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Carta Magna da Internet

Agenda 28/04/2014 às 09:28

Na abertura da Net Mundial - conferência global sobre governança da Internet debateu-se sobre a criação de uma Constituição Mundial.

Na abertura da Net Mundial - conferência global sobre governança da Internet debateu-se sobre a criação de uma Constituição Mundial para a Internet ou de uma Magna Carta de direitos civis essenciais à comunicação global. O debate contou com a análise do Marco Civil da Internet, aprovado na véspera pelo Congresso Nacional. Como disse o criador da web, Berners-Lee:

...é preciso manter a neutralidade da rede, livre de discriminação política ou de cunho econômico, sempre respeitando o direito à privacidade. O cientista elogiou os esforços brasileiros para aprovar o Marco Civil e disse que o documento serve de exemplo para documentos futuros. No entanto, ressaltou que a internet não tem fronteiras e que cresce além das nações (grifos nossos)[1].

Além de todo o debate ideológico de se manter a net livre do jugo econômico, prevalecendo o Princípio da Neutralidade, há que se destacar que a rede mundial de comunicações avança sobre/contra a soberania imposta pelas fronteiras fictícias do Estado nacional.

Então, temos dois fatores conjugados: 1) o poder econômico mostra toda sua sanha para lucrar (controlar) o acesso e a comunicação global; 2) o Poder Político perde força e representatividade diante das tecnologias sociais (em que pese a negação de privacidade movida pelo Império). Por hora, no Marco Civil da Internet nacional, venceu a defesa do Princípio da Neutralidade.

Marco Civil da Internet

O Marco Civil regulatório da Internet, no Brasil, vai funcionar como uma espécie de Constituição da Internet, com princípios, garantias, direitos e deveres básicos dos cidadãos que também são usuários. O texto retrata as condições gerais de uso de seus usuários, prestadores de serviços e provedores de conexão, e ainda detalha o papel do Poder Público. Algumas garantias se perderam no debate político, como o arquivamento dos dados; no entanto, o principal foi assegurado.

Princípio da Neutralidade

O Princípio da Neutralidade impede que a internet vire uma espécie de TV a cabo, em que se cobraria pelos "pacotes de serviços" prestados. Os assinantes do plano básico teriam acesso apenas a e-mail e às redes sociais mais comuns. O plano premium permitiria acessar músicas e vídeos. Já o plano superpremium daria direito de fazer download de arquivos. Portanto, sem a proteção da neutralidade, é óbvio que a rede deixaria de ser aberta e se reduziria a um gigantesco campo de negócios.

Na verdade, caminhávamos para isso, com lobbies de muito poder representando as Teles, em Brasília; mas aí, então, estourou o escândalo internacional das lideranças e das presidências grampeadas. Estava evidente, naquele momento, que a telemática e a vida digital precisavam de contornos mais democráticos e seguros, com freios e responsabilidades destinadas aos seus operadores. Por isso, em parte, o negócio se converteu no país, havendo um desconforto enorme e sem nenhuma legitimidade para que aprovassem a cobrança dos pacotes de serviços. É evidente que a fatura política seria cobrada na reeleição.

Magna Carta Global

Em todo caso, a ideia de uma Magna Carta Global também é interessante por dois aspectos: a) há uma recuperação simbólica da carta inglesa dos direitos civis; b) propõe-se um avanço material no desdobramento dos direitos humanos fundamentais.

Não estamos habituados a discutir os direitos humanos neste plano, sobretudo no Brasil, porque ainda nos debruçamos sobre as negativas formais e reais dos direitos humanos de primeira geração, que são exatamente os direitos conquistados a partir da Magna Carta de João Sem Terra (ou Bill of Rights), em 1215, e reafirmados com a Lei de Habeas Corpus, de 1679.

Direitos Civis

Na prática, lutamos para que o cidadão não seja acusado, preso ou morto na ação policialesca – sem que se apresentasse nenhum mecanismo jurídico permissivo do uso de força letal, como seria a legítima defesa do próprio policial. Lutamos para que haja reforma agrária e para que os índios tenham suas terras demarcadas – a fim de que não fossem expulsos do território que habitaram por séculos. Lutamos para que os adversários políticos não sejam convertidos em inimigos de Estado; lutamos para conter a crescente criminalização das relações sociais, como se propõe com a Lei Antiterrorismo; lutamos contra o ranço autocrático que ainda prospera diante dos “valores” expostos na Lei de Segurança Nacional.

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Lutamos para que o favelado tenha direito à habitação; para que o trabalhador sem-terra não seja morto por assassinos profissionais. Lutamos para que a educação pública forme cidadãos ativos, além dos analfabetos funcionais (atualmente são mais de 80 milhões); lutamos e morremos, todo dia um pouco, para que o pobre não morra na porta do hospital público que já não tem leitos ou médicos para atendê-lo. Lutamos para que a ética não seja uma virtude, mas sim um dever-ser; para que haja mais justiça formal e material; para que a corrupção em pandemia possa ser controlada.

Lutamos para regular o poder econômico que quer consumir em fogo toda a Amazônia e as demais reservas naturais – o Ufano-Fausto ficaria lisonjeado neste país que devora todas as energias saudáveis e honestas (da natureza e do homem); lutamos pensando que um dia, quem sabe, como otimista do direito difuso e coletivo, o lema do Saber é Poder (de Bacon) seja um indício de que construímos uma cultura que não mais se orgulha da ignorância e do anti-intelectualismo.

Ainda há luta pela liberdade

É por isso – e por muito mais – que não debatemos minimamente a relevância social do Princípio da Neutralidade aplicado à rede mundial de comunicação. Em parte, não debatemos porque ainda não fomos informados medianamente do que significaria ter de pagar por cada site que visitássemos (acessar e-mails) ou pelas fotos postadas nas páginas pessoais. Neste dia, se um dia o Marco Civil Regulatório da Internet vier a ser deformado, teremos uma rebelião de jovens e crianças que já se acostumaram a marcar rolezinhos pela Internet.

Nossa perspectiva de cidadania é ínfima, seja junto ao povo, seja graduando-se nas relações com juristas e cientistas sociais. Aliás, até hoje, ainda se acredita que o cidadão é o eleitor – é uma súmula de nossa deformação e crendice jurídica. Simplesmente não sabemos o que são os direitos civis: alguns acham que são os direitos de família. Basta um teste, verificando em casa, com amigos e conhecidos, e pedindo a eles uma definição desses direitos essenciais. Com as exceções de praxe, não saberão nem dizer que se trata da mais simples liberdade. Essa mesma liberdade que se tem na rede livre – por enquanto. (Aliás, prevê-se que a Presidência da República possa regulamentar por Decreto – como ocorre em toda preciosa reserva fascista hoje se defende a democracia diante dos abusadores; amanhã se defende a democracia, dos democratas).


[1] http://tecnologia.ig.com.br/2014-04-23/pai-da-web-pede-paz-para-internet-e-na-presenca-de-dilma-elogia-o-marco-civil.html.

Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Carta Magna da Internet. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3953, 28 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27945. Acesso em: 2 nov. 2024.

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