A família e o Estado a luz da Rerum Novarum
O texto apresentado por Leão XIII, traz a importancia da família que:
Assim como a sociedade civil, a família, conforme atrás dissemos, é uma sociedade propriamente dita, com a sua autoridade e o seu governo paterno, é por isso que sempre indubitavelmente na esfera que lhe determina o seu fim imediato, ela goza, para a escolha e uso de tudo o que exigem a sua conservação e o exercício duma justa independência, de direitos pelo menos iguais aos da sociedade civil. Pelo menos iguais, dizemos Nós, porque a sociedade doméstica tem sobre a sociedade civil uma prioridade lógica e uma prioridade real, de que participam necessariamente os seus direitos e os seus deveres. E se os indivíduos e as famílias, entrando na sociedade, nela achassem, em vez de apoio, um obstáculo, em vez de protecção, uma diminuição dos seus direitos, dentro em pouco a sociedade seria mais para se evitar do que para se procurar.14
Percebe-se a ênfase na necessidade de uma célula familiar regida pela autoridade do pai, e não governada pelo Estado como apregoava os socialistas, pois há uma tentativa de estabelecer uma independência entre a sociedade doméstica e civil, vislumbrando que os filhos deveriam ficar sob a tutela dos pais que exerceriam seu pátrio poder até os mesmos atingirem a maioridade para terem livre arbítrio, o Estado não poderia intervir na justiça natural da família sob pena de enfraquecerem os laços familiares.
Primou-se pela prioridade da importância da sociedade doméstica sobre a sociedade civil, pois se os indivíduos e as famílias para se inserir nessa última deveria ter seus poderes fortalecidos e não alijados, senão evitariam a sociedade civil.
Apontou que a ingerência do Estado na célula familiar seria um erro grave, ele poderia atuar somente em casos extremos com intuito de auxiliar a manutenção da família, mas de maneira a manter os direitos individuais e o pátrio poder, fortalecendo os direitos dos cidadãos. Nos dizeres da encíclica:
A autoridade paterna não pode ser abolida, nem absorvida pelo Estado, porque elatem uma origem comum com a vida humana. Os filhos são alguma coisa de seu pai, são de certa forma uma extensão da sua pessoa , e, para falar com justiça não é imediatamente por si que eles se agregam e se incorporam na sociedade civi, mas por intermédio da sociedade doméstica em que nasceram.15
De acordo com o texto publicado pela Igreja Católica os filhos são semelhantes aos seus pais, devendo permanecer sob a tutela deles e por eles educados respeitando-se o pátrio poder até adquirirem o livre arbítrio.
Estado Social como instrumento de preservação do modelo capitalista de produção
O Direito Social e o Estado social pleiteados de forma mínima na encíclica Rerum Novarum podem ser visualizados como mecanismos de sobrevivência do capitalismo, regendo-se pela característica principal de atribuir um caráter de essencialidade ao trabalho, conferindo-lhe uma compensação de natureza social.
No sistema capitalista de produção, o trabalho destaca-se como manancial da riqueza vinculando todo funcionamento e desenvolvimento da sociedade a sua fonte. Percebe-se que todos valores relacionados a paz e harmonia social estão diretamente ligados a ele. As condições de vida digna e adequada subsistência da família encontram-se intimamente concatenadas as relações laborais.
Desta forma, entender-se-á a preocupação da Igreja Católica naquele contexto do ano de 1891, com os excessos exigidos pelos patrões e o descaso com as condições de trabalho fornecidas aos operários.
Constata-se no trecho da Rerum Novarum referente as Obrigações dos operários e dos patrões que:
Quanto aos ricos e aos patrões, não devem tratar o operário como escravo, mas respeitar nele a dignidade do homem, realçada ainda pela do Cristão. O trabalho do corpo, pelo testemunho comum da razão e da filosofia cristã, longe de ser um objecto de vergonha, honra o homem, porque lhe fornece um nobre meio de sustentar a sua vida. O que é vergonhoso e desumano é usar dos homens como de vis instrumentos de lucro, e não os estimar senão na proporção do vigor dos seus braços. O cristianismo, além disso, prescreve que se tenham em consideração os interesses espirituais do operário e o bem da sua alma. Aos patrões compete velar para que a isto seja dada plena satisfação, para que o operário não seja entregue à sedução e às solicitações corruptoras, que nada venha enfraquecer o espírito de família nem os hábitos de economia. Proíbe também aos patrões que imponham aos seus subordinados um trabalho superior às suas forças ou em desarmonia com a sua idade ou o seu sexo.
Mas, entre os deveres principais do patrão, é necessário colocar, em primeiro lugar, o de dar a cada um o salário que convém.16 (Grifos nossos).
O fragmento citado ressalta a importância de fornecer subsídeos para que o trabalhador e sua família tenham uma vida digna, o trabalho deve ser exaltado como meio nobre de manter a sobrevivência, devendo o patrão cumprir a obrigação de pagar um salário proporcional ao esforço, de forma que satisfaça minimamente o operário, evitando que o mesmo se entregue às solicitações corruptoras,aqui interpretadas como ideias socialistas que poderiam enfraquecer os laços da família e desordenar a economia.
