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Cláusulas restritivas de testamento

Agenda 02/05/2014 às 15:36

Apresenta-se uma visão contemporânea das cláusulas restritivas de testamento, as quais visam proteger os herdeiros, mas também podem significar prejuízo à circulação de riquezas e facilitação de fraudes.

I. CONCEITO. CLÁUSULAS RESTRITIVAS: CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE, INCOMUNICABILIDADE E IMPENHORALIBILIDADE.

Bens inalienáveis são bens indisponíveis, o que significa que não podem transferidos de um acervo patrimonial para outro, seja a título oneroso, seja a título gratuito, ou que não sejam passíveis de apropriação. Existem bens que, por sua própria natureza, são inalienáveis. É o que ocorre, por exemplo, com o mar, o Sol, o ar, etc. Existem, também, bens que são inalienáveis por força da Lei, como é o caso de bens públicos e do bem de família. Entretanto, há, ainda, uma terceira espécie de bens inalienáveis. Trata-se daqueles que possuem essa qualidade por ato de vontade. Isto é, sobre estes bens são apostas cláusulas de inalienabilidade. O ordenamento jurídico não admite que esse tipo de cláusula seja estabelecido sobre bens próprios. Nesse sentido, é necessário que os bens gravados pertençam a um terceiro. Além disso, tal cláusula é, apenas, permitida em atos de disposição voluntária, como ocorre na doação e no testamento[i].

No Código Civil de 1.916, as cláusulas restritivas podiam ser impostas, de forma ampla, pelo testador, inclusive, sobre a legítima. Tendo em vista os inconvenientes causados por este tipo de cláusula, o legislador reduziu o âmbito seu de admissibilidade, conforme se observa no artigo 1.848 do atual Código Civil.

Art. 1848. Salvo se houver justa causa, declarada em testamento, não pode o testador estabelecer cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima.

Portanto, atualmente, para que se admitam cláusulas restritivas sobre a legítima, é necessário que haja justa causa, declarada em testamento, pelo testador. Como justa causa, entende-se o motivo suficientemente forte para autorizar a restrição. Trata-se de conceito aberto, cujos contornos mais exatos são proferidos pela jurisprudência e pela análise do caso concreto. Por isso, deve o testador ser claro e específico quanto à delimitação de suas razões. Afinal, a menção a fatos genéricos ou superficiais levaram à ineficácia das cláusulas restritivas Poderá esta vir a ser discutida pelos interessados, via judicial, quando da abertura do testamento.

No que se refere aos testamentos anteriores à vigência do Código Civil de 2002, deve-se observar o que dispõe o artigo 2.042:

Art. 2.042. Aplica-se o disposto no caput do art. 1.848, quando aberta a sucessão no prazo de um ano após aberta a sucessão no prazo de um ano após a entrada em vigor deste Código, ainda que o testamento tenha sido feito na vigência do anterior, Lei n 3.071, de 1º de janeiro de 1916; se, no prazo, o testador não aditar o testamento para declarar a justa causa de cláusula aposta à legítima, não subsistirá a restrição.

Isto significa que foi concedido efeito retroativo à norma estabelecida no caput do artigo 1.848, o que poderia fazer questionar sua validade. De todo modo, o que se depreende do aludido artigo é que o testador, que impôs cláusulas restritivas em testamento elaborado na vigência do Código de 1.916, teria um ano para, por outro testamento, elencar a justa causa. Caso contrário, não subsiste a cláusula.

De acordo com o artigo 1.911 do Código Civil, uma vez aposta cláusula de inalienabilidade a um bem, por ato de liberalidade, esta pressupõe, também, as cláusulas de impenhorabilidade e incomunicabilidade sobre o mesmo bem, conforme se observa abaixo:

Art. 1911. A cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica a impenhorabilidade e a incomunicabilidade.

Portanto, uma vez gravado com cláusula de inalienabilidade por ato voluntário, o bem se torna, automaticamente, incomunicável e impenhorável.

