base aplicável o juiz deve ater-se aos limites traçados no tipo legal de delito (art. 59, II), uma vez fixada aquela, passa-se à consideração das circunstâncias atenuantes e das agravantes, em uma segunda fase, conferindo-se ao juiz a possibilidade de aplicar pena inferior ao limite mínimo, já que o artigo 68 não consigna nenhuma restrição. De conseguinte, embora vedada essa possibilidade no Código Penal de 1940, que adotava sistema bifásico para o cálculo da pena (com apreciação simultânea das circunstâncias judiciais e das agravantes e atenuantes), tem-se como perfeitamente admissível, diante do critério trifásico perfilhado pelo atual Diploma, que a sanção penal seja aplicada abaixo do limite mínimo abstratamente previsto[5].

O saudoso penalista Julio Fabbrini Mirabete, em seu Manual de Direito Penal, registra, em nota de rodapé, simpatia ao posicionamento ora defendido:

“Diante da redação dada ao Código pela lei nº 7.209, pode-se defender solução diversa, com a conclusão de que é possível a violação dos limites máximo e mínimo da pena aplicável na hipótese de reconhecimento de agravantes ou atenuantes, respectivamente. Enquanto para a fixação da ‘pena base’ se determina que devem ser obedecidos os ‘limites previstos’ da pena aplicável (art. 59, inciso II), o art. 68 não apresenta essa restrição ao dispor que, após essa fixação, ‘serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes’, liberando-se o julgador para a aplicação da pena superior ao máximo e inferior ao mínimo. Tal interpretação não era possível durante a lei anterior, visto que se entendia serem consideradas na fixação da ‘pena base’ as circunstâncias judiciais e as atenuantes e agravantes. Além disso, o art. 42 da lei anterior, referente à fixação da ‘pena base’, mencionava as ‘circunstâncias do crime’, entendendo-se que se referiam elas às agravantes e atenuantes. Tal obstáculo já não existe porque as ‘circunstâncias’ previstas no art. 59 não se referem à elas, como deixa claro o art. 68 ao estabelecer as fases do cálculo de aplicação da pena”[6].

Nunca é demais lembrar que, e aqui nos socorremos da lição de Amilton Bueno de Carvalho, “o limite máximo é garantia do cidadão contra o Leviatã e o mínimo o é daquele contra este. E o Estado pode diminuí-lo, via judicial, sem que ocorra violação ao princípio da legalidade – que é garantia do cidadão contra o Estado e não deste contra aquela”[7].

Em suma, aceitar o entendimento esposado na súmula 231 do STJ é ferir os princípios da isonomia, da proporcionalidade e da individualização da pena, posto que pessoas em situações totalmente diversas serão condenadas a penas idênticas, o que fere não apenas a verdadeira individualização da sanção criminal, mas antes, e principalmente, o sentimento de justiça.


BIBLIOGRAFIA

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Uma Revisão Conceitual da Aplicação da Pena - Pena Aquém do Mínimo: uma Garantia Constitucional. In: http://www.tex.pro.br/wwwroot/00/00_revisao_conceitual_CB.php.

CARVALHO, Amilton Bueno de. Atenuantes (em especial da confissão) – Pena aquém do mínimo: abordagem crítica. In: http://www.alessandramoraes.com/artigos/artigo04.pdf.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal - Parte Geral - volume I, 9ª Edição, Editora Impetus.

MIRABETE, Julio Fabbrini Mirabete. Manual de Direito Penal, 15ª ed., Atlas.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral, 4ª ed., RT.

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – Parte Geral, 2ª edição, Editora Lumen Juris.

TELES, Ney Moura. Direito Penal, v. I, Parte geral. 2ª ed., Atlas.


NOTAS

[1] Direito Penal, v. I, Parte geral. 2ª ed., Atlas, pp. 374 e 375.

[2] Uma Revisão Conceitual da Aplicação da Pena - Pena Aquém do Mínimo: uma Garantia Constitucional. http://www.tex.pro.br/wwwroot/00/00_revisao_conceitual_CB.php

[3] Direito Penal – Parte Geral, 2ª edição, Editora Lumen Juris, pp. 590/591.

[4] Curso de Direito Penal - Parte Geral - volume I, 9ª Edição, Editora Impetus, pp. 559/560.

[5] Curso de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral, 4ª ed., RT, p. 629.

[6] Manual de Direito Penal, 15ª ed., Atlas, p. 311.

[7] Atenuantes (em especial da confissão) – Pena aquém do mínimo: abordagem crítica. (http://www.alessandramoraes.com/artigos/artigo04.pdf).

Sobre o autor
Thiago Soares Piccolotto

Defensor Público do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PICCOLOTTO, Thiago Soares. Segunda fase da aplicação da pena: redução aquém do mínimo legal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3927, 2 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27416. Acesso em: 22 nov. 2024.

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