Resumo: O Tribunal do Júri é regido pelo art. 5º, XXXVIII, da Constituição Federal, competente para julgamento dos crimes dolosos contra vida. Entretanto, o seu julgamento se diferencia daqueles ocorridos em outros Tribunais, uma vez que é um tribunal popular, integrado por sete jurados leigos, pessoas do povo. O presente trabalho discute, à luz das normas e dos princípios aplicáveis ao Direito Penal e ao Tribunal do Júri (princípios da isonomia, democrático e direito à liberdade), bem como a partir do exame da doutrina existente sobre o tema, se pode o cidadão analfabeto fazer parte do Conselho de Sentença do Tribunal do Júri. Ao final, conclui-se que o analfabeto deve ser afastado de suas funções como jurado, mas não simplesmente pelo fato de ser analfabeto, mas por não possuir condições mínimas necessárias para exercê-las.
Palavras-chave: Tribunal do Júri. Jurado. Analfabeto. Isonomia. Direito à liberdade.
Sumário: Introdução. 1. Normas e princípios aplicáveis. 2. Perspectiva doutrinária. Conclusão. Referências bibliográficas.
Introdução
O Tribunal do Júri é instituição constitucionalmente reconhecida e normatizada. Rege-se, neste plano, pelo art. 5º, XXXVIII, da CR, que além de estabelecer que sua organização será determinada por lei, traz seus princípios básicos: plenitude de defesa, sigilo nas votações, soberania dos veredictos e competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Seguindo a determinação constitucional, o § 1º, do art. 74, do Código de Processo Penal (CPP), estabelece que compete ao Tribunal do Júri o julgamento dos crimes de homicídio simples e qualificado (arts. 121, §§ 1º e 2º, do Código Penal), induzimento, instigação ou auxílio a suicídio, nas hipóteses do parágrafo único (art. 122, CP), infanticídio (art.123, do CP) e aborto, provocado pela gestante, por terceiro e qualificado (arts. 124 a 127, do CP), consumados ou tentados.
Ressalte-se, porém, que o Júri é um tribunal popular, visto como prerrogativa democrática do cidadão, que deve ser julgado por seus semelhantes[1]. É uma garantia constitucional[2]. Ele é integrado por sete jurados leigos, pessoas do povo. Para Eugênio Pacelli de Oliveira[3], o Júri seria uma das instituições mais democráticas do Poder Judiciário, principalmente por submeter o acusado ao julgamento de seus pares, segundo a compreensão popular.
Nesta perspectiva, discute-se: poderia o analfabeto ser jurado? Poderia este fazer parte do Conselho de Sentença?
1. Normas e princípios aplicáveis
Inicialmente, devemos considerar que a Constituição da República não estabelece requisitos para a escolha dos jurados. Já o CPP determina como requisitos mínimos a maioridade e a notória idoneidade (art. 436). O código define, ainda, em conformidade com o princípio da isonomia, consagrado pelo art. 5º, caput da CR, que nenhum cidadão poderá ser excluído dos trabalhos do júri ou deixar de ser alistado em razão de cor ou etnia, raça, credo, sexo, profissão, classe social ou econômica, origem ou grau de instrução (§1º, do art. 436). Tal dispositivo foi incluído pela Lei 11.689/2008, que alterou o procedimento para julgamentos realizados no Tribunal do Júri.
Diante das considerações acima, pergunta-se: seria ferido o direito do cidadão de participar de um corpo de jurados pelo fato de ser ele analfabeto? Estaria sendo ele discriminado em razão de seu grau de instrução? E, ainda: seria o réu prejudicado se julgado por um cidadão incapaz de ter pleno acesso ao processo, uma vez que não pode ler e compreender os autos?
Percebe-se que os questionamentos acima colocam em choque alguns princípios e direitos constitucionais. De um lado, o princípio democrático sobre o qual se ergue a instituição do Tribunal do Júri e o direito do analfabeto de ser tratado isonomicamente, e do outro o direito à liberdade do acusado, que pode ser prejudicado caso algum dos jurados não compreenda bem o que está julgando.
Diante disso, e considerando-se o fato de que os princípios ou direitos constitucionais não são absolutos[4], devendo em caso de conflito, ser utilizada a ponderação de valores[5], entende-se que devem ser priorizadas a liberdade do indivíduo e a busca pela justiça.