No Código Civil de 1.916, em seu artigo 1.723, não se dispunha qualquer forma de limitação à imposição de cláusulas restritivas pelo testador[ii]. As intenções, quanto à permissividade do instituto, eram louváveis. Pretendia-se impedir que o herdeiro dilapidasse os bens e viesse a prejudicar sua própria subsistência[iii]. Pode-se dizer, inclusive, que as cláusulas restritivas de testamento surgiram em decorrência da própria imposição da legítima sobre os bens do testador. Afinal, legítima é a porção da herança de que não pode dispor o testador que tem herdeiros necessários, uma vez que esta parcela de patrimônio pertence a estes. Também a legítima tem por objetivo a garantia da posteridade e da família. Contudo, diante da possibilidade de prodigalidade, desatinos e incompetência administrativa de herdeiros, as cláusulas restritivas surgiram como instrumento eficaz para que o testador pudesse precaver-se e salvaguardar a subsistência de seus familiares mesmo após sua morte[iv].  


II. NATUREZA JURÍDICA DAS CLÁUSULAS RESTRITIVAS

Existem três principais teorias que visam estabelecer a natureza jurídica das cláusulas restritivas: a teoria da incapacidade do proprietário, a teoria da obrigação de não alienar ou de não fazer e a teoria da indisponibilidade real da coisa.

De acordo com a teoria da incapacidade do proprietário, cujo principal representante foi Marcel Planiol, a cláusula restritiva teria natureza incapacitante ligada à pessoa e não ao objeto. Entretanto, esta forma de incapacidade não se confundiria com as incapacidades relativas e absolutas previstas na legislação. Sendo assim, em havendo uma cláusula restritiva, o objeto continua a ser alienável, em tese. Porém, o proprietário, em virtude da cláusula, é impedido de fazê-lo. Haveria, nesse sentido, um impedimento legal para a prática de determinado ato. Contudo, referida tese sofreu muitas críticas. Entre elas, Michel Dimitrescu arguiu a impossibilidade de incapacidades convencionais, uma vez que a capacidade seria uma qualidade somente atribuível por Lei, não sendo admissível confundir a atribuição de incapacidade, determinada por lei, com a indisponibilidade de bens, criada pela vontade dos interessados.

Segundo a teoria da obrigação de não alienar, que conta com adeptos como Henri Rongier, a cláusula restritiva seria uma espécie do gênero obrigação de não fazer assumida pelo proprietário, que deve cumprir um encargo imposto ao legatário ou donatário. Sendo assim, em havendo cláusula restritiva, haveria, na verdade, uma obrigação, de cunho pessoal, assumida pelo titular do bem, de não alienar o bem yma gratificado com este. Porém, essa tese também sofreu críticas. Discorda do aludido posicionamento, por exemplo, Orlando Gomes, que ensina que, caso a cláusula restritiva tivesse natureza obrigacional, a disposição do bem acarretaria, simplesmente, em perdas e danos, o que desnaturaria, por completo, os fins da cláusula restritiva.

Por fim, a teoria da indisponibilidade real da coisa, cujo principal representante é Paul Bretonneau, enquadra as cláusulas restritivas como verdadeiros ônus reais sobre a coisa. Nesse sentido, eventual descumprimento acarreta nulidade do ato. Não se trata, contudo, de direito real sobre coisa alheia, mas de gravame que aniquila a o direito de dispor. Eis a única, entre as três teorias que, efetivamente, coaduna-se com a essência da cláusula de inalienabilidade e lhe confere sentido jurídico[v].

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III. CRÍTICAS ÀS CLÁUSULAS RESTRITIVAS

A possibilidade ilimitada, conferida ao testador pelo Código Civil de 1.916, de estabelecer cláusulas restritivas veio a mostrar-se menos benéfica do que, a priori, imaginou-se e, assim, desenvolveu-se forte corrente doutrinária em oposição a este tipo de restrição.

