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A ilegitimidade ativa do ECAD na cobrança de direitos autorais de não associados

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Agenda 02/07/2014 às 16:45

O titular de direitos autorais pode não receber porque quem usou não pagou, ou não receber porque o ECAD chegou na frente e surrupiou seu dinheiro, sendo que neste último caso ocorre ilegitimidade ativa, em violação ao mais pessoal de todos os direitos.

INTRODUÇÃO

A cidade de Araraquara, tradicionalmente, é um cemitério de cinemas. Muitas e diversas pessoas já tentaram, em vão, estabelecer cinemas nesta cidade, sempre com amargo insucesso. Recentemente foram fechadas as melhores e mais modernas salas de cinema da cidade.

No entanto, em face da única sala que tem conseguido manter algum movimento, recentemente o ECAD entrou com ação de cobrança exigindo receber Direitos Autorais, em ação que correu perante a 1ª Vara Cível de Araraquara, sob nº 690/06, tendo obtido sentença favorável (CONSULTOR JURÍDICO, Agosto de 2006).

A coisa não seria tão séria se fosse pontual, mas infelizmente, a referida sentença assenta-se com propriedade sob vasta jurisprudência, onde é reconhecida a legitimidade ativa do ECAD para cobrança de direitos autorais nas execuções públicas de obras culturais, não importando se o autor das ditas obras é ou não associado a uma das associações que compõe o quadro societário do ECAD, e tampouco importando contra quem o ECAD proponha a ação de cobrança – existindo casos em que se cobra do próprio autor das referidas obras – onde o único critério é que a execução seja pública. No caso, considera-se pública, e é cobrada, até a execução dentro de um quarto de hotel.

É curioso que esta empresa, uma pessoa jurídica de direito privado, detém em suas mãos um poder efetivo que lhe garante vitórias até em ADINs, sendo que conseguiu sobreviver apesar de existir o relatório de uma CPI no Congresso Nacional recomendando a sua extinção, e conseguiu até que não se instaurasse outra CPI, desta feita com o objetivo de se fazer cumprir o que se determinou na anterior.

Quando se vê o montante de dinheiro envolvido, descobre-se a origem de tanto poder. Nem a lei, nem a nossa Carta Magna prevalecem em face deste quantum. De fato, ao estudar-se o posicionamento das cortes superiores, é possível apreender-se que nada, nem a lei e nem a Constituição, podem de qualquer forma obstar o convencimento de que os direitos do ECAD são absolutos e contra todos. Nenhum órgão, público ou privado, nenhuma associação, tampouco a própria OAB, detém tanto poder efetivo dentro do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.

A coisa é tão séria, que o ECAD, que deveria a princípio proteger os direitos dos autores, consegue ir até contra os mesmos, exigindo destes taxas sob pena de não permitir o acontecimento de espetáculos. Esta ousadia fica evidente quando, por ocasião do Show dos Rolling Stones no Rio de Janeiro, onde a famosa banda veio para, por si, interpretar suas próprias obras, ainda assim o ECAD pediu na justiça que o show não acontecesse, pois a banda não teria depositado, antecipadamente, R$ 1.000.000,00 (Um milhão de reais) ao ECAD, onde a empresa que organizou o evento depositou em juízo R$ 198.000,00, ou 10% da tabela do ECAD, apenas para pedir que os integrantes da banda não fossem assediados em público já no aeroporto. Felizmente houve bom senso no deferimento de liminar, que teve o seguinte teor: “a suspensão do evento é medida inimaginável diante da proporção que alcançou para a cidade. A postulação de pagamento adiantado de 10% sobre o valor total do orçamento do evento nos parece açodada. Não se sabe quantas e quais músicas serão tocadas” (CONSULTOR JURÍDICO, Fevereiro de 2006). Anote-se que a banda fez este show gratuitamente.

Nisto já se torna evidente o que todo mundo sabe: O ECAD não se presta a arrecadar os direitos autorais para cumprimento da ordem constitucional de proteger os direitos do próprio autor, mas busca insaciavelmente lotar os próprios cofres, mesmo e comumente em detrimento dos direitos dos autores. Neste caso específico, efetuando cobrança diretamente dos titulares dos direitos autorais, pois a banda Rolling Stones compõe, arranja e executa todas as suas músicas. A banda fez o show de graça, mas o município teve que pagar ao ECAD. Dinheiro público.


