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Lei Complementar 135/2010: natureza jurídica das inelegibilidades e diálogo constitucional

Agenda 24/04/2014 às 10:15

A Lei Complementar 135/2010 introduziu no sistema eleitoral brasileiro relevantes modificações na Lei de Inelegibilidades, as quais, diante do tratamento de temas constitucionais, devem ser confrontadas com os princípios fundamentais da Constituição.

Lei Complementar 135/2010: natureza jurídica das inelegibilidades e diálogo constitucional

 

Complementary Law 135/2010: the legal nature of ineligibility and dialogue constitutional

Luciano Feres Fonseca da Cunha

Analista Judiciário – Área Judiciária

Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais

RESUMO1

 

A Lei Complementar 135/2010 introduziu no sistema eleitoral brasileiro relevantes modificações na Lei de Inelegibilidades, as quais, diante do tratamento de temas constitucionais, devem ser confrontadas com os princípios fundamentais prescritos na Constituição Federal. Prefacialmente, em virtude de sua multifacetada base fática, é imperioso definir com precisão a natureza jurídica das inelegibilidades, procedendo-se, a seguir, ao seu confronto com os princípios constitucionais da irretroatividade, devido processo legal substancial, proporcionalidade e presunção de inocência.  Somente a partir de uma leitura constitucionalizada do referido diploma normativo é que será possível aferir sua compatibilidade com os demais preceitos do ordenamento jurídico.

 

Palavras-chave: Natureza Jurídica das Inelegibilidades. Lei Complementar n.º 135/2010. Direitos fundamentais e novas inelegibilidades. Princípios Constitucionais.

ABSTRACT

 

The Complementary Law 135/2010 introduced in the brazilian electoral system changes in the Law of Ineligibility, which, before the treatment of constitutional issues, must be confronted with the basic principles prescribed in the Constitution. Prefatory, because of its multifaceted factual basis, it is imperative to accurately define the legal status of ineligibility, proceeding, then, to his confrontation with the constitutional principles of retroactivity, substantive due process of law, proportionality and presumption of innocence. Only from a constitutionalized reading of that normative statute is that you can assess their compatibility with the other precepts of the law.

Keywords: Legal status of ineligibility. Complementary Law No. 135/2010. Fundamental rights and new ineligibility. Constitucional Principles.

Sumário: 1. Introdução. - 2. Natureza Jurídica das Inelegibilidades. - 3. Direitos fundamentais e as inelegibilidades decorrentes de ilícitos. - 3.1. Novas inelegibilidades: aplicação retroativa ou prospectiva? - 3.2. Inelegibilidade antes do trânsito em julgado: uma questão constitucional. - 4. Conclusão

 

 

 

1 INTRODUÇÃO

Inserida no arcabouço jurídico pátrio pela Lei Complementar n.º 64/90, a Lei de Inelegibilidades visa desenvolver aplicabilidade ao art. 14, § 9º, da Constituição Federal[1], prescrevendo restrições à capacidade eleitoral passiva.

Em 04 de junho de 2010, originário do movimento popular em defesa de princípios republicanos, foi publicada a Lei Complementar n.º 135/2010, promovendo alterações na referida Lei de Inelegibilidades e visando conciliar o tratamento jurídico da matéria com o clamor público pela defesa da moralidade.

Não obstante, apesar do desiderato valorativo que desencadeou a confecção das referidas alterações, sólidas controvérsias surgiram diante do confronto de suas disposições com preceitos constitucionais relacionados à matéria, mormente no que tange ao âmbito dos direitos e garantias fundamentais, máxima expressão do Estado Democrático de Direito.

Os primeiros questionamentos se fundaram quanto ao âmbito temporal de aplicação das novas disposições, tendo em vista que a Lei Complementar n.º 135/2010 previu tipos penais ensejadores de inelegibilidade até então não previstos na Lei Complementar n.º 64/90, tornando-se duvidosa a possibilidade de sua aplicação retroativa.

Esta foi a tônica dos primeiros debates travados acerca da matéria, secundado pela possibilidade franqueada pelo novo diploma normativo de reconhecer a aplicação da inelegibilidade antes do trânsito em julgado da decisão judicial condenatória, bastando, para isso, o pronunciamento de um órgão judicial colegiado.