É o caso, por exemplo, do autor Carlos Alberto Dabus Maluf, segundo o qual, é alegável, em face das cláusulas de inalienabilidade, uma série de objeções práticas, econômicas e constitucionais. No que se refere às objeções práticas, salienta, em primeiro lugar, que existe arbitrariedade na diferenciação entre cláusulas de inalienabilidade temporária e vitalícia, uma vez que, para que a vedação seja perpétua, bastaria renovar, sucessivamente, restrições temporárias. Em segundo lugar, alega que as cláusulas de inalienabilidade seriam inúteis, uma vez que visariam à proteção de interesses mínimos, que poderiam ser protegidos de outras maneiras, ou ilegítimos.

Quanto às objeções econômicas, ressalta os desdobramentos dessa espécie de cláusula sobre a livre circulação de riquezas. Argui, em princípio, que tais cláusulas levam o Estado a deixar de arrecadar impostos sobre direitos de transmissão. Em seguida, alega que se trata de elementos de insegurança jurídica, comprometendo os interesses da própria sociedade. Por fim, afirma que são fontes de fraudes, uma vez que facilitam a simulação da condição dos bens do devedor. Trata o autor, ainda, das objeções constitucionais, elencando como primeira a ofensa ao princípio da liberdade de trabalho, uma vez que a faculdade de alienar é um de seus atributos. A segunda obseção constitucional estaria atrelada à legítima. Nesse sentido, não poderia o testador limitar os direitos dos herdeiros que lhes pertencem após a morte do de cujos, uma vez que verificado o falecimento, esses direitos devem ser transferidos em sua plenitude[vi]. Caso contrário, a legítima pode ser reduzida à completa inutilidade, o que desvirtua a própria essência da reserva legal aos herdeiros necessários[vii]. Finalmente, haveria ofensa aos princípios da igualdade, da liberdade e da propriedade[viii].

Mesmo após as mitigações quanto à admissibilidade das cláusulas restritivas sobre a legítima, há, ainda, quanto a estas, forte oposição. Segundo o autor Sílvio de Salvo Venosa, continuam a existir implicações constitucionais, sobretudo, a partir da Constituição da República de 1988. Afirma que a cláusula de inalienabilidade tolhe o direito de propriedade no que se refere ao fim social a que se destina. Adverte, também, que afronta o próprio direito à dignidade da pessoa humana[ix].


IV. ESPÉCIES DE CLÁUSULAS RESTRITIVAS

IV. 1. CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE

Conforme se ressaltou, anteriormente, inalienabilidade é um atributo do bem que o torna indisponível a qualquer título. A inalienabilidade pode ser total ou parcial, conforme se estenda ou não, a todos os bens que integram a legítima. Nesse sentido, será parcial quando a cláusula de inalienabilidade incidir somente sobre parte destinada, obrigatoriamente, aos herdeiros necessários.

Considerando todos os bens que integram a herança, a inalienabilidade pode ser absoluta ou relativa. Será absoluta a cláusula que impede a alienação a qualquer pessoa que seja e será relativa quando for proibida a alienação de certas formas ou a determinados indivíduos. Em havendo cláusula de inalienabilidade absoluta, esta pode relacionar-se a alguns ou a todos os bens e, no silêncio sobre a matéria, entende-se que incide sobre a totalidade.  Cumpre salientar que a cláusula de inalienabilidade relativa não é uma condição, mas, apenas, estabelece uma limitação à restrição de disponibilidade.

A cláusula de inalienabilidade pode, ainda, ser vitalícia ou temporária. Sendo vitalícia, não existe termo, portanto seus efeitos extinguem-se, somente, com a morte do titular do bem. É relevante, nesse sentido, ressaltar que a cláusula de inalienabilidade não ultrapassa a vida do titular do direito, que herdou o bem. Por outro lado, a cláusula pode ser temporária nas hipóteses em que seja aposto termo final que anteceda a morte do titular. Considera-se, ainda, temporária a cláusula sujeita a condição resolutiva. Todavia, sobre o assunto, há de se observar as regras atinentes à teoria geral das condições, sendo vedadas as puramente potestativas, bem como as impossíveis, sob pena de nulidade da cláusula[x].