A ORIGEM DO ECAD

Historicamente existe um problema, que fica melhor exposto através de um exemplo prático.

Zé da Silva compõe uma música, por exemplo, uma marchinha de carnaval. Esta música cai no gosto das pessoas, e começa a ser executada em rádios, programas de televisão, entra dentro do corpo de um filme de sucesso, e se torna parte da própria cultura nacional.

Zé da Silva, por seu lado, mal consegue ter seu nome reconhecido como compositor daquela música, enquanto morre à míngua, sem jamais ter se beneficiado financeiramente da sua criação, ao passo em que diversas empresas de grande porte continuam utilizando sua obra.

A opção, até bastante óbvia, foi que este Zé da Silva se juntasse com outros tantos desprotegidos, formando uma associação, onde conjuntamente se teria mais força.

Vem da década de 60 do século passado a idéia de se reunir diversas destas associações sob um único escritório, com a finalidade de arrecadar e distribuir os direitos destes autores, e com isto fazer uma coisa muito simples: receber este direitos, e distribuir o dinheiro a quem de direito.

Em período que antecedeu a atual Constituição Federal, o Estado assumia explicitamente para si a tarefa de proteger algumas obras de criação intelectual, onde houve a edição da Lei 5988/73, onde primeiramente previu-se que as associações de autores poderiam se reunir em único órgão, sob a supervisão do CNDA – Conselho Nacional de Direito Autoral, e nos termos daquele diploma legal, tal órgão teria legitimidade para cobrar, em todo o território nacional, os direitos autorais dos membros das tais associações, no caso de execução pública de suas obras.

Criou-se uma empresa privada, particular, com o nome de ECAD, Escritório Central de Arrecadação e Distribuição de Direitos Autorais, cujo nome imitou o disposto no artigo 115 da Lei 5988/73, e que foi criado para atuar nos limites dos artigos 113 e 114 da mesma norma, e sob a fiscalização do Conselho Nacional de Direito Autoral.

Em 1988 veio a nova Constituição, onde, segundo consta no site do Ministério da Cultura,“as atribuições do CNDA são prejudicadas pelos incisos XVIII, XXVII e XXVIII do art. 5° da Constituição Federal de 1988” (BRASIL, 2007).

Assim, a empresa privada ECAD ficou sem seu órgão de fiscalização, que por sua vez tinha também a responsabilidade de fazer a tabela para a cobrança dos direitos autorais nas execuções públicas (Lei 5988/73, art. 117, alínea IV).

Em 15 de março de 1990 foi editado o Decreto nº 99.180, foi extinto o CNDA e criado o Departamento de Produção Cultural vinculado à Secretaria da Cultura (artigos 26 e seguintes), sendo que no artigo 28 inciso II este órgão foi especificamente incumbido de “proceder à arrecadação, à distribuição e ao pagamento dos direitos autorais e conexos, bem assim informar aos destinatários os critérios adotados para a respectiva apuração” - a função do ECAD foi explicitamente atribuída para um órgão especializado vinculado ao Ministério da Cultura. Ninguém se importou.

Finalmente, em 20 de Fevereiro de 1998 veio a Lei 9610, que revogou explicitamente a norma que regulamentava a existência do ECAD (Lei 5988/73), enquanto o direito de autorizar as execuções públicas das obras passou para as mãos dos autores (antes era necessário pagamento prévio ao ECAD para que se autorizasse execuções públicas).


O CONTROLE DO ECAD

O ECAD, uma pessoa jurídica de direito privado, hoje é controlada por empresas multinacionais do ramo de entretenimento, e simplesmente expulsou algumas das principais associações fundadoras. É que o ECAD agrega associações de autores, entre as quais, a ABRAMUS. A IFPI-Latina (a seção latina da Federação Internacional de Produtores Fonográficos) congrega as maiores gravadoras internacionais, e entrou no mercado associando-se com a ABRAMUS com o objetivo de controlar o ECAD, e assim fomentar os ganhos da indústria fonográfica. Esta é uma manobra que vem de encontro ao interesse de algumas associações que lutam pelo poder dentro do ECAD, e controlar o ECAD significa controlar uma verba de milhões de reais anuais. Assim, a IFPI procurou as associações membro do ECAD, entre elas a AMAR. Quando a IFPI decidiu se juntar à ABRAMUS, a AMAR soltou diversos manifestos, inclusive via internet, onde denuncia a manobra da IFPI para tomar o mercado de direitos autorais brasileiro em benefício das gravadoras, sendo evidente que estas manifestações só aconteceram porque foi preterida na escolha.