Não obstante os valores buscados pelo legislador, imperioso se torna estabelecer um diálogo entre os novos dispositivos da Lei de Inelegibilidades com a Constituição Federal, buscando definir a subsunção ou não da espécie à sistemática de tratamento dos direitos fundamentais

Assim, para o deslinde destas questões, o presente estudo pretende estabelecer a correta determinação da natureza jurídica das inelegibilidades e promover o enquadramento constitucional da matéria, com vistas a aferir a compatibilidade dos dispositivos da Lei Complementar n.º 135/2010 com a Constituição Federal.

 

2 NATUREZA JURÍDICA DAS INELEGIBILIDADES

A análise dos institutos jurídicos em questão e, por consequência, a verificação da constitucionalidade dos dispositivos da Lei Complementar n.º 135/2010, somente pode ser feita a partir da correta compreensão da natureza jurídica das inelegibilidades.

Nesta empreitada, que doravante será travada, depara-se o hermeneuta com duas vertentes teóricas: a primeira, enquadrando o instituto no quadro geral de inelegibilidades; a segunda, diferenciando-se a base fática ensejadora da aplicação da inelegibilidade.

A primeira peca por sua generalidade e abstração, mormente por pretender determinar uma natureza jurídica única e absoluta para toda e qualquer inelegibilidade. Seria como se o exegeta pretendesse capturar todas as faces de um cubo em apenas uma fotografia, tarefa esta que, diante de sua impossibilidade manifesta, indicia o erro de toda e qualquer construção que tenha por norte este objetivo.

De fato, não seria possível analisar dentro de uma mesma perspectiva, v.g., a situação do indivíduo condenado por uma sentença penal condenatória pela prática do crime de tráfico ilícito de entorpecentes com a situação daquele inelegível para concorrer ao cargo de presidente da república uma vez que, sendo Ministro de Estado, não procedeu à sua desincompatibilização no prazo legal.

A segunda orientação teórica, aqui defendida, pugna por determinar a natureza jurídica do instituto em função da base fática ensejadora de sua aplicação. Para tanto, é de curial importância pontuar o estudo em uma perspectiva ex ante, ou seja, precisar a atividade investigativa no evento que dá causa à aplicação da inelegibilidade.

Para este discrímen, é importante separar os eventos ensejadores da inelegibilidade em duas classes: os lícitos e os ilícitos. Os primeiros, por não apresentarem roupagem colidente com as normas preceptivas do ordenamento jurídico, revelam-se como simples incompatibilidades, as quais são eleitas pelo legislador como situações inconciliáveis com o exercício de mandatos eletivos.

Sob o manto da teoria contratualista da formação dos Estados, goza o legislador de certa liberdade na determinação dos eventos lícitos ensejadores desta incompatibilidade, mormente por se referir à parcela de direitos renunciáveis pelos anuentes do contrato social, admitindo-se, inclusive, a retroatividade das normas para alcançar os efeitos dos atos/negócios jurídicos celebrados anteriormente à sua previsão.

Esta retroatividade referente às inelegibilidades de caráter não-sancionatório encontra seu supedâneo na teoria da retroatividade média[2], segundo a qual, o preceito normativo da lei nova retroage para alcançar os efeitos dos atos jurídicos anteriores. Em uma análise hipotética, se eventualmente não fosse prevista a inelegibilidade do cônjuge em qualquer preceito do ordenamento jurídico, e fosse promovida uma alteração legislativa prevendo tal situação, seria possível aplicá-la para alcançar as pessoas que se casaram antes da vigência da lei, pois, o casamento não seria o ato a ser alcançado, mas apenas os seus efeitos.

Por outro lado, quando a aplicação de uma inelegibilidade decorrer da prática de um ilícito, as conclusões não podem ser as mesmas, pois, transitam as restrições pela parcela de direitos que nem mesmo a maioria pode decidir restringir.

É importante ser compreendido que as causas de inelegibilidade decorrentes de eventos ilícitos possuem uma dinâmica própria que não pode ser analisada na vala comum daquelas decorrentes de eventos lícitos. Aliás, estas últimas melhor seriam compreendidas se fossem enquadradas como simples incompatibilidades.

Estabelecida esta premissa cumpre estabelecer desde já que as inelegibilidades decorrentes de uma base fática ilícita possuem nítida natureza sancionatória, a qual deflui não apenas da dinâmica causal do direito sancionatório, como também do próprio sistema jurídico-positivo.