Isso porque, apesar de ser regido também pela oralidade, o procedimento do Tribunal do Júri além de demandar atos escritos, tais como as cédulas de votação (art. 486, do CPP), existe a possibilidade de o jurado ter acesso aos autos (Parágrafo único, do art. 472 e §3º, do art. 479, do CPP). Deve ser considerada, também, a obrigatoriedade constitucional do sigilo do voto (art. 5º, XXXVIII, b), que é assegurada pelo CPP por meio da proibição de intervenção das partes na manifestação do Conselho de Sentença (§ 2º, do art. 485, do CPP), do recolhimento separado de cédulas (art. 487, do CPP) etc.
2. Perspectiva doutrinária
Em momento anterior à reforma trazida pela Lei 11.698/2008, Delmar Pacheco da Luz[6] faz críticas a alguns autores, que pretenderiam garantir a máxima democratização da lista de jurados. Para isso, cita Edilson Bonfim, que pugna pela melhoria dos critérios seletivos do corpo de jurados, pois democratizar não seria sinônimo de desqualificar. Pondera, entretanto, que não se pode exigir a qualificação técnica do jurado, mas deveria este, pelo menos, entender o processo que julga, considerando-se a complexidade da causa, a aferição de provas, os quesitos e teses jurídicas.
Já Guilherme de Souza Nucci[7], em obra mais recente, lembra que no Tribunal do Júri, o acusado deve ser julgado por seus pares, sendo par aquele igual ou semelhante. E, todos seriam iguais perante a lei (art. 5º, caput, da CR). Segundo ele, seria natural que o culto fosse julgado pelo ignorante e vice-versa. Esta seria apenas a garantia de um ser humano leigo ser julgado por outro. Ressalva, no entanto, que o povo não julgará apenas os fatos, mas também teses jurídicas. Assim, devem os jurados entender o espírito da lei, para que as decisões fiquem mais próximas da legislação vigente. Embora fosse ideal que os jurados representassem todas as classes sociais, deve ser levada em consideração a desigualdade sócio-cultural brasileira, o que permitiria inferir que, por ora, seria mais adequado garantir um corpo de jurados minimamente preparado, capaz de entender os assuntos debatidos em plenário. Para o autor, a alfabetização seria indispensável para que o jurado possa ler os autos, sem quebrar a incomunicabilidade durante o julgamento. Logo, conclui que, além de possuir, no mínimo 18 anos, deveria o jurado ser de notória idoneidade, alfabetizado e possuidor de saúde física e mental compatíveis com a função, estar no gozo dos direitos políticos e ser brasileiro.
Conclusão
Diante do exposto e tendo em vista que a leitura dos autos do processo ou das cédulas de votação por terceiro feriria o sigilo e a incomunicabilidade constitucionalmente determinados, e que o jurado analfabeto talvez não teria, sozinho, plenas condições de compreender bem o que estaria ocorrendo no julgamento, estaria criada a possibilidade de prejuízo. Isso porque a má compreensão dos fatos ou das provas por parte deste jurado poderia levar a um veredicto equivocado, nos sentidos da absolvição ou da condenação. No primeiro caso, restaria prejudicada toda a sociedade, pois deixaria impune um agente que, em outras circunstâncias seria condenado e preso. No segundo, o prejuízo seria imposto ao acusado, pois se condenado, veria injustamente tolhido seu direito à liberdade, e consequentemente, sua dignidade.
E, como bem pondera André Estefam[8], não se trata de excluir o jurado em razão de seu grau de instrução, mas por não possuir aptidão mínima para atuar no julgamento.
Referências Bibliográficas
ESTEFAM, André. Temas polêmicos sobre a nova lei do júri. Retirado de http://www.criminal.caop.mp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=620Acesso em 08/01/12.
LUZ, Delmar Pacheco da. Júri: um tribunal democrático. Porto Alegre: Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul, 2001.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2005.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
Notas
[1] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 77.
[2] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 625.
[3] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 11ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 589.
[4] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 274/275.
[5] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 380/381.
[6] LUZ, Delmar Pacheco da. Júri: um tribunal democrático. Porto Alegre: Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul, 2001. p. 33/34.
[7] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 767/770.
[8] ESTEFAM, André. Temas polêmicos sobre a nova lei do júri. Retirado de http://www.criminal.caop.mp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=620. Acesso em 08/01/12.