A Página principal da IFPI na internet é emblemática: “Representing the record industry worldwide” - Representando a indústria fonográfica internacionalmente. (IFPI, 2007)

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IFPI represents the recording industry worldwide, with a membership comprising some 1400 record companies in 75 countries and affiliated industry associations in 49 countries. IFPI's mission is to promote the value of recorded music, safeguard the rights of record producers and expand the commercial uses of recorded music in all markets where its members operate.

A IFPI representa a indústria fonográfica em todo o mundo, tendo como membros mais de 1400 empresas fonográficas em 75 países e afiliada a associações do ramo em 49 países. A missão da IFPI é promover a valorização da música gravada, salvaguardar os direitos dos produtores de discos e expandir o uso comercial da música gravada em todos os países onde seus membros operam. (IFPI, 2007)

 

Quem seriam os “membros” da IFPI?

Bom, uma lista de dezenas, mas cabe citar as principais, que aliás, encabeçam a lista: Universal Music, Warner Music Group, Virgin Music, Sony/BMG, EMI, Capitol Records, Atlantic, Decca, etc.

No Brasil: CID, EMI, Microservice (faz os CDs), SIGLA (Sistema Globo), Sony Music, e Warner Music. (IFPI, 2007, links).

Estes são os controladores dos direitos autorais brasileiros. É em prol destas empresas que se arrecada os direitos autorais por execuções públicas de música – qualquer música, de qualquer autor, associado ou não a uma das associações-membro do ECAD. E é por aí que metade do dinheiro arrecadado pelo ECAD vai para fora do Brasil.


AUTORES NÃO AFILIADOS AO ECAD.

É imenso o número de autores nacionais que não tem nenhuma ligação com esta empresa particular, mas as decisões superiores, que se refletem nas novas decisões de primeira instância, tem atribuído poderes que equivalem à capacidade tributária ativa de algumas autarquias, tem admitido que o ECAD cobre dos usuários E ATÉ DOS PRÓPRIOS AUTORES taxas arbitradas pelo próprio ECAD, que dificilmente são repassadas aos autores associados, e que jamais são repassadas aos não associados.

A legitimidade ativa do ECAD é estendida jurisprudencialmente à qualquer execução pública de obras musicais, excetuadas pontualmente as festas públicas realizadas sem objetivo de proveito econômico, único ponto onde existe severa divergência. Basta existir um espetáculo, a projeção de um filme em um cinema, ou ser colocada uma música ambiente em um estabelecimento comercial, e lá está o ECAD com seus onipotentes fiscais, cobrando e multando como se fosse a própria longa manus do Estado exercendo seu munus. Nem festa de casamento fica livre desta fome insaciável.

Mas isto é apenas um golpe do mais deslavado. O ECAD não tem regulamentação legal para existir, o ECAD que existe não é o previsto no artigo 99 da Lei 9.610/98, e mesmo que fosse não teria o direito de cobrar pela execução de obras cujos direitos pertencem a não membros das associações que integram o quadro social desta empresa, que é apenas e tão somente uma pessoa jurídica de direito privado.

O presente trabalho não visa se estender sobre a importante questão pertinente à execução pública de obras sem a remuneração dos autores. Visa apenas demonstrar que a empresa denominada ECAD não tem legitimidade ad causam ilimitada para cobrar direitos autorais, ao contrário do que tão solidamente está assentado em nossa jurisprudência.

A verdade é que os autores não são em nada beneficiados com a existência do ECAD, muito ao contrário, já é uma realidade em nossos tribunais que diversos artistas não conseguem receber seus direitos autorais, porque antes deles o ECAD já os cobrou indevidamente, ao passo em que existe todo um mecanismo dentro do ECAD que impede que os autores que não pertençam às associações que o integram consigam receber seus direitos, aqueles direitos arrecadados pelo ECAD e que jamais são distribuídos.

