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A secularização das regras processuais brasileiras no século XIX.

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5. Uma conclusão possível

A remodelação do papel da Igreja no desempenho da atividade jurisdicional, remodelado ainda na primeira metade do século XIX, deve ser vista, portanto, sob a perspectiva de um esforço de construção de um Estado e de uma Nação, cuja criação do ordenamento jurídico, segundo destacou Andréa Slemian, “desdobrava-se na ambivalência entre a universalidade de princípios na sua interface com as realidades locais”, compondo uma síntese entre “a fundação dos pilares do Direito Público” (a Constituição), “um esforço de positivação” (a Codificação) e a “formação de uma cultura jurídica”27.

Vistas em conjunto todas essas iniciativas pode-se concluir que, ao longo do século XIX, elas importaram, muito antes da laicização do Estado brasileiro pela Constituição da República de 189128, na relativização do sistema do padroado decorrente do artigo 5º e 102, §§ 2° e 14, todos da Constituição do Império, os quais justificavam o aproveitamento pelo Estado da estrutura eclesiástica e vice-versa.

O Brasil não deixava de ser um Estado confessional, com uma religião oficial, mas um novo panorama cultural e a organização do Estado e de suas instituições ao longo do século XIX implicaram, sempre que possível29, na separação entre os negócios espirituais, afetos à ordem eclesiástica, e os seculares, afetos ao Poder Público.


Bibliografia

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Notas

1 Suprindo o espaço deixado por um sistema judiciário em que o órgão de cúpula — no caso brasileiro, o Supremo Tribunal de Justiça — não se desincumbia da tarefa de orientar o julgamento de casos das instâncias inferiores pela edição de precedentes. Isto porque, interposta a revista contra a decisão dada por uma das Relações do Império, o Supremo, concluindo pela violação da lei, sem adentrar ao “fundo da causa”, cassava a decisão da Relação com as razões pelas quais julgou a lei violada, remetendo a causa a outra Relação para que fosse definitivamente julgada. Essa forma de processamento gerou instabilidade, proporcionando, ainda, a falta de uniformidade na “praxe forense”, fazendo com que, aos poucos, como demonstrou José Reinaldo de Lima Lopes, o papel da interpretação das leis nos casos concretos fosse assumido por outra instituição do Governo Imperial, o Conselho de Estado. O oráculo de Delfos. Conselho de Estado no Brasil-Império. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 91-185.

2 Tzevetan Todorov deixa mais claro o assunto ao comentar as mudanças trazidas pelo espírito das Luzes: “Não é mais a autoridade do passado que deve orientar a vida dos homens, mas seu projeto de futuro. Nada é dito, entretanto, da experiência religiosa em si, nem da ideia de transcendência, ou de uma doutrina moral trazida por uma religião particular; a crítica tem em vista a estrutura da sociedade, não o conteúdo das crenças. A religião sai do Estado sem para tanto deixar o indivíduo” (...) “não tem por meta recusar as religiões, mas conduzir a uma atitude de tolerância e à defesa da liberdade de consciência” L’esprit des Lumières. Paris: Éditions Robert Laffont. 2006, p. 12.

3 Segundo José Reinaldo de Lima Lopes “a transição de um direito colonial para um direito nacional é um misto bastante particular de ruptura e continuidade”. “Iluminismo e jusnaturalismo no ideário dos juristas da primeira metade do século XIX”. In Istvan Jancso (org.) Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo-Ijuí: Hucitec, 2003, p. 200.

4 Andréa Slemian. Sob o império das leis. Constituição e unidade nacional na formação do Brasil. São Paulo: Hucitec, 2009, p. 304.

5 A respeito da utilização do termo Carta ou Constituição, como acima referido, esclarecedora é a lição de Cecília Helena Salles de Oliveira no sentido de que “o instrumento jurídico de 1824, por ter sido outorgado pelo Imperador, chama-se “Carta Constitucional” e assim foi tratado no primeiro reinado, particularmente pelas oposições parlamentares a D. Pedro. A partir, entretanto, das reformas de 1834 e 1840, discutidas e promulgadas pela Câmara e pelo Senado, tornou-se corrente o uso da expressão Constituição do Império”. Neste trabalho, far-se-á referência ao documento político como Constituição do Império. “O Conselho de Estado e o complexo funcionamento do governo monárquico no Brasil do século XIX”. Almanack Braziliense n. 5, maio de 2007, pp. 46-53, disponível em www.almanack.usp.br, acesso em 25 de junho de 2009.

