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Liminar em mandado de segurança: natureza jurídica e importância histórica.

Uma tentativa de reenquadramento dogmático em face das últimas reformas processuais

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Agenda 01/04/2002 às 00:00

Sumário: 1. Considerações iniciais. — 2. Conceito de medida liminar. — 3. A liminar em mandado de segurança: sua natureza jurídica antecipatória. — 4. A natureza antecipatória do pedido de suspensão. —5. A liminar em mandado de segurança como primeiro passo para uma tutela de segurança de mérito com certo grau de abstração. 6. Conclusões. — Referências bibliográficas.


1.Considerações iniciais.

Muito já se escreveu sobre o mandado de segurança; mais ainda sobre o provimento liminar nele previsto. Sem pretensões de novidade, deseja-se com o presente artigo traçar um panorama histórico da referida medida de urgência, classificando-a como modalidade de tutela antecipatória.

Implicações práticas deste posicionamento são inúmeras, não sendo mera briga de nomes, sempre vã, máxime em Direito.

O advento da tutela antecipada genérica —prevista no arts. 273 e 461 do Código de Processo Civil—, dentre outras inúmeras conseqüências, gerou a necessidade de serem repensadas e reestudadas as medidas de urgência, principalmente as não-cautelares, de modo a dar a cada qual a melhor disciplina dogmática.

É o nosso propósito.


2. Conceito de medida liminar.

A Medida Provisória de número 1.570, de 26 de março de 1997, como é cediço, que posteriormente foi transformada na Lei 9.494/97, passou a disciplinar a matéria da antecipação genérica da tutela, de forma a restringir-lhe a amplitude nas hipóteses em que figurarem no pólo passivo quaisquer dos entes integrantes da Fazenda Pública.

De fato, inúmeros são os dispositivos normativos que limitam a concessão das medidas antecipatórias contra o Poder Público —desde a vetusta reintegração de posse, passando pelo mandado de segurança, sempre se protegeram os entes públicos de medidas concedidas inaudita altera parte. Muito já se discutiu sobre a sua constitucionalidade, consolidando, entretanto, o Supremo Tribunal Federal (1), o entendimento pela sua higidez. Maiores considerações sobre o assunto, portanto, são inoportunas, até mesmo porque extrapolariam os limites deste trabalho. (2)

Em assim sendo, aplicam-se à tutela antecipada as mesmas restrições contidas nos artigos 5º, e seu parágrafo único, e 7º da Lei n. 4.348/64, assim como no artigo 1º e seu § 4º da Lei n. 5.021/66, e nos artigos 1º, 3º e 4º da Lei n. 8.437/92.

Nota-se, com facilidade, que todos os dispositivos legais restritivos da medida antecipatória referem-se, sempre, à expressão "medida liminar", sendo imprescindível, assim, a análise do seu significado e da sua abrangência. A outra trincheira da discussão, ademais, é a demonstração dos casos em que incidem estas limitações.

Por medida liminar deve-se entender aquela concedida in limine litis, i. e., no início da lide, sem que tenha havido ainda a oitiva da parte contrária. Assim, tem-se por liminar um conceito puramente topológico, caracterizado apenas por sua ocorrência em determinada fase do procedimento, o seu início. Como dissemos em outra oportunidade, "para nós, liminar não é substantivo —não se trata de um instituto jurídico. Liminar é a qualidade daquilo que foi feito no início (in limine)." (3) Adjetivo, pois.

Adroaldo Furtado Fabrício, em artigo que já se tornou um clássico, delineia com impressionantes clareza e precisão o significado de tal expressão: "Como no sentido comum dos dicionários leigos, liminar é aquilo que se situa no início, na porta, no limiar. Em linguagem processual, a palavra designa o provimento judicial emitido in limine litis, no momento mesmo em que o processo se instaura. A identificação da categoria não se faz pelo conteúdo, função ou natureza, mas somente pelo momento da provação. Nada importa se a manifestação judicial expressa juízo de conhecimento, executório ou cautelar; também não releva indagar se diz ou não com o meritum causae nem se contém alguma forma de antecipação de tutela. O critério é exclusivamente topológico. Rigorosamente, liminar é só o provimento que se emite inaudita altera parte, antes de qualquer manifestação do demandado e até mesmo antes de sua citação." (4)

Neste sentido também se filiam Calmon de Passos (5), Humberto Theodoro Júnior (6),este último em franca adesão ao pensamento de Adroaldo Fabrício, dentre tantos outros doutrinadores. Conferir, ainda, o trabalho de Márcia Zollinger, em que a autora dilacera o conceito de liminar e a sua importância, adotando, basicamente, o posicionamento aqui defendido quanto à sua natureza adjetiva (7).

