5 A HIPERTROFIA DA FUNÇÃO PUNITIVA DO ESTADO
Diante do contexto, anteriormente apresentado, de precário exercício da cidadania, Estado social mínimo, democracia formal, violência estrutural, o Estado se vale da aparente legitimidade que a dogmática jurídico-penal lhe confere, com relação ao seu direito de punir, e reage repressivamente às conseqüências da desigualdade econômica, por si mesmo construída.
Nesse cenário, o Estado busca disfarçar sua ineficiência no âmbito social através da maximização de seu aparato punitivo. Loic Wacquant (2003), ao analisar o sistema punitivo norte-americano[6], entende que há uma transição do Estado Caritativo para um Estado que criminaliza a miséria. Nesse sentido, ele afirma:
A ascensão do Estado penal americano responde assim não à ascensão da criminalidade, que permaneceu constante durante todo este período, mas ao deslocamento social provocado pelo desengajamento do Estado caritativo. E ela mesma tende a se tornar a sua própria justificativa, na medida em que seus efeitos criminógenos contribuem pesadamente para a insegurança e para a violência que deveria remediar. (WACQUANT, 2003, p. 33)
Wacquant demonstra a passagem do Estado caritativo para um Estado que vive numa política de criminalização das conseqüências da miséria produzida por si próprio. Nesse sentido, o autor descreve o contraste que há entre os cortes financeiros nos programas sociais e os altos investimentos no sistema penal:
“[...] o Estado caritativo americano não parou de diminuir seu campo de intervenção e de comprimir seus modestos orçamentos a fim de satisfazer a decuplicação das despesas militares e a redistribuição das riquezas em direção às classes mais abastadas.” (WACQUANT, 2003, p. 23-24).
O autor define que a construção dessa política de criminalização das conseqüências da desigualdade social opera em duas etapas. A primeira “consiste em transformar os serviços sociais em instrumento de vigilância e de controle das novas “classes perigosas” (WACQUANT, 2003, p. 28). Loic (2003) lembra, como prova disso, da implantação de reformas que condicionavam o acesso à assistência social à adoção de certas normas de conduta e ao cumprimento de obrigações burocráticas e onerosas ou humilhantes. A segunda etapa da “política de contenção repressiva dos pobres” era a destinação maciça de recursos ao processo de encarceramento.
Desse modo, observa-se a instalação de um Estado Policial, que responde aos graves problemas sociais com repressão, com a chamada “violência legítima”. Essa transição do Estado Social para o Estado Penal, por conseguinte, tem como conseqüência o endurecimento da legislação penal e das agências do sistema penal, principalmente sobre as camadas excluídas da população.
5.1 A Seletividade do Sistema Penal
O sistema penal brasileiro se caracteriza pela seletividade. Essa seletividade opera incisivamente sobre as classes menos favorecidas da sociedade, pelas classes excluídas, que nesse cenário de ampla desigualdade social patrocinada pelo Estado, possuem o papel de figurar como delinqüentes.
Conforme leciona Baratta(1999), o sistema penal atua seletivamente tanto no processo de produção das normas, denominado criminalização primária, como no processo de aplicação das normas, criminalização secundária. Desse modo,
O direito penal não defende todos e somente os bens essenciais, nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos, e quando pune as ofensas aos bens essenciais o faz com intensidade desigual e de modo fragmentário; a lei penal não é igual para todos, o status de criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos; o grau efetivo de tutela e a distribuição do status de criminoso é independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei, no sentido de que estas não constituem a variável principal da reação criminalizante e da sua intensidade. (BARATTA, 1999, p. 162).
A ideia difundida de que o Direito penal é um direito igual, aplicado isonomicamente e indiferentemente a todos, não passa de um mito. A igualdade do sistema penal é apenas formal. Os interesses das classes dominantes são fortemente protegidos pelo sistema penal, que “imuniza do processo de criminalização comportamentos socialmente danosos típicos dos indivíduos a elas pertencentes [...] e tende a dirigir o processo de criminalização, principalmente, para formas de desvio típicas das classes subalternas.” (BARATTA, 1999, p. 165).