Esta espécie de inelegibilidade, por situar-se topologicamente após o cometimento de um ato ilícito, assume natureza jurídica punitiva. A análise que deve ser feita transcende o mero aspecto ôntico de considerar o instituto em si, demandando uma necessária intervenção axiológica para concluir o enquadramento do instituto segundo sua dinâmica causal.

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É dizer: não se pode isolar o instituto entre parênteses e conceder uma análise laboratorial estanque da dinâmica social na qual está inserido. A atividade hermenêutica deve necessariamente levar em consideração a indissociável ligação do instituto com o evento que lhe deu causa.

A propósito de demonstrar o elo associativo entre um evento ilícito e a consequência atribuída pelo ordenamento jurídico, traz-se a colação os ensinamentos propostos por Karl Larenz[3], para o qual, dentro de uma perspectiva mais ampla, endossou inegável contribuição ao estudo da norma jurídica:

“A proposição jurídica enlaça, como qualquer outra proposição, uma coisa com a outra. Associa a situação de fato circunscrita de modo geral, à previsão normativa, uma consequência jurídica, também ela circunscrita de modo geral. O sentido dessa associação é que, sempre que se verifique a situação de facto indicada na previsão normativa, entra em cena a consequência jurídica, quer dizer, vale para o caso concreto. [...]

 

O sentido do enlace do pressuposto de facto com a consequência jurídica não é, como na proposição enunciativa, uma afirmação, mas uma ordenação de vigência. O dador da norma não diz assim: assim é de facto; mas diz: assim deve ser de Direito, assim deve valer”.

Os argumentos propostos pelo doutrinador tedesco, no âmbito da metodologia jurídica, são aplicáveis ao tema das inelegibilidades, confirmando-se que, qualquer evento colocado topologicamente após a prática de um ilícito, a este se liga indissociavelmente, apresentando-se como sua inarredável consequência.

Daí conclui-se que tal espécie de inelegibilidade exsurge como um juízo de reprovação àquele que levou a efeito uma conduta contrária ao ordenamento positivo. Esta censura negativa exercida sobre o ato ilícito assume inafastável feição sancionatória.

Aliás, obter dictum, na seara do direito germânico, as inelegibilidades decorrentes de ilícitos penais possuem previsão no Código Penal Alemão (StGB – Strafgesetzbuch), como efeito colateral da sentença penal condenatória[4]:

“§ 45. Perda da capacidade oficial de elegibilidade e direitos de voto. (1) Quem é condenado por um crime à prisão de pelo menos um ano, perde por um período de cinco anos, a capacidade de ocupar cargos públicos e de obter os direitos de eleições públicas”.

A ideia determinante para a ocorrência da inelegibilidade reside no pressuposto fático do perfazimento de uma das situações legais eleitas pelo legislador como determinantes de sua aplicação. A relação de causa-consequência nas inelegibilidades de origem ilícita é inegável.

Como dito, mais que uma consideração ontológica, a discussão aqui é faz-se no plano da axiologia, fundamentando-se a inelegibilidade, neste caso, como um juízo de reprovação incidente sobre uma conduta que atentou contra o ordenamento jurídico.

A propósito, no que concerne à caracterização sancionatória das inelegibilidades decorrentes de eventos ilícitos, deve ser observado que não há qualquer instrumento à disposição do operador no arcabouço jurídico pátrio apto para afastar a aplicação desta inelegibilidade, a qual apresenta-se cogente e impositiva, devendo ser suportada pelo destinatário de sua aplicação, revelando-se absolutas e sancionatórias, portanto. Por outro lado, no que concerne àqueloutras inelegibilidades, decorrentes de atos/negócios lícitos, faculta o legislador que seus eventuais destinatários se desvencilhem de sua aplicação, quando estatui prazos de desincompatibilização, exaustivamente previstos na Lei Complementar n.º 64/90.

Em síntese, defender uma visão holística das inelegibilidades, aquela que propugna a determinação una de sua natureza jurídica, é deturpar a relação estabelecida pela norma entre a causa e a sua consequência, apresentando-se a tese diferenciadora, aqui defendida, de maior acerto científico, variando a natureza jurídica de acordo com a licitude do evento que lhe deu causa.

3 Direitos fundamentais e as inelegibilidades decorrentes de ilícitos

Especificada a correta natureza jurídica das inelegibilidades, cumpre analisá-las dentro do sistema constitucional de direitos e garantias fundamentais, tarefa que passa a ser enfrentada.