Outrossim, o Código de Processo Civil adota a mesma linha de raciocínio, já que se refere à medida liminar com o sentido supramencionado —de medida tomada anteriormente à citação—, o que se pode extrair dos seguintes dispositivos:

"Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

§ 3º. Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada.

Art. 928. Estando a petição inicial devidamente instruída, o juiz deferirá, sem ouvir o réu, a expedição do mandado liminar de manutenção ou de reintegração; no caso contrário, determinará que o autor justifique perfeitamente o alegado, citando-se o réu para comparecer à Audiência que for designada."

Como é de geral sabença, a antecipação dos efeitos da tutela pode ocorrer tanto in limine litis quanto em qualquer outro momento ulterior do procedimento; ou seja, pode ser concedida por medida liminar ou não. No primeiro caso, e apenas neste, incidiriam as diversas normas processuais restritivas já referidas; a lei visa afastá-las pois implicariam decisões contra a Fazenda Pública sem que houvesse sequer a sua audiência.

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O conceito de liminar, portanto, se mostra absolutamente fundamental —e a noção de que apenas alguns provimentos antecipatórios liminares é que estão limitados é o outro nó do problema.


3. A liminar em mandado de segurança: sua natureza jurídica antecipatória.

O problema da natureza jurídica da liminar em mandado de segurança não é meramente terminológico, nem é questão de somenos no estudo desta ação constitucional. Todos quantos se debruçaram sobre o tema afrontaram o problema, em discussão bela e calorosa.

Betina Rizzato Lara, autora de interessante monografia sobre as liminares, elaborou um painel para demonstrar a controvérsia. Afirma, no entanto, que, ao menos na doutrina nacional mais clássica, a concepção predominante é a de que a medida liminar em mandado de segurança teria natureza cautelar. Hamilton Moraes e Barros, citado pela autora, entendia tratar-se de medida antecipatória. Parece aderir a uma espécie de posição intermediária, afirmando que será uma medida antecipatória (quanto à eficácia) e cautelar (quanto à natureza) —liminar cautelar-satisfativa (8).

Antes de mais nada, havemos de repelir a concepção eclética, porquanto não possa haver uma medida antecipatória e cautelar ao mesmo tempo. Nada pode ser ao mesmo tempo algo e o seu oposto, conforme aplicação singela do princípio da não-contradição —ou se trata de cautelar, ou de antecipatória, pois tertium non datur. Em obra pioneira, Luiz Guilherme Marinoni distinguiu uma da outra, apondo como elemento principal da distinção a satisfatividade; a atribuição de conseqüências de direito material, inexistente nas verdadeiras medidas cautelares (9). Normalmente, confunde-se cautelaridade com preventividade. As medidas preventivas visam evitar ou minimizar os efeitos do perigo. Não se confunda tutela preventiva com tutela cautelar, esta última modalidade da primeira (10).

Com efeito, a tutela preventiva visa evitar ou minorar os efeitos da lesão, tendo por pressuposto negativo a consumação da lesão. Como sempre se vinculou a tutela cautelar ao perigo, até inconscientemente os autores, quando houvesse risco, identificavam a medida judicial pertinente a coibi-lo como se cautelar fosse. Há que se distinguir a segurança para a execução, da execução para a segurança, conforme célebre pensamento de Pontes de Miranda. O perigo não é pressuposto exclusivo das medidas cautelares, embora seja característica inerente a todas elas.

Com a evolução dos estudos em matéria de direito processual, esta confusão terminológica não mais se justifica. A liminar em mandado de segurança antecipa os efeitos da futura sentença que decidir pela procedência do pedido, sendo, portanto, medida antecipatória. Esta característica é percebida por todos quantos estudaram o tema, até mesmo por aqueles que concebem a medida liminar como cautelar —estes últimos, como vimos, davam mais valor ao elemento segurança.