A seletividade do sistema penal opera, portanto, sobre as classes baixas da população, que sofrem com a frágil posição que ocupam no mercado de trabalho e com a escassa providência educacional.
O sistema penal funciona, assim, como meio de manutenção das desigualdades sociais implantadas pelo Estado, principalmente através da conseqüente estigmatização que produz sobre os indivíduos que sofrem com as suas agruras. Nesse sentido, Baratta explica:
[...] a aplicação seletiva das sanções penais estigmatizantes, e especialmente o cárcere, é um momento superestrutural essencial para a manutenção da escala vertical da sociedade. Incidindo negativamente sobretudo no status social dos indivíduos pertencentes aos estratos sociais mais baixos, ela age de modo a impedir sua ascensão social. [...] a punição de certos comportamentos ilegais serve para cobrir um número mais amplo de comportamentos ilegais, que permanecem imunes ao processo de criminalização. (BARATTA, 1999, p. 166).
6 A MAXIMIZAÇÃO DO CÁRCERE
Em conformidade com a hipertrofia do sistema penal, patrocinada pelo Estado, está a maximização do cárcere, a qual funciona como um instrumento de “limpeza social”. Nesse sentido, o Estado vê na amplitude carcerária uma saída para resolver os conflitos decorrentes das insatisfações em relação a sua ausência no âmbito de políticas públicas sociais.
Além dessa finalidade, o Estado vê na ampliação do sistema carcerário um investimento lucrativo. Nesse sentido, Loic Wacquant explica:
O encarceramento tornou-se assim uma verdadeira indústria- e uma indústria lucrativa. Pois a política do “tudo penal” estimulou o crescimento exponencial do setor das prisões privadas, para o qual as administrações públicas perpetuamente carente de fundos se voltam para melhor rentabilizar os orçamentos consagrados à gestão das populações encarceradas. (WACQUANT, 2003, p. 31).
Desse modo, observa-se que a ascensão do Estado Penal, aliada à falência do setor público, traduz-se na implantação de uma política lucrativa de criminalização da miséria.
Essa medida do Estado de ampliar o confinamento tem por finalidade controlar as classes que não se encaixam no modelo fixado pela sociedade, quais sejam, as classes excluídas pelo próprio Estado, pela sua seletividade e pela sua estigmatização.
Através de um olhar mais crítico acerca do sistema carcerário, percebe-se que ele está totalmente desvinculado de qualquer finalidade educativa e que “antes de ser a resposta da sociedade honesta a uma minoria criminosa [...], o cárcere é, principalmente, o instrumento essencial para a criação de uma população criminosa, recrutada quase exclusivamente nas fileiras do proletariado, separada da sociedade” (BARATTA, 1999, p. 167).
As prisões brasileiras funcionam como verdadeiras “máquinas” de multiplicação da criminalidade. Nos ambientes carcerários, não se distinguem os pequenos infratores dos grandes criminosos e nesse cenário só há lugar para a proliferação da revolta contra o Estado, contra a sociedade excludente e, consequentemente, a produção de mais criminalidade.
Nesse sentido, é minimamente possível que a pena possua função de ressocializar, reeducar, intimidar ou neutralizar. A pena se mostra muito mais associada à função retributiva, pois visa apenas ao castigo do criminoso.
7 A NECESSÁRIA APROXIMAÇÃO AO ESTADO SOCIAL E AS POSSÍVEIS POLÍTICAS CRIMINAIS DO ESTADO
Diante do cenário exposto, percebe-se a necessidade de haver uma aproximação ao Estado Social, no sentido de se buscar a máxima concretude democrática possível. Essa concretude democrática significa o pleno exercício da cidadania, a busca por uma máxima aproximação à democracia substancial. Nesse sentido, o Estado deve primar por políticas sociais, como meio de diminuir ou de amenizar as exorbitantes desigualdades sociais, visando a inclusão social, por meio da educação.