As inelegibilidades constituem-se como um mecanismo restritivo da capacidade eleitoral passiva, refletindo, remotamente, na colocação de limites ao exercício dos direitos políticos expressos na Constituição da República.

Estes últimos, como espécies pertencentes ao gênero dos direitos fundamentais, gravitam em torno dos atributos da dignidade da pessoa humana, situação esta que enleva à exponencial importância a escorreita interpretação de seus desdobramentos[5].

Integrantes da 1ª geração dos direitos fundamentais, os direitos políticos abrangem, conforme Gilmar Mendes[6], “o direito de votar, de participar na organização da vontade estatal e no direito de ser votado”.

Possuindo as inelegibilidades um poder restritivo do alcance de tal direito fundamental, toda e qualquer atividade exegética deverá levar em consideração sua natureza jurídica em cotejo com a envergadura valorativa do direito fundamental ao qual se opõe.

É imperioso destacar que, para as inelegibilidades decorrentes de atos/negócios lícitos, conforme dito alhures, goza o legislador de liberdade para consagrar seu reconhecimento legal, inclusive no que se refere ao seu alcance temporal, uma vez que tal conclusão é ínsita à noção de contrato social.

Não obstante, quando a questão envolve o poder sancionatório do Estado, fiel titular do monopólio punitivo, as regras são mais rígidas, não podendo ser tolhidos os direitos inerentes à condição humana. Ofenderia a dignidade do ser humano a existência de qualquer norma que admitisse, por exemplo, a aplicação retroativa de sanções previstas por uma lei nova, sendo este o tema do tópico a seguir.

3.1 Novas inelegibilidades: aplicação retroativa ou prospectiva?

Uma indagação: diante de todo o contexto acima vergastado, seria possível a aplicação retroativa do novo art. 1º, inciso I, alínea e, da lei complementar n.º 64/90, o qual prescreve tipos penais ensejadores de inelegibilidade a situações não previstas na lei anterior? Poderia, v. g., aplicar-se a sanção de inelegibilidade para os crimes contra o patrimônio privado praticados antes da vigência da referida lei?

Refletindo a inelegibilidade uma causa restritiva da capacidade eleitoral passiva, indiretamente tal instituto reflete uma limitação a um direito fundamental, qual seja, aos direitos políticos, impondo-se, portanto, uma resposta negativa. Mais do que isso. Especificamente em relação às inelegibilidades decorrentes de ilícitos, assumindo as mesmas uma natureza sancionatória, tratar-se-ia de uma frontal violação à garantia fundamental individual à irretroatividade da lei gravosa, previsto rol do art. 5º da Constituição Federal.

Esta análise se faz imperiosa na medida em que as inovações legislativas que versarem sobre limitações à capacidade eleitoral passiva deverão ser cotejadas com os direitos aos quais se opõem. Daí a importância de determinar-se a natureza jurídica da inelegibilidade, pois, tratando-se daquelas decorrentes de um ilícito, não poderão ser aplicadas retroativamente, posto sua natureza sancionatória.

A propósito da envergadura valorativa do princípio da irretroatividade, veja-se Gilmar Mendes[7]:

“O princípio da anterioridade e da legalidade penal consagram direito fundamental não submetido a restrição expressa. [...]

 

[..] Ressalvadas as questões associadas a problemas estritamente técnico-jurídicos, como aquele referente à lei temporária ou à definição do tempus delicti, não está o legislador autorizado a proceder a qualquer intervenção que reduza o âmbito de aplicação desse direito”.

Assim, não seria dado ao legislador infraconstitucional excepcionar o princípio em questão, e permitir o alcance retroativo da Lei Complementar n.º 135/2010, devendo esta premissa pautar toda e qualquer atividade hermenêutica.

Outrossim, impende salientar que, apesar do art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal, positivar a irretroatividade da lei penal, decerto que o poder constituinte originário tornou expresso menos do que pretendeu. O que se busca no dispositivo em questão é a irreatroatividade de qualquer lei sancionatória, e não apenas a penal, sob pena de vulnerar outros princípios inerentes ao Estado Democrático de Direito, como os princípios do devido processo legal substancial, da segurança jurídica, da confiança e da proporcionalidade.