Isto já foi alvo de uma CPI no Congresso Nacional, que recomendou A EXTINÇÃO DO ECAD, mas nada foi feito.

Tentou-se abrir nova CPI, a fim de se averiguar o porque de nenhuma das medidas recomendadas terem sido adotadas. Esta sequer foi aberta, apesar do grande número de adesões.

Na outra ponta, autores tentam buscar seus direitos judicialmente, sendo obstados pois quem deveria pagar já pagou ao ECAD.

Quem é este órgão, que consegue a quase unanimidade da jurisprudência, destarte estar agindo em detrimento dos direitos personalíssimos, legais e constitucionais dos autores?

A tudo isso sobrepõe-se o fato de que não existe legitimidade ativa do ECAD, nos moldes do Direito Processual, que permita a este órgão efetuar qualquer cobrança em nome genérico, especialmente em benefício de autores não associados.


A necessidade da centralização

Sepúlveda Pertence, defensor acirrado da gestão coletiva dos direitos autorais, transcreve para seu voto na ADIN 2.054 texto de grande relevância histórica, que importa trazer para esta peça neste momento.

A idéia de Gestão Coletiva de direitos autorais data da França do Século XVIII, mas se iniciou no Brasil em XVII com o surgimento da sociedade brasileira, de autores teatrais – SBAT – criada para promover, com exclusividade, a administração dos direitos autorais dos autores teatrais, relativos à apresentação de obras dramáticas e de caráter assemelhado.

Entretanto, com relação aos direitos autorais decorrentes da execução públicas (SIC) de obras musicais, o processo de unificação foi mais complexo em virtude da existência de várias associações de titulares, fato que dificultava um consenso e promovia inúmeros problemas e descontentamentos. Assim, com a arrecadação descentralizada, surgiram graves problemas no controle da concessão de autorizações, para que fossem utilizadas em público, obras musicais, lítero-musicais e de fonogramas, posto que com a pluralidade de associações arrecadadoras, cada uma defendia os interesses de seus associados, dificultando o controle dos valores arrecadados, permitindo que diversos usuários fossem cobrados, duas ou mais vezes, em face de uma única utilização das obras administradas.

Objetivando melhorar e unificar o sistema de arrecadação, a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais – SBAT – a União Brasileira de Compositores -, UBC, a sociedade Administradora de Direitos de Execução Musical do Brasil – SADEMBRA e a Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música – SBACEM se lançaram na formação de uma única instituição arrecadadora, controlada por elas, dessa idéia surgiu o Serviço de Defesa do Direito Autoral – SDDA, dessa associação de fato, não participaram todas as sociedades, fator que contribuiu para a continuação e aumento dos problemas de arrecadação dos valores devidos pois uma obra musical quase sempre era, de autoria ou titularidade de autores filiados à qualquer das entidades existentes e todas elas poderiam cobrar daqueles que utilizassem publicamente essas obras intelectuais (STF, 2003, p. 130 e 131).

Ora, desta multiplicidade de associações e sociedades de fato efetuando paralelamente a mesma cobrança, ocorria ou a cobrança duplicada, ou o que, de fato, acabou se concretizando, o não pagamento pela execução pública das obras dos associados, pois nenhuma das associações poderia dar quitação das verbas que recebia.

Segundo Sepúlveda Pertence:

[...] o problema foi sanado, com a edição da Lei nº 5.988/73, que em seu art. 115, determinou às associações de titulares que criassem o ECAD para promover, com exclusividade, a arrecadação daqueles direitos. O ECAD é até hoje o único escritório com legitimidade para conceder autorização pública de obras musicais, exigindo o respectivo pagamento dos direitos autorais, e dando quitação dos valores efetivamente recebidos (STF, 2003, p. 131).

A cobrança prévia de taxa para execução pública

Na norma revogada, § 2º do artigo 73 da Lei 5.988/73, constava expressamente o seguinte:

§ 2º - Ao requerer a aprovação do espetáculo ou da transmissão, o empresário deverá apresentar à autoridade policial, observando o disposto na legislação em vigor, o programa, acompanhado da autorização do autor, intérprete ou executante e do produtor de fonogramas, bem como do recibo de recolhimento em agência bancária ou postal, ou ainda documento equivalente em forma autorizada pelo Conselho Nacional de Direito Autoral, a favor do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, de que trata o art. 115, do valor, dos direitos autorais das obras programadas.