Confira-se o pensamento de Rizzato Lara, em passagem irretocável, embora um tanto dissonante, a nosso ver, com as conclusões a que chega: "Como na antecipação realizada através da liminar há uma coincidência entre o que se antecipa e o que se pretende obter ao final, ou seja, a medida de segurança, existe desde logo uma satisfação do pedido. (...) A sua função primordial é garantir que a ordem determinada através do mandado de segurança seja eficaz no plano fático. Como ela obtém o resultado? Possibilitando ao impetrante do writ que sua pretensão seja, na prática, satisfeita ab initio." (11)

Absolutamente correta a lição de Zavascki: "Não há dúvida que a liminar em mandado de segurança constitui típica hipótese de antecipação de efeito da tutela, semelhante à prevista no art. 273, I, do Código. Quem lhe nega esse caráter antecipatório, geralmente parte do pressuposto equivocado de que antecipação é o mesmo prejulgamento da causa. (...) Também a antecipação prevista no art. 273, I, do Código de Processo Civil, não constitui prejulgamento da causa, nem afirma ou retira direito algum, e nem produz efeitos jurídica definitivos; e ela também tem por finalidade apenas acautelar direito ameaçado por risco de dano. Tais circunstâncias, contudo, de modo algum comprometem sua natureza antecipatória, pois o que fixa tal natureza é o conteúdo da medida, e não a sua finalidade. Quanto à finalidade, há identidade entre a medida cautelar e a antecipatória, já que ambas, em última análise e a seu modo próprio, visam a preservar a utilidade da função jurisdicional. Na espécie do art. 273, I, para afastar o perigo de comprometimento ao processo, a técnica utilizada é a de antecipar, em caráter provisório, algum efeito executivo decorrente da futura sentença, sem que isto, obviamente, importe prejulgamento da causa." (grifos do original) (12)

A prédica é auto-explicativa.

É fácil constatar-se a causa do dissenso doutrinário: os autores mais antigos ainda não perceberam que o pedido de suspensão de ato ou medida tem sempre natureza antecipatória; sempre corresponde a uma antecipação dos efeitos da sentença de mérito, que, no caso, visa anular ou retirar a validade e/ou a eficácia do ato impugnado. Como no mais das vezes o mandado de segurança a isto se presta —e em matéria tributária, por exemplo, basicamente é essa a sua função— a confusão reina soberana (13). Para a correção do problema hermenêutico, dois são os pontos de ataque: primeiro, demonstrar a natureza antecipatória dos pedidos de suspensão de eficácia, a ser feita no próximo ponto; segundo, demonstrar a possibilidade de medidas antecipatórias em demandas constitutivas e meramente declaratórias, pois a suspensão corresponde, exatamente, à antecipação de efeitos práticos das sentenças procedentes nestas causas (este segundo ponto, que refoge um pouco dos limites deste trabalho, já foi muito bem trabalhado pela doutrina, estando absolutamente consolidada a posição pelo cabimento) (14).


4. A natureza antecipatória do pedido de suspensão.

No mais das vezes, o pedido liminar em mandado de segurança —procedimento típico do controle jurisdicional dos atos administrativos— tem por fim a suspensão do ato inquinado de indevido ou a proibição de sua prática, no caso da segurança puramente preventiva. O pedido de suspensão do ato impugnado tem sempre natureza satisfativa, porquanto seja a atribuição imediata de um dos efeitos anexos de eventual sentença procedente —demandas com força constitutiva ou declaratória. A dificuldade que certos setores da doutrina têm em identificar a natureza antecipatória desta espécie de liminar em mandado de segurança (ou outras liminares que também visem à suspensão de eficácia) é o grande motivo da mixórdia doutrinária a respeito do assunto.

Esquecem-se que as sentenças possuem eficácia principal e anexa e a medida que conceda uma ou outra antecipará efeitos de mérito, direito material, de eficácia satisfativa, pois. A antecipação da eficácia anexa foi examinada na nota 14, com pormenores. Fiquemos, por ora, com a natureza antecipatória do pedido de suspensão.

Vejamos o pensamento do grande Barbosa Moreira, ao afirmar que suspender a eficácia é um dos efeitos da anulação de um ato, pois o juiz que, desde logo, em vez de anular o ato, suspende-lhe a eficácia, decretando que não produzirá efeitos enquanto dure o processo, está antecipando a tutela, ainda que parcialmente, já que a suspensão é providência menos intensa, menos grave, menos completa que a anulação, embora conduza a efeitos semelhantes, enquanto vigore (15).