A propósito do princípio da confiança, deve ser ponderado que, neste caso, constitui-se em uma contraface do princípio da irretroatividade das leis sancionatórias, sendo oportuno colacionar importante reflexão proposta por Canotilho[8]:

“O homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e proteção à confiança como elemntos constitutivos do Estado de Direito. Estes dois princípios – segurança jurídica e proteção à confiança – andam estreitamente associados, a ponto de alguns autores considerarem o princípio da proteção da confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurnça jurídica. Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com o elementos objetivos da ordem jurídica – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização de do direito – enquanto a proteção da confiança se prende mais com as componentes subjetivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos”.

Ora, pautando-se as discussões na seara do direito sancionatório, não é lícito ao Estado surpreender o anuentes do contrato social[9] com sanções de alcance retroativo, o que se revelaria inconcebível em qualquer ordenamento de origem democrática e consensual.

Prosseguindo na análise jus fundamental, deve ser observado que ninguém será privado de seus bens ou direitos sem observância substancial do devido processo legal. Este último deve garantir não apenas que seja observado o procedimento legalmente previsto, mas que a decisão na qual culmine seja substancial e razoavelmente justa. Para tanto, mais que uma técnica de decidir, trata-se da ciência de interpretar.

Seria substancialmente justa uma interpretação que culminasse no esvaziamento do conteúdo protetivo de determinado direito fundamental?

A resposta negativa se impõe. É que deflui da concepção substancial do devido processo legal o princípio da salvaguarda do núcleo essencial, o qual limita as possibilidades de restrição a um direito fundamental de modo a admitir somente aquelas que não vulnerem a essência do instituto.

Sendo assim, toda e qualquer restrição a um direito fundamental somente pode ser admitida se efetivada dentro de certos limites, os quais visam garantir a intangibilidade de seu núcleo protetivo, constituindo-se, igualmente, em uma implicação da doutrina do limite dos limites[10], ou dos limites imanentes.

Admitir a aplicação retroativa na situação acima testilhada, é infirmar a própria existência do princípio da irretroatividade gravosa das leis sancionatórias e, bem assim, dos direitos políticos como espécie de direito fundamental. 

Portanto, as novas inelegibilidades previstas na Lei Complementar n.º 135/2011, quando revestirem-se de natureza jurídica sancionatória, não podem ser aplicadas aos fatos ocorridos antes de sua publicação, sob pena de frontal colidência com os princípios acima referidos.

3.2 Inelegibilidade antes do trânsito em julgado: uma questão constitucional

 

A Lei Complementar n.º 135/2010 inovou no quadro de inelegibilidades ao admitir a possibilidade de sua incidência antes da existência de um pronunciamento judicial definitivo, quando versarem sobre as seguintes matérias previstas nas alíneas do art. 1.º:

“[...] d) os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes;

e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes:

h) os detentores de cargo na administração pública direta, indireta ou fundacional, que beneficiarem a si ou a terceiros, pelo abuso do poder econômico ou político, que forem condenados em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes;

j) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, por corrupção eleitoral, por captação ilícita de sufrágio, por doação, captação ou gastos ilícitos de recursos de campanha ou por conduta vedada aos agentes públicos em campanhas eleitorais que impliquem cassação do registro ou do diploma, pelo prazo de 8 (oito) anos a contar da eleição;

l) os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena; [...]”

A par da múltipla base fática ensejadora das inelegibilidades acima, sobressalta a existência de um denominador comum a todas elas: todas são decorrentes da existência de um ilícito (ilícito eleitoral nas alíneas d, h e j; ilícito penal na alínea e; ilícito civil-administrativo na alínea l), ou seja, sancionatórias.

Sendo assim, analisando-se sob o viés constitucional, seria possível a aplicação prematura da sanção de inelegibilidade antes do trânsito em julgado da decisão judicial proferida por órgão colegiado?

Prefacialmente, cumpre verificar qual o tratamento que a Constituição Federal concede ao tema da limitação dos direitos políticos, para somente a partir daí se verificar a legitimidade do texto infraconstitucional que pretende consagrar uma limitação antecipada da capacidade eleitoral passiva.

Perscrutando o texto constitucional, é possível verificar que o mesmo condiciona ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória tanto suspensão de direitos políticos quanto à perda do mandato eletivo

 

“Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:

III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;

 

Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:

VI - que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado”.

 

Reconhecendo a envergardura valorativa dos direitos ao qual se opõem, o poder constituinte condicionou, nos casos acima referidos, a limitação dos direitos políticos à existência do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Ora, se o próprio Estatuto Fundamental condiciona a suspensão de direitos políticos e a perda do mandato eletivo ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória, como seria possível ao legislador infraconstitucional pretender aplicar a sanção de inelegibilidade prematuramente à decisão judicial definitiva?