Isto era completamente coerente com o estado de censura então existente, pois o empresário tinha que apresentar “o programa, acompanhado de autorização do autor [...] (mais comprovante do pagamento) [...] a favor do” ECAD.

O CNDA estabelecia uma tabela de preços e fiscalizava o ECAD, o autor autorizava a execução pública, e o empresário levava toda esta documentação junto com o comprovante de pagamento do ECAD para a autoridade policial. Só a partir daí se poderia realizar o espetáculo.

O CNDA não existe mais, a tabela do CNDA muito menos, agora a execução pública não depende mais de autorização da polícia, apenas do titular de direitos autorais. Mas o ECAD, espertamente, dá um jeito, chega com um boleto de pagamento emitido unilateralmente, com base na tabela de preços que ele mesmo cria e administra, e impõe o pagamento, sob pena de não realização do espetáculo.

Isto, no entanto, ocorre em violação do disposto no artigo 5ª, Inciso II, que determina que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, onde a tal cobrança prévia para permissão de espetáculo, se ocorrer sobre direitos de titulares de direitos não afiliados ao ECAD, incorre em estelionato, e se ocorrer sobre direitos de afiliados, incorre sob constrangimento ilegal.


A ILEGITIMIDADE PROCESSUAL AD CAUSAM

É fato que nossa Constituição Federal prevê a hipótese de associações atuarem judicial e extrajudicialmente em nome de seus filiados, mas desde que expressamente autorizadas por estes.

Nosso Código de Processo Civil, logo em seus primeiros artigos esclarece de forma inequívoca a questão fundamental do interesse e da legitimidade.

O interesse, no sentido da norma, deve ser analisado do ponto de vista de que o autor deve ter um direito material violado ou passível de ser violado, em face de um terceiro. O artigo 6º do Código de Processo Civil é enfático ao determinar que “Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei”. E a própria lei cuida de prover os institutos da representação legal e convencional (por procuração), e da substituição processual, em rol restritivo.

Um dos casos onde se observa a substituição processual é no caso da Lei 1.134/50, onde em seu artigo 1º consta que “Às associações de classe existentes na data da publicação desta lei, sem nenhum caráter político, fundadas nos termos do Código Civil e enquadradas nos dispositivos constitucionais, que congreguem funcionários ou empregados de empresas industriais da União, administradas ou não por ela, dos Estados, dos Municípios e de entidades autárquicas, de modo geral, é facultada a representação coletiva ou individual de seus associados, perante as autoridades administrativas e a justiça ordinária”.

Em nossa Constituição Federal temos o seguinte

Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:

[...]

III - ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas;

[...]

V - ninguém será obrigado a filiar-se ou a manter-se filiado a sindicato;


 

Ora, a lei ordinária coloca um rol restrito de associações de classe que podem representar coletiva ou individualmente seus associados, e a primeira vez onde se admite, em todo nosso ordenamento jurídico, que alguém represente interesses individuais ou coletivos de uma “categoria”, é justamente dentro do artigo da Constituição Federal que rege as associações e sindicatos. Note-se porém, que a representação se dá apenas pelos sindicatos, e não pelas associações.

O ECAD, por ser uma pessoa jurídica de direito privado, cuja única previsão legal é aquela do artigo 99 da Lei 9.610/98, onde está expressamente consignado que seu poder de representação se limita ao universo de seus associados, não cumpre nenhum dos requisitos previstos na lei para excepcionar o artigo 6º do Código de Processo Civil.

Está claro, já neste momento, que não existe a legitimidade para que o ECAD possa atuar em juízo buscando direitos de quem não pertença aos quadros de uma das associações que o compõe.

A lei 9.610/98 é bem redigida, de forma a não deixar dúvidas quanto a este ponto e traz no bojo do art. 99, § 2° o seguinte: “O escritório central e as associações a que se refere este Título atuarão em juízo e fora dele em seus próprios nomes como substitutos processuais dos titulares a eles vinculados.”