William Santos Ferreira, ao tratar do denominado efeito suspensivo ativo do agravo de instrumento, o qual denomina de efeito suspensivo excepcional, em bela defesa do seu cabimento e de sua natureza antecipatória, afirma: "Por fim, em observância ao princípio da igualdade (art. 5º, caput, da Constituição Federal), do qual o tratamento processual paritário é mera conseqüência (art. 125, I, do Código de Processo Civil), não se pode admitir que, em um recurso, seja admissível a obtenção excepcional do efeito suspensivo (em benefício da parte atingida pela decisão recorrida) e não seja admitida tal situação àquele que, também atingido pela decisão recorrida, necessite de uma antecipação da tutela recursal, eis que lhe é imprestável a concessão de efeito suspensivo. Como temos insistido, se for dado provimento a um recurso, a sua principal conseqüência é a cassação da decisão e com isto obviamente dos seus efeitos. O efeito suspensivo excepcional nada mais é do que uma antecipação da tutela recursal." (16)

Kazuo Watanabe, em obra clássica, já antevia que as antigas cautelas que visavam à suspensão da assembléia de uma sociedade, irregularmente convocada, bem como a suspensão do protesto de cambial, seriam medidas tipicamente satisfativas (17).

Em matéria de ação rescisória, em cujo processamento se admitia a interposição de ação cautelar com vistas à suspensão da executividade da sentença rescindenda (acolhendo posicionamento de Galeno Lacerda (18)), já se decidiu, no Superior Tribunal de Justiça que esta pretensão é manifestamente satisfativa, devendo ser postulada como antecipação da tutela no bojo da própria ação rescisória (cf. RE 81529/PI; Agravo Regimental no Agravo 118.858; RE 139.850). No mesmo sentido, a Resolução 6 do IX Encontro dos Tribunais de Alçada do Brasil: "É cabível a concessão de tutela na ação rescisória visando à suspensão dos efeitos práticos da sentença rescindenda." (19)

Athos Carneiro também se posiciona desta forma, ao comentar a MP 1.577, que previu a possibilidade de concessão de medida cautelar em ações rescisórias propostas pelo Poder Público, quando afirma que "a MP incide em equívoco quanto à natureza da providência que está a permitir: a suspensão dos efeitos de ato, cuja ilegitimidade se pretende, caracteriza-se como AT [antecipação da tutela] e não como medida meramente cautelar." (20)

Podemos, portanto, concluir que o pedido de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, feito em medida liminar de mandado de segurança, possui natureza antecipatória.

E qual a implicação prática mais óbvia: ultrapassado o prazo decadencial de 120 dias para a interposição de remédio constitucional, este pedido de suspensão poderá ser feito com base no art. 273, CPC, que regula a tutela antecipatória genérica. A diferença será o preenchimento de requisitos mais graves, mas nada que impeça a concessão nem o requerimento.


5. A liminar em mandado de segurança como primeiro passo para uma tutela de segurança de mérito com certo grau de abstração.

O direito brasileiro sempre previu, com maior ou menor intensidade, a possibilidade de medidas interinais de conteúdo satisfativo. Ora presumindo o perigo, como nas hipóteses das ações possessórias e dos alimentos provisórios, ora exigindo, para a concessão, o perigo in concreto, como no mandado de segurança. Por vezes, a previsão de concessão de medidas antecipatórias veio a atender reclamos de setores da economia (busca e apreensão em alienação fiduciária) ou se apresentava como mecanismo de tutela mais efetiva de direitos indisponíveis, como no caso das liminares em demandas transindividuais. Percebe-se, assim, que os provimentos antecipatórios não são novidade instituída com a reforma de 1994 —já havia, em tempos remotos, inúmeros exemplos.

Dois são, basicamente, os critérios de que o legislador se vale para permitir a tutela antecipatória: um, a natureza do direito material, cuja importância e relevância impõem uma modalidade de tutela mais efetiva; o outro, a forma como se apresenta o direito material no processo. (21) São exemplos do primeiro critério as possessórias, os alimentos, a busca e apreensão em alienação fiduciária, a liminar em ação civil pública etc. Do segundo critério, exsurgem o mandado de segurança e a ação monitória, recentemente implementada no direito brasileiro.

Quando a tutela antecipatória é permitida pela apresentação processual do direito, temos a proteção daquilo que foi muito bem denominado de tutela da evidência ou tutela do direito evidente (22): tutela-se energicamente o direito em razão da evidência (aparência) com que se mostra nos autos. Não releva, a princípio, a natureza do direito material posto em litígio. Privilegia-se, sem dúvida, a comprovação do direito alegado: direito líquido e certo (provado documentalmente, conforme conceituação atual; a liquidez e certeza indicam como o direito é apresentado em juízo, ou seja, se é ou não passível de comprovação de plano; cf. Sérgio Ferraz (23), Celso Barbi (24), em suas monografias clássicas sobre o tema, bem como o recente artigo do Ministro Adhemar Ferreira Maciel (25)) e prova escrita, em se tratando de ação monitória. A antecipação genérica da tutela, fundada em prova inequívoca —que não precisa ser, necessariamente, documental—, agora permite a tutela de qualquer, repita-se, qualquer direito evidente. Estamos diante do mais alto grau de abstração na previsão normativa de um provimento de urgência.