Decerto que este descompasso no tratamento da matéria permite concluir pela ilegitimidade do legislador complementar para, por uma espécie legislativa de hierarquia inferior à Constituição, conceder ao tema das inelegibilidades um tratamento mais rigoroso àquele concedido à suspensão de direitos políticos e à perda de mandato eletivo.

Outrossim, cumpre reconhecer que, além de pretender limitar um direito político por mecanismo não previsto na Constituição Federal (inexistência de trânsito em julgado), constitui-se tal medida em clara afronta ao princípio da presunção de inocência, previsto no art. 5º, LVII.

O referido dispositivo prescreve que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Neste ponto, deve ser asseverado que, mais que uma regra específica da processualística penal, reflete a norma em comento um princípio do Estado Democrático de Direito, no qual, segundo os princípios da confiança e da segurança jurídica, estende as implicações daquele postulado a outras searas distintas do direito penal.

De fato, não seria possível, até mesmo racional, admitir a presunção de inocência na seara penal, e infirmá-la nas searas política, administrativa, constitucional e eleitoral.

O referido princípio permeia qualquer ordenamento de origem democrática, como um instrumento limitador de excessos e abusos de origem estatal. Aliás, diga-se que a própria ideia de constitucionalismo se encontra atrelada a esta aplicação difusa dos direitos e garantias fundamentais.

Atualmente, qualquer medida que tencione excepcionar o princípio da presunção de inocência, somente se justifica dentro de um sistema de cautelaridade, como ocorre com as prisões processuais, as quais, somente diante da necessidade do caso concreto, é que poderão ser decretadas.

Neste ponto, poderia ser arguido: admitindo-se exceções pontuais ao princípio da presunção de inocência, seria razoável admitir a limitação cautelar da liberdade de locomoção (prisão processual) e não admitir a limitação cautelar da capacidade eleitoral passiva (inelegibilidade)?

A resposta positiva se impõe. É que, especificamente em relação à prisão, esta instrumentaliza o objeto principal do jus puniendi estatal, ou seja, realiza-se cautelarmente em relação aos fins específicos do processo penal.

No que se refere à limitação cautelar da capacidade eleitoral passiva, ou mesmo prematura, como pretendido pela Lei Complementar n.º 135/2010, tal forma de entender implica em frontal colisão com o tratamento concedido em relação à suspensão de direitos políticos e à perda de mandato eletivo, situações que, conforme o texto constitucional, exigem o trânsito o julgado.

Portanto, admitindo o princípio da presunção de inocência um espaço de conformação/limitação, seria legítima a limitação cautelar da capacidade eleitoral passiva somente se estivesse prevista em dispositivo de estatura constitucional, sob pena de se violar o sistema de garantias ao qual nosso ordenamento está submetido.

Sendo assim, conclui-se pela inconstitucionalidade dos dispositivos da lei de inelegibilidades que preveem a aplicação prematura da sanção de inelegibilidade antes do trânsito em julgado, uma vez que incompatível com o tratamento da matéria previsto nos artigos 15, inciso III, e 55, inciso VI, ambos da Constituição Federal, e, bem assim, afronta ao art. 5º, inciso LVII.

4 CONCLUSÃO

 

A Lei Complementar n.º 135/2010, fruto do movimento popular da sociedade civil organizada, pretendeu sedimentar no ordenamento jurídico mecanismos de controle da moralidade e idoneidade dos postulantes a mandatos eletivos.

Apesar do legítimo desiderato impulsionador de tal movimento, convém observar a necessária relação de proporcionalidade entre meios e fins, pois, permitir a intervenção pontual do legislador infraconstitucional no plano dos direitos e garantias fundamentais constitui-se em perigoso precedente para, em futuras ocasiões, vulnerar outros princípios constitucionais.

A propósito, oportunas as considerações de Salo de Carvalho[11], segundo o qual os direitos fundamentais possuem status de intangibilidade, inserindo-se na esfera do não-decidível, sobre o qual sequer a totalidade pode decidir.

Por este motivo, é imperioso que se proceda a uma leitura constitucionalizada dos dispositivos da lei complementar, reconhecendo a aplicação dos princípios e demais mecanismos de proteção aos direitos e garantias fundamentais.