6 Os benefícios eram providos segundo a lei de 28 de setembro de 1828 (art. 2º, §11), que manteve o sistema estabelecido no alvará de 14 de abril de 1781.

7 Teixeira de Freitas, ao “acomodar” ao foro do Brasil, na década de 1870, as Primeiras linhas sobre o processo civil, escritas pelo advogado português Joaquim José Caetano Pereira e Souza, em nota à impenhorabilidade dos benefícios e patrimônios eclesiásticos, esclarecia que os párocos eram considerados empregados públicos: “Reuni estas duas classes de bens porque os benefícios e patrimônios eclesiásticos tinham o fim comum de acudir com seus rendimentos à côngrua e honesta sustentação dos Ordenados em Ordens Sacras. Há hoje esta diferença entre eles, que os Patrimônios são de instituição meramente particular, ao passo que só ao Governo (Const. do Imp. Art. 102. § II) compete prover os benefícios eclesiásticos; de modo que os rendimentos destes são vencimentos de Empregados Públicos, que não podem ser absolutamente penhorados. Coerentemente os Avisos de 4 de junho de 1832 e de 24 de agosto de 1859 declararão que os párocos são Empregados Públicos” Joaquim José Caetano Pereira e Souza. Primeiras linhas sobre o processo civil: acommodadas ao fôro do Brazil até o ano de 1877 por Augusto Teixeira de Freitas, Rio de Janeiro: Typografia Perseverança. Tomo III,1979, pp. 31-32.

8 Na Assembleia Constituinte e na primeira legislatura, os 22 membros do clero só perdiam em número para os 48 bacharéis em direito e eram seguidos por 19 proprietários e homens de negócios. Interessante o registro das impressões de Candido Mendes de Almeida. Segundo o jurista, que não disfarçava sua orientação ultramontana: “foi a Câmara que contou em seu seio maior número de clérigos e que causou maiores estragos à doutrina católica. Entretanto, eram uma plêiade de talentos, senão brilhantes, notáveis, e faziam, como ilustrações, honra ao nascente Império. O elemento clerical não desempenhando mais sua missão caiu em prostração, que bem raros não são os de hoje alcançam uma cadeira nas Câmaras; e os que as conseguem primam por outros títulos e merecimentos.” Direito Civil Eclesiástico Brasileiro, t. 1. Rio de Janeiro, 1866, p. CCCXLII.

9D. Sebastião Monteiro da Vide. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Edições do Senado Federal, 2007, V.

10 José Rogério Cruz Tucci e Luiz Carlos de Azevedo. Lições de História do Processo Civil Lusitano. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 151.

11 Segundo Guilherme Braga da Cruz “somente no início do século XVII é que se rompe o derradeiro liame que prendia o problema do direito subsidiário à ideia inicial – que dominara o texto afonsino – de um conflito de jurisdições entre o poder temporal, simbolizado pelo direito romano, e o poder eclesiástico, representado pelo direito canônico”“O direito subsidiário na história do direito português”, Revista Portuguesa de História, t. 14, Coimbra, 1975, p. 252

12 O §12 da Lei da Boa Razão de D. José dizia: “havendo-me sido da mesma sorte presente que se tem feito na prática dos Julgadores, e Advogados outra grande perplexidades, e confusão com as outras palavras do sobredito preambulo da Ord. Liv. 3. tit. 64. que dizem: - E quando o caso de que se trata, não fôr determinado por Lei, estylo, ou costume dos nossos Reynos, mandamos, que seja julgado, sendo matéria que traga pecado, por os Sagrados Canones. E sendo materia, que não traga pecado, seja julgado pelas Leis Imperiaes, posto que os Sagrados Canones determinem o contraria: - sucitando-se com estas palavras hum conflito não só entre os textos do Direito Civil, mas até com os das minhas mesmas Leis:

E suppondo-se com erro manifesto para sustentar o mesmo conflito, que no fôro externo dos meus Tribunaes, e da Magistratura Temporal, se pode conhecer dos pecados, que só pertencer privativa, e exclusivamente ao fôro interior, e à espiritualidade da Igreja: Mando outro sim, que a referida suposição d’aqui em diante se haja por não escripta...deixando-se os referidos textos de Direito Canonico para os Ministros, e Consistórios Eclesiásticos os observarem (nos seus devidos, e competentes termos)” (mantida a grafia original)

13 Hércules confundido: sentidos improváveis e incertos do constitucionalismo oitocentista: o caso português. Curitiba, 2010, p. 279.