O efeito substancial da cláusula de inalienabilidade, conforme ressaltado, é a vedação de dispor do bem. Nesse sentido, não é possível transferi-lo voluntariamente[xi]. Tendo em vista que a hipoteca e o penhor constituem início de uma alienação, também são vedados. Por isso, diz-se que a cláusula de inalienabilidade implica, também, a impenhorabilidade do bem. Acarreta, ainda, sua incomunicabilidade, em vista do que dispõe o já mencionado artigo 1.911 do Código Civil. E uma vez que o bem se encontra fora do comércio, quando gravado pela inalienabilidade, não se admite, ainda, a sua aquisição por usucapião, o que, caso admitido, viria, inevitavelmente, a ser fonte de fraudes. Além disso, não é autorizada a renúncia a determinada pessoa, já que esta constituiria forma de burlar a vontade do testador.  

A não ser que haja menção expressa, não são abrangidos pela cláusula de inalienabilidade os frutos e rendimentos do bem. Também não são atingidos pela disposição os credores do espólio. Assim, apenas incidirá a restrição, após devidamente pagos os credores, sobre o que restar.

Segundo o parágrafo único do artigo 1.911, que se refere a quaisquer bens gravados com cláusula de inalienabilidade, e o parágrafo 2º do artigo 1.848 do Código Civil:

Parágrafo único. No caso de desapropriação de bens clausulados, ou de sua alienação, por conveniência econômica do donatário ou do herdeiro, mediante autorização judicial, o produto da venda converter-se-á em outros bens, sobre os quais incidirão as restrições apostas aos primeiros.

§2 º Mediante autorização judicial e havendo justa causa, podem ser alienados os bens gravados, convertendo-se o produto em outros bens, que ficarão sub-rogados nos ônus dos primeiros.

De acordo com aludidos dispositivos legais, é possível a alienação dos bens gravados, desde que com autorização judicial, por conveniência econômica do donatário ou herdeiro ou, ainda, na hipótese de desapropriação. Contudo, havendo saldo remanescente da venda do bem, haverá sub-rogação desse montante em outros bens, sobre os quais incidirá a cláusula de inalienabilidade. O mesmo se verifica em caso de recebimento de indenização securitária recebida em virtude de ocorrência de sinistro com o imóvel. 

Indubitavelmente, a sub-rogação, aplicável também às cláusulas de impenhorabilidade e incomunicabilidade, possibilita atenuar os prejuízos causados ao herdeiro pela imposição de cláusulas restritivas. Entretanto, é imperioso que o juiz, em procedimento de jurisdição voluntária, avalie o caso concreto e, se necessário, tome providências de ofício, para alcançar a solução mais adequada e conveniente. Não se permite, contudo, a exclusão do gravame, mas, sim, a sub-rogação deste em outros bens.

Fora das hipóteses previstas na Lei, a alienação dos bens gravados é nula de pleno direito. Cabe ao juiz reconhecê-la de ofício ou aos qualquer herdeiro, cônjuge ou testamenteiro moverem ação judicial com esse objetivo. A nulidade opera-se ainda que terceiro adquirente esteja de boa-fé, devendo seus prejuízos ser ressarcidos por meio de ação de perdas e danos[xii].

Contudo, conforme aludido, é necessário que o juiz analise o caso concreto, também, para evitar situações de extrema injustiça e desrespeito à dignidade da pessoa humana. Por exemplo, pode haver situação em que o titular do bem herdado seja acometido por doença grave e deva ser submetido à internação hospitalar, necessitando de recursos auferidos pela venda do bem. Nesse caso, é evidente que a vontade do testador não deve prevalecer sobre o direito à vida do indivíduo[xiii].