Demonstrada a inadequação da tese holística das inelegibilidades, foi demonstrado que, em função da ilicitude do evento que lhe deu causa, assumirá aquela nítido caráter sancionatório, submetendo-se a matéria ao tratamento jurídico na quadra constitucional.

Esta observação permite concluir que os novos tipos penais incluídos pela Lei Complementar n.º 135/2010 não podem ensejar a aplicação retroativa da sanção de inelegibilidade, revelando-se inconstitucional toda e qualquer interpretação que pretenda estender preteritamente tal sanção aos crimes praticados antes vigência da referida lei.

Ademais, no mesmo sentido impende concluir pela inconstitucionalidade dos dispositivos da lei de inelegibilidades que determinam o reconhecimento da causa restritiva da capacidade eleitoral passiva antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Tal previsão ofende o texto constitucional, não apenas por malferir o princípio da presunção de inocência, como também por pretender conceder um tratamento mais gravoso que o concedido pelo texto constitucional à perda de mandato eletivo e à suspensão dos direitos políticos, casos em que a Lei Fundamental exige o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Por estas considerações, a par de reconhecer a envergadura valorativa do movimento que originou a Lei Complementar n.º 135/2010, é preciso relembrar que a autoridade da Lei Fundamental deve ser preservada, não podendo ser desrespeitada, mesmo que por vontade da maioria.

A propósito, ao invés de se pretender o reconhecimento prematuro de uma inelegibilidade, sem a existência de um título judicial transitado em julgado, o que se deveria buscar é conceder ao Poder Judiciário os meios necessários para promover um célere julgamento, seja aumentando o número de magistrados, seja decotando o vasto arsenal de recursos que tornam perenes as discussões nas instâncias pretorianas.

O atalhamento de tal caminho, podando garantias constitucionais e vulnerando direitos fundamentais, revela-se inconcebível aos olhos da Constituição Federal.

Referências

 

BOBBIO, Norberto; BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna. (tradução Carlos Nelson Coutinho) 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1996.

 RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. Niterói: Editora Impetus, 2007.

 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3ª Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ª edição revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2009.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000.

CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.

 (footnotes)


[1] Versão revisada (alterações inseridas em 2012).Publicado na Revista de Estudos eleitorais / Tribunal Superior Eleitoral. - Vol. 1, n. 1 (2012) - . - Brasília : Tribunal Superior Eleitoral, 2012, ff. 65/80.


[1]  Art. 14, § 9º, Consituição Federal.  Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

[2]   Na doutrina, encontra-se os seguintes graus de retroatividade: máxima - a lei nova ataca a coisa julgada e os fatos consumados;  média - a lei nova atinge os efeitos pendentes de ato jurídico verificados antes dela; e mínima: a lei nova atinge apenas os efeitos dos atos anteriores produzidos após a data em que ela entra em vigor.

[3]   LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3ª Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 356.

[4]   Nebenfolgen - § 45Verlust der Amtsfähigkeit, der Wählbarkeit und des Stimmrechts. (1) Wer wegen eines Verbrechens zu Freiheitsstrafe von mindestens einem Jahr verurteilt wird, verliert für die Dauer von fünf Jahren die Fähigkeit, öffentliche Ämter zu bekleiden und Rechte aus öffentlichen Wahlen zu erlangen.

[5]   RAMAYANA, 2007, p. 71.

[6]   MENDES, 2009, p. 779.

[7]  MENDES, 2009, p. 646.

[8]   CANOTILHO, 2000, p. 86.

[9]   Acerca do contrato social, é importante invocar os ensinamentos de Norberto BOBBIO (1996, p. 64), para o qual “se a única forma de legitimação do poder político é o consenso daqueles sobre quem esse poder se exerce, na origem da sociedade civil deve ter existido um pacto, se não expresso, pelo menos tácito, entre os que deram vida a tal sociedade. Mais do que um fato histórico, o contrato é concebido como uma verdade de razão, na medida em que é um elo necessário da cadeia de raciocínios que começa com a hipótese de indivíduos”.

[10]   Schranken-Schranken. Segundo a teoria do limite dos limites as restrições aos direitos fundamentais somente se legitimam quando realizadas de maneira limitada.

[11]   CARVALHO, 2001, p. 17.

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Publicado na Revista de Estudos eleitorais / Tribunal Superior Eleitoral. - Vol. 1, n. 1 (2012) - . - Brasília : Tribunal Superior Eleitoral, 2012, ff. 65/80.

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