Por outro lado, o Estado, enquanto detentor do poder punitivo, enquanto responsável pelo controle social formal, deve primar por políticas criminais que possibilitem ao criminoso uma estadia prisional mais humana, ao respeitar seus direitos humanos, e não restringir o seu foco apenas aos direitos humanos da vítima. O delinqüente precisa ser entendido, não como uma ameaça à harmonia, ao equilíbrio social, mas deve ser visto como produto da exclusão social, propiciada pelo próprio Estado, pela própria sociedade.
Com relação ao aprisionamento dos criminosos, dever-se-ia implantar políticas criminais que possibilitassem uma menor disseminação da criminalidade dentro dos presídios, como, por exemplo, visar à separação dos presos conforme a gravidade de seus crimes. Desse modo, buscar-se-ia uma estabilidade na estadia carcerária.
Outras políticas criminais devem ser discutidas no intuito de que o preso passe a ser visto enquanto ser humano pleno em sua dignidade, que deve ser respeitada, posta acima de qualquer penalidade.
8 CONCLUSÃO
Diante do exposto, conclui-se que o Estado democrático brasileiro passa por uma transição do Estado social para o Estado Policial, caracterizado pela maximização do aprisionamento. Nesse sentido, observa-se que, ao buscar uma forte política criminal de encarceramento, o Estado visa disfarçar as conseqüências da sua ausência no âmbito social. Assim, ele transfere, através do seu sistema penal seletivo, a culpa do aumento da criminalidade à má estruturação das baixas classes sociais, punindo, com a “violência legal”, aqueles que sofrem as agruras de uma democracia formal, caracterizada pela violência estrutural e encoberta pelo manto da desigualdade social.
Nesse sentido, observa-se que o sistema carcerário brasileiro funciona de modo a proliferar a criminalidade, posto que não respeita os direitos humanos dos aprisionados e não os compreende como indivíduos plenos em sua dignidade, que deve ser respeitada.
Assim, além de se buscar uma aproximação dos institutos de um real estado social, que garante o pleno exercício da democracia e respeita a dignidade dos indivíduos, enquanto seres humanos, o Estado deve priorizar por políticas criminais que preservem os direitos humanos daqueles que estão sob a sua proteção carcerária, de modo a repreender a disseminação da criminalidade observada nos presídios.
REFERÊNCIAS
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 1999.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Editora Quartier, 2005.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral, 1. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 8. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.
DURKHEIM, Émile. O suicídio: estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Constituição, Ministério Público e direito penal: a defesa do estado democrático no âmbito punitivo. Rio de Janeiro: Revan, 2010.
HOBBES, Thomas. O Leviatã. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1973.
SABADELL, Ana Lucia. Manual de Sociologia Jurídica: introdução a uma leitura externa do direito. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
SCURO NETO, Pedro. Sociologia Geral e Jurídica: introdução à lógica jurídica, instituições do direito, evolução e controle social. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
WEFFORT, Francisco. Os clássicos da política. 13. ed. São Paulo: Editora Ática, 2001.
WACQUANT, Loic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
Notas
[1]Ver Guayau, (1936, p. 165)
[2]Ver também Baratta, (1999, p. 61)
[3]O estudo das estruturas sociais da anomia, feito por Merton, encontra-se na coletânea intitulada Teoria e estrutura social (Merton, 1970).
[4]Kant expressou suas idéias a respeito desse tema na sua obra “A metafísica dos costumes”.
[5]Hegel apresentou suas idéias a respeito da teoria absoluta da pena na sua obra intitulada “Princípios da Filosofia do Direito”.
[6]Para maior aprofundamento do assunto, ler também a obra “A indústria do controle do crime”, de Nils Christie, que também estuda o sistema de controle penal nos Estados Unidos.