É imperioso salientar, por fim, que não se admite que o testador estabeleça cláusula que vede a sub-rogação. Afinal, apesar de as disposições de última vontade dever ser respeitadas, não podem estas contrariar imperativos de textos legais. Portanto, uma vez admitida a sub-rogação pela Lei, a essa permissividade deverá se curvar o testador[xiv].

IV.2. CLÁUSULA DE INCOMUNICABILIDADE

De acordo com Caio Mario da Silva Pereira, trata-se da “cláusula segundo a qual o bem permanece no patrimônio do beneficiado, sem constituir coisa comum ou patrimônio comum, no caso de casar-se sob regime de comunhão de bens”[xv]

Portanto, mediante a cláusula de incomunicabilidade, visa o testador proteger os bens da herança, impedindo que integrem o patrimônio do cônjuge do herdeiro, independentemente, do regime de bens adotado no casamento. Dessa forma, havendo dissolução do vínculo conjugal, os bens serão mantidos, exclusivamente, no patrimônio do herdeiro, uma vez que não farão parte da meação.

Deve-se ressaltar que a imposição de cláusula de incomunicabilidade não implica a inalienabilidade dos bens. Por outro lado, como já mencionado, a inalienabilidade, necessariamente, embute a cláusula de incomunicabilidade. Afinal, caso assim não fosse, quando da meação, os bens gravados com cláusula de inalienabilidade passariam para o cônjuge não herdeiro de forma livre e desembaraçada, o que viria a desatender à vontade do testador. Além disso, apode-se arguir que a própria comunicação, em si, em caso de comunhão universal de bens, já se constitui verdadeira forma de alienação, uma vez que, com o casamento, passa a haver condomínio de todos os bens trazidos pelo casal, o que não se admite em relação ao bem gravado. Nesse sentido, entendeu o Supremo Tribunal Federal, publicando a Súmula 49[xvi].

IV.3. IMPENHORABILIDADE

Dizer que um bem é impenhorável significa que este não está sujeito à penhora em face de dívidas contraídas pelo seu titular. É certo que, pelo artigo 1.911 do Código Civil, a inalienabilidade também pressupõe a impenhorabilidade. Entretanto, é de se questionar se é possível estabelecer a impenhorabilidade de maneira isolada. Segundo Caio Mario da Silva Pereira, essa possibilidade é, plenamente, admissível, uma vez que se trata de institutos que tem objetivos distintos. Enquanto a cláusula de inalienabilidade impede atos de disposição do bem, a cláusula de impenhorabilidade visa proibir a utilização do bem na satisfação de créditos. Além disso, a intangibilidade do bem em face dos credores não se dá por ato de vontade do próprio devedor, mas sim do testador ou doador, ainda que estabelecida, presuntivamente, a seu favor[xvii].

A cláusula de impenhorabilidade é oponível a quaisquer credores, independente da origem do crédito e de seu vencimento[xviii]. Assim como as cláusulas de inalienabilidade, as cláusulas de impenhorabilidade também podem ser absolutas, relativas, vitalícias ou temporárias. O autor Francisco Morato sustenta posição segundo a qual, mesmo após a morte do clausulado, não deveria o bem tornar-se passível de penhora. Argumenta, que, dessa forma, os herdeiros do clausulado faleciam responderiam, indevidamente, por suas dívidas. Alega, ainda, que a impenhorabilidade não se destina somente à proteção dos herdeiros diretos, mas dos interesses de toda a família. Em sentido oposto, posiciona-se Estevam de Almeida, segundo o qual findo o termo, ocorrida a condição resolutiva ou falecido o clausulado, o bem volta à penhorabilidade[xix].