Sem dúvida, o mandado de segurança não possui este grau de máxima abstração, porquanto trate de demandas que versam, sempre, sobre algum direito em face do Poder Público, o que muito restringe a sua atuação.

Por outro lado, sabemos todos que os procedimentos podem ser divididos em comuns e especiais: os primeiros são aqueles previstos para a tutela de uma generalidade de direitos, criados como modelos abstratos sem muita atenção com a natureza do direito material em litígio; os especiais, ao contrário, são aqueles criados para atender determinadas espécies de situações jurídicas de direito material, se apresentando como ponto de contato mais nítido entre o direito material e o direito processual. Aqueles, procedimentos abstratos, estes, com alto grau de concretude. Em linguagem vulgar, mas elucidativa: os primeiros, promíscuos; os outros, fiéis.

Antes da Reforma de 1994, apenas os procedimentos especiais permitiam a tutela antecipatória, como vimos, seja em razão da natureza do direito material, seja pelo seu caráter de evidente. Podemos concluir que, dentro do rol dos procedimentos especiais, ainda existe gradações em relação à proximidade com o direito material. O mandado de segurança fica no meio termo entre a concretude (direito contra o Poder Público) e a abstração (qualquer um, desde que comprovado de plano).

O que importa para a nossa análise é que a liminar em mandado de segurança foi a primeira previsão legislativa com vistas à tutela de direitos evidentes, sem que houvesse muita preocupação com a espécie do direito material em litígio. A especialidade do rito se apresentava, também, pela previsão da medida antecipatória. O que sobrelevava, a par de ser um direito em face do Poder Público, é a sua demonstração processual, pouco importando se direito a créditos, a participação em licitação, a obter determinada certidão etc. Por isso afirmamos: a liminar em mandado de segurança, além de antecipatória, possui certo grau de abstração, pois não é criada com vistas à espécie de direito tutelado, mas, sim, como o direito —qualquer contra o Poder Público, desde que não amparável por habeas corpus ou habeas data— se apresenta processualmente.

A previsão da medida liminar em mandado de segurança, como hipótese de suspensão da exigibilidade do crédito tributário (art. 151, II, CTN, p. ex.), encontra a sua razão histórica na circunstância de que, àquela época, liminar antecipatória com este grau de abstração somente em mandado de segurança se poderia obter. Como não havia, ainda, a previsão de tutela antecipatória genérica para direitos evidentes, apenas se previu esta suspensão do crédito tributário por ordem judicial. Esta concepção histórica é fundamental para chegarmos à conclusão pela admissibilidade da tutela antecipatória como hipótese de suspensão do crédito tributário.

Com a introdução da tutela antecipatória genérica em nosso ordenamento, possível para todos os direitos que se mostrem evidentes, com a reforma do art. 273 e do art. 461 do CPC, a previsão do legislador tributário se mostra por demais restrita, devendo ser interpretada historicamente. Estes artigos vêm consagrar a possibilidade da tutela dos direitos que se apresentam com prova inequívoca e relevante fundamento, respectivamente, critérios normativos para a aferição da evidência, assim como a prova escrita (monitória) e a prova documental pré-constituída (mandado de segurança).

Sobre o autor
Fredie Didier Jr.

Coordenador do curso de pós-graduação em Direito Processual Civil da LFG-Anhanguera Uniderp. Livre-docente (USP), Pós-doutorado (Universidade de Lisboa), Doutor (PUC/SP) e Mestre (UFBA). Professor-associado de Direito Processual Civil da Universidade Federal da Bahia. Diretor Acadêmico da Faculdade Baiana de Direito. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual, do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, da Associação Internacional de Direito Processual e da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo. Advogado e consultor jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIDIER JR., Fredie. Liminar em mandado de segurança: natureza jurídica e importância histórica.: Uma tentativa de reenquadramento dogmático em face das últimas reformas processuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 56, 1 abr. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2917. Acesso em: 22 dez. 2024.

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