14 Jerônimo Vilella de Castro Tavares. Compendio de Direito Ecclesiástico para uso das academias jurídicas do Império.Rio de Janeiro: B L Garnier, 1882, pp.74-75.

15 Embora tivesse garantias definidas na Constituição do Império, prestava contas ao Ministério da Justiça e seus juízes respondiam por crimes de responsabilidade perante o Conselho de Estado, órgão auxiliar do Poder Moderador. Este foi um dos motivos que levaram à observância, pelos Juízes, dos pareceres do Conselho, os quais, depois de resolvidos pelo Imperador, transformavam-se em Avisos de observância obrigatória veiculados nos compêndios e revistas jurídicas.

16 Américo Jacobina Lacombe (coord). O clero no parlamento brasileiro v.1. Brasilia: Câmara dos Deputados – Centro de Documentação e informação. 1978.

17 Neste sentido José Reinaldo de Lima Lopes. O Oráculo de Delfos. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 193-194.

18 CAROATÁ, José Prospero Jehovah da Silva. Imperiaes resoluções tomadas sobre consultas da seção de justiça do Conselho de Estado; desde o anno de 1842 em que começou a funcionar o mesmo conselho, até hoje. Rio de Janeiro: B.L. Garnier, 1884, p. 396.

19 Idem.

20 Caroatá, Op. cit. p. 1035.

21Caroatá. Op. Cit. p. 1035.

22 Idem. p. 1036.

23 Idem. p. 1037.

24 Caroatá. Op. cit. p. 1037.

25 Caroatá. Op. cit., p. 1831.

26 Caroatá. Op. Cit. p. 1433.

27 “À nação independente um novo ordenamento jurídico: a criação dos Códigos Criminal e do Processo Penal na primeira década do Império do Brasil.” In Ribeiro, Gladys Sabino (org.). Brasileiros e cidadãos: modernidade política 1822-1930. São Paulo: Alameda: 2008, p. 205.

28 Antes da primeira Constituição da República promulgada em 1890, o governo provisório havia editado o Decreto 119-A de 7 de janeiro de 1890, extinguindo o padroado e proibindo a autoridade federal e os Estados de fomentarem ou interferirem no exercício de culto.

29 Quando na década de 1850 tentou-se organizar um registro civil, a sua implementação foi frustrada muito mais pela conjuntura de uma sociedade escravista que temia que a menção à cor ou ao estado de liberto implicasse em responsabilidade dos senhores pelo não cumprimento da Lei do Ventre Livre, que pela influência da Igreja. Cf. Vida privada e ordem privada no Império” in NOVAIS, Fernando A.( Coord) e ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.), História da vida privada no Brasil v.2. Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 83. Neste sentido Maria Luiza Ferreira de Oliveira. Após expor a ideia aqui divulgada a autora indaga: “diante da “pletora de leis” aprovadas em 1850-1851, diante do esforço em controlar o fim do tráfico, impor o Código Comercial, valia a pena a mobilização militar para fazer a contagem da população do país, que afinal de contas podia acabar expondo escravos ilegais, currais eleitorais fictícios, redes clientelares manipuláveis? “Resistência popular contra o Decreto 798 ou a “lei do cativeiro”: Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe, Ceará, 1851-1852”. In Monica Duarte Dantas (org.) Revoltas, motins, revoluções: homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011.

Sobre o autor
Rafael Issa Obeid

Procurador do Estado de São Paulo. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Bacharel em História e Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Processual Civil pela PUC-SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OBEID, Rafael Issa. A secularização das regras processuais brasileiras no século XIX.: A perda de influência do direito eclesiástico no Direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3942, 17 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27774. Acesso em: 2 nov. 2024.

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