Outra similaridade consiste no fato de apenas poderem ser apostas por doador ou testador sobre os bens doados ou da herança. Isto significa que não se podem onerar os próprios bens com cláusula de impenhorabilidade[xx]. Além disso, da mesma forma como corre nas cláusulas de inalienabilidade, apenas se estendem aos frutos e rendimentos se essa for, expressamente, a vontade do testador. Contudo, quanto a isto existe certa divergência doutrinária, afinal, dispõem os artigo 649, I, e 650 do Código de Processo Civil[xxi]:

I – São absolutamente impenhoráveis os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução.

Art. 650. (...) à falta de outros bens podem ser penhorados os frutos e rendimentos dos bens inalienáveis.

Graças ao artigo 650 do Código de Processo Civil, existe entendimento doutrinário segundo o qual, ainda que expressamente abrangidos pela cláusula de inalienabilidade, os frutos e rendimentos do bem gravado podem ser penhorados à falta de outros bens. Discorda, contudo, Sílvio de Salvo Venosa, segundo o qual apenas se abre esta possibilidade caso o testador não faça incidir a cláusula de impenhorabilidade ou inalienabilidade, especificamente, sobre os frutos e rendimentos[xxii].

O autor Carlos Alberto Dabus Maluf sustenta, por outro lado, que a impenhorabilidade dos frutos e rendimentos deveria decorrer da própria inalienabilidade ou impenhorabilidade do bem, uma vez que estes constituem, muitas vezes, a fonte de renda para a subsistência dos herdeiros e, sendo assim, caso penhorados, restariam inúteis aos herdeiros. Contudo, reconhece que a penhora de frutos e rendimentos de bens inalienáveis, gravados ou não com cláusula de impenhorabilidade, deve obedecer aos limites da Lei processual, sob pena de nulidade da estipulação do testador. Todavia, de acordo com Azevedo Marques, é certo que, se os frutos e rendimentos já estiverem, absolutamente, desvinculados de bem inalienável, poderão ser penhorados[xxiii].

IV. 4. CLÁUSULA DE CONVERSÃO DOS BENS DA LEGÍTIMA

A cláusula de conversão dos bens da legítima era uma faculdade auferida ao testado, pelo Código Civil de 1.916, pela qual este podia determinar que os bens da legítima fossem convertidos em bens de outra espécie. A finalidade desta cláusula era que os herdeiros, na medida do possível, recebessem bens da mesma natureza.

Atualmente, esse tipo de cláusula é vedado pelo parágrafo 1º do artigo 1.848:

§ 1º Não é permitido ao testador estabelecer a conversão dos bens da legítima em outros de espécie diversa.

Sua proibição, no atual ordenamento civilista, deu-se em virtude da série de inconvenientes gerados por essas disposições. Afinal, a conversão gerava uma morosidade e complexidade excessivas e inúteis ao processo. Contudo, ainda hoje, podem vigorar, caso o testamento tenha sido elaborado antes da vigência do atual Código Civil. Em face disto, existem, ainda, discussões doutrinárias sobre o momento da conversão, alegando, parte da doutrina, que deve ser anterior à partilha e, outra, que deve ser posterior[xxiv].


V. CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE E FIDEICOMISSO

Fideicomisso é cláusula testamentária por meio da qual o testador impõe a um herdeiro ou legatário, em certo tempo depois de sua morte ou pelo advento de ocorrência de condição posterior ao seu falecimento, que transmita a outrem herança ou legado. Nesse sentido, a propriedade que adquire o herdeiro é restrita e resolúvel. Portanto, existe, para este herdeiro, o dever de conservar e transferir a herança para pessoa determinada.

Caso o encargo de transferência não exista, o que se verifica é, na verdade, uma cláusula de inalienabilidade, uma vez que há o dever de conservar. Da mesma maneira ocorre se o terceiro a quem se deve transferir o bem não seja, suficientemente, reconhecível.