Esta é a letra da lei. Mas a interpretação encontrada na jurisprudência é contra legem, senão vejamos:

DIREITO AUTORAL — Legitimidade ativa do ECAD. Possui o ECAD legitimidade para promover a ação de cobrança das contribuições devidas pela execução pública de composições musicais, independentemente da comprovação do ato de filiação feita pelos titulares dos direitos reclamados. Precedentes do STJ. (STJ, 1996).

 

DIREITO AUTORAL — ECAD — Comprovação de filiação e autorização dos compositores de músicas — Desnecessidade, O ECAD é associação civil responsável para promover a cobrança de direitos autorais devidos em razão de retransmissão de músicas, sendo desnecessário provar a filiação dos compositores, bem como sua autorização para o ingresso em Juízo. (STJ, 1997).

 

DIREITOS AUTORAIS — ECAD — Legitimidade ativa. I - Após o advento da Constituição de 1988, o ECAD tem legitimidade para propor ação de cobrança de contribuições devidas em razão de direitos autoral, independentemente da comprovação da filiação e de autorização dos autores das músicas executadas. II - Recurso Especial conhecido e provido. (STJ, 1998).

 

Além da expressa previsão legislativa, o entendimento jurisprudencial que vem prevalecendo assinala tanto a legitimidade do ECAD para a cobrança dos direitos autorais como a desnecessidade de comprovação do ato de filiação dos titulares dos direitos reclamados. (CONSULTOR JURÍDICO, Agosto de 2006).

Com todo o merecido respeito pelas decisões acima trasladadas, o fato é que não se observa a previsão legislativa referida. A lei expressamente prevê que o ECAD e as associações que o formam atuem “em seus próprios nomes como substitutos processuais dos titulares a eles vinculados.”

A eles vinculados.

Se determinado autor não é vinculado à nenhuma associação integrante do ECAD, o ECAD não pode agir em seu nome. Inclusive porque no artigo 22 da Lei 9.610/98 consta expressamente que “Pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou”, o que regulamenta o texto constitucional do artigo 5º Inc XXVII: - “aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”.

Direito exclusivo. Os direitos autorais se dividem em morais e patrimoniais, sendo que os morais são personalíssimos, mas os patrimoniais podem ser dispostos, na forma da lei. O que não se pode é admitir-se que alguém ilegitimamente receba estes direitos, sem a obrigação de repassá-lo a quem de direito, que é o que está acontecendo.

Este é um dos problemas em se aceitar que alguém, não sendo parte legítima, pleiteie direitos de outrem – o direito não atinge seu verdadeiro destinatário.

A tutela judicial caso concedida, estaria legitimando uma apropriação indevida de verbas pertencentes ao titular dos direitos autorais.

A legitimidade para propor ação é a situação subjetiva se quem quer ser autor mostra que pode haver, diante do que expôs na petição inicial, se o Estado atende ao exercício da pretensão à tutela jurídica, decisão favorável. Não seria de admitir-se que se deferisse a petição inicial sem se saber que o autor poderia ser atendido quanto ao que pede. [...] O autor ou é titular da pretensão à tutela jurídica e exerce a ação, para o que contribui o que se conclui quanto à possibilidade jurídica mostrada pelos informes quanto à causa de pedir e o pedido. (PONTES DE MIRANDA, 2001, p. 51)

Segundo o eminente mestre, somente o titular da pretensão pode pedir em juízo. Se outra pessoa pede sobre direito alheio, deve cumprir requisitos específicos, excepcionais, especialmente a outorga.

Para que se possa pleitear quanto a direito alheio, é preciso que tenha havido outorga, negocial ou legal, de poderes de presentação ou de representação. [...] Só lei especial pode atribuir a alguém o poder de exercer a pretensão pré- processual e a processual em nome próprio. (PONTES DE MIRANDA, 2001, p. 91)

Na outorga pressupõe-se relação jurídica negocial, onde o outorgante tem a oportunidade de preservar contratualmente seus direitos no momento em que transfere direitos.

No caso, trata-se de outorga legal, quando a mera filiação a uma das associações componentes do ECAD vincula o autor, e por força do artigo 99 da Lei 9.610/98, o ECAD adquire o pode de atuar em juízo em seu nome.