CONCLUSÃO

Ao final, pode-se concluir que, na verdade, a cláusulas restritivas de testamento surgiram no intuito de proteger os próprios herdeiros. Todavia, atualmente, se não adotadas com cautela podem significar grande prejuízo à circulação de riquezas e a facilitação de fraudes. Por isso mesmo é que o legislador do novo Código Civil limitou a possibilidade de estabelecimento desse tipo de cláusula, autorizando-a, sobre a legítima, somente quando houver justa causa disposta no próprio testamento.


Notas

[i] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito das Sucessões. vol. 7. 5 ed. São Paulo: Atlas. 2005. p. 168.

[ii] VELOSO, Zeno. Comentários ao Código Civil: Parte Especial. Do Direito das Sucessões. Da Sucessão testamentária; Do Inventário e da Partilha. (Artigos 1.857 a 2.027). Antônio Junqueira Azevedo, coord. vol. 21. São Paulo: Saraiva. 2003. p. 234.

[iii] Op. cit. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito das Sucessões. p. 169.

[iv] MALUF, Carlos Alberto dabus. Cláusulas de Inalienabilidade. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005. p. 29.

[v] MALUF, Carlos Alberto dabus. Cláusulas de Inalienabilidade. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005. p. 32-36.

[vi] Op. cit. MALUF, Carlos Alberto dabus. Cláusulas de Inalienabilidade. p. 25-29.

[vii] Op. cit. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito das Sucessões. p. 169.

[viii] Op. cit. MALUF, Carlos Alberto dabus. Cláusulas de Inalienabilidade. p. 30-31.

[ix] Op. cit. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito das Sucessões. p. 182.

[x] Op. cit. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito das Sucessões. p. 171-172.

[xi] Op. cit. MALUF, Carlos Alberto dabus. Cláusulas de Inalienabilidade. p. 39.

[xii] Op. cit. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito das Sucessões. p. 173-175 e 181.

[xiii] Op. cit. MALUF, Carlos Alberto dabus. Cláusulas de Inalienabilidade. p. 40-41.

[xiv] Op. cit. MALUF, Carlos Alberto dabus. Cláusulas de Inalienabilidade. p. 70.

[xv] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil: Direito das Sucessões. Rio de Janeiro: Forense. 1974, v 4. p. 90

[xvi] Op. cit. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito das Sucessões. p. 175-176.

[xvii] Op. cit. PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil: Direito das Sucessões. Rio de Janeiro: Forense. 1974, v 4. p. 90.

[xviii] Op. cit. MALUF, Carlos Alberto dabus. Cláusulas de Inalienabilidade. p. 49.

[xix] Op. cit. MALUF, Carlos Alberto dabus. Cláusulas de Inalienabilidade. p. 51.

[xx] Op. cit. MALUF, Carlos Alberto dabus. Cláusulas de Inalienabilidade. p. 50.

[xxi] Op. cit. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito das Sucessões. p. 176-177.

[xxii] Op. cit. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito das Sucessões. p. 177.

[xxiii] Op. cit. MALUF, Carlos Alberto dabus. Cláusulas de Inalienabilidade. p. 58.

[xxiv] Op. cit. VENOSA, Sílvio de Salvo.: Direito Direito Civil das Sucessões. p. 178-179.

Sobre a autora
Erika Nicodemos

Advogada atuante na área cível, sócia do escritório Erika Nicodemos Advocacia, graduada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito da Propriedade Intelectual pelo Centro de Extensão Universitária, em convênio com a Universidad Austral de Buenos Aires. Pós-graduada em Direito Empresarial e especialista em Direito Digital e Planejamento Sucessório pela Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas. Mestre em Direito Internacional Privado pela Università degli Studi di Roma – La Sapienza. Mestranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Membro efetivo da Comissão de Direito de Família e das Sucessões da Ordem dos Advogados do Brasil, São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NICODEMOS, Erika. Cláusulas restritivas de testamento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3957, 2 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27803. Acesso em: 22 dez. 2024.

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