Em outra explicação um pouco mais didática pode ver o seguinte:

O autor deve ter título em relação ao interesse que pretende seja tutelado. [...] São legitimados para agir, ativa e passivamente, os titulares dos interesses em conflito: legitimação ativa terá o titular do interesse afirmado na pretensão; passiva terá o titular do interesse que se opõe ao afirmado na pretensão. (SANTOS, 2004, p. 71)

A parte pode estar em juízo representada por outrem. Neste caso, continua sendo parte, apenas que outra pessoa exercerá, em seu nome, os atos no processo. Existe a representação legal, necessária ou obrigatória, aquela em que alguém representa um incapaz e diz respeito diretamente à capacidade de estar em juízo. Existe outra, denominada voluntária ou convencional, onde a parte detém sim capacidade para estar em juízo, mas por ato voluntário confere poderes a outrem para que, em seu nome, pratique atos em juízo. Neste último caso:

[...] a representação é voluntária, pois está na vontade de a pessoa ser representada pelo mandatário na relação processual, sendo também convencional, porque expressa por um mandato, que é convencionado entre o mandante e o mandatário (art. 1.288, CC/1916; art. 653, CC/2002). À representação voluntária se refere o Código de Processo Civil, em mais de uma passagem, no art. 215 e seus parágrafos. (SANTOS, 2003, p. 363)

Existe por certo a representação devida à capacidade postulatória, realizada por pessoa legalmente habilitada a postular em juízo. Esta apenas menciona-se, por não ser o objeto do presente estudo.

No processo também pode existir a substituição processual, termo atribuído a CHIOVENDA, quando a parte pleiteia em nome próprio direito alheio.

O substituto processual é parte, no sentido processual. Quer na posição de autor, quer na de réu, o substituto processual é sujeito da relação processual, da qual participa em nome próprio, não em nome do substituído. Nisso difere a substituição processual da figura da representação, em que o representante não é parte, mas apenas representante da parte, que é o representado. Enquanto na substituição processual o substituto age em nome próprio, na representação o representante age em nome do representado.

O Código de Processo Civil permite a expressamente a substituição processual, mas exige que ela tão-somente possa exercer-se quando autorizada por lei. (SANTOS, 2003, p. 349)

O processo só pode existir por iniciativa de quem tenha interesse e legitimidade. A parte deve estar presente no processo ou devidamente representada, exceto no caso de substituição processual, que é excepcional e só pode acontecer mediante expressa previsão legal.

O ECAD, no caso, tem por força do artigo 99 da Lei 9.610/98 o poder conferido para, em nome de seus associados, atuar em juízo especificamente na busca dos direitos autorais de que estes, os associados, sejam titulares. Trata-se portanto de substituição processual expressa em lei, pois o titular do direito autoral tem a prerrogativa de associar-se ou não à uma das associações membro do ECAD, para a partir de então gozar dos serviços desta empresa. Ao associar-se, que é um ato pelo qual o associado manifesta sua vontade, o ECAD recebe a outorga.

Atualmente tal cobrança de direitos de não associados, ocorrendo dentro do sistema judiciário, é ofensivo pela total e absoluta falta de representação, mas principalmente porque em se julgando procedente ações de tal natureza, está se violando o direito material do autor da obra, em perceber os frutos de seu trabalho, em contrapartida do enriquecimento ilícito de uma empresa particular.

É fácil compreender que João não pode ir a juízo pleitear para si, em face de Maria, um direito que pertence a José. O que estaria acontecendo, na melhor das hipóteses, seria João estar se utilizando do processo para obter algo ilícito.

No caso dos direitos autorais a coisa é bem mais grave, porque se trata de direitos protegidos constitucionalmente, que ultrapassam a tutela comum dada ao patrimônio em geral. Os direitos autorais tem reconhecida prevalência sobre outros direitos comuns. Daí a gravidade de alguém, em nome alheio, se apropriar de tais direitos.

Sobre o autor
Arnaldo Adasz

Advogado, Perito em Balística Forense e Legislação Brasileira de Armas de Fogo, Primeiro Presidente e co-fundador da Associação Brasileira de Atiradores Civis, membro do Conselho Consultivo de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército Brasileiro.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Monografia defendida no Curso de Direito - UNIARA - 2007

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