Portanto, observa-se por que a regulação das relações de trabalho já se faziam prementes, pois serviam e ainda valem atualmente de forma atemporal como meios de preservar valores humanos, não simplesmente econômicos, mas também aqueles que se desenvolvem fora da esfera laboral. A regulação das relações sociais laborais, com atribuições e limitações de efeitos econômicos-sociais, simboliza a gênese do modelo de sociedade, serviu de matriz para a construção da sociedade contemporãnea.
Atualmente, é evidente que a regulação das relações sociais trabalhistas se dá por meio do Direito do Trabalho, que vai além das conquistas dos operários em face dos patrões, o Direito laboral valoriza o trabalho e concomitantemente, tenta preservar a dignidade da pessoa humana, procura tutelar outros valores fora do trabalho, e, fornece elementos para o bom funcionamento do sistema capitalista de produção, sem abandonar o viés da construção da justiça social dentro desse modelo capitalista.
A Rerum Novarum já afirmava que:
É necessário ainda prover de modo especial a que em nenhum tempo falte trabalho ao operário; e que haja um fundo de reserva destinado a fazer face, não somente aos acidentes súbitos e fortuitos inseparáveis do trabalho industrial, mas ainda à doença, à velhice e aos reveses da fortuna. Estas leis, contanto que sejam aceites de boa vontade, bastam para assegurar aos fracos a subsistência e um certo bem-estar; mas as corporações católicas são chamadas ainda a prestar os seus bons serviços à prosperidade geral. Pelo passado podemos sem temeridade julgar o futuro. Uma época cede o lugar a outra; mas o curso das coisas apresenta maravilhosas semelhanças, preparadas por essa Providência que tudo dirige e faz convergir para o fim que Deus se propôs ao criar a humanidade. Sabemos que nas primeiras idades da Igreja lhe imputavam como crime a indigência dos seus membros, condenados a viver de esmolas ou do trabalho: Mas, despidos como estavam de riquezas e de poder, souberam conciliar o favor dos ricos e a protecção dos poderosos. Viam-nos diligentes, laboriosos, modelos de justiça e principalmente de caridade. Com o espectáculo duma vida tão perfeita e de costumes tão puros, todos os preconceitos se dissiparam, o sarcasmo caiu e as ficções duma superstição inveterada desvaneceram-se pouco a pouco ante a verdade cristã.17 (Grifos nossos).
A encíclica Rerum Novarum pode ser considerada um marco importante pois aponta que algumas ações e práticas influenciariam de forma que o Direito do Trabalho deveria se integrar aos valores fundamentais do Estado Social, estabelecendo deveres não somente para o Estado, mas para todos elementos sociedade.
A Igreja Católica levanta a necessidade de se preocupar com o futuro, prevendo e preparando-se para infortúitos, fica hialino a consequência do excesso ou falta do trabalho atingindo os valores essenciais a pessoa humana, assim como a possibilidade de associação dos operários cristãos para tentar preservar um futuro melhor, baseados nos modelos de justiça e de caridade.
Hodiernamente, o maior problema social é o desemprego, pois no sistema capitalista de produção, o modo principal de sobrevivência de grande parcela das pessoas é advindo da atividade laboral. Sendo assim, fica cristalino a importância da valorização do trabalho, para manutenção da ordem e harmônia do sistema, pois faz parte da centralidade das relações sociais.
O capitalismo pautado no trabalho gera riqueza e ao mesmo tempo cria exclusão social, exploração, miséria, o que analisado no viés liberal, deve ser entendido como resultado do exercício do livre arbítrio e das liberdades individuais, sendo cada um responsável por sua própria situação de vida.
O Papa Leão XIII percebeu que o modelo de Estado Liberal não suportaria por muito mais tempo levando o sistema ao colapso, e, se continuasse a sociedade poderia corromper-se pelas ideias socialistas.
Para a manutenção do modo de produção capitalista apresentou-se mecanismos de correção das injustiças sociais, pautando-se pela valorização do trabalho buscando-se fazer acreditar que é possível justiça social dentro do modelo capitalista.
Sendo assim, a partir do debate das questões levantadas no texto papal sobre as condições dos operários permitiu o desenvolvimento de uma perspectiva da necessidade de um Estado Social e um Direito Social, calcados na solução definitiva: a caridade.
Vede, Veneráveis Irmãos, por quem e por que meios esta questão tão difícil demanda ser tratada e resolvida. Tome cada um a tarefa que lhe pertence; e isto sem demora, para que não suceda que, adiando o remédio, se tome incurável o mal, já de si tão grave. Façam os governantes uso da autoridade protectora das leis e das instituições; lembrem-se os ricos e os patrões dos seus deveres; tratem os operários, cuja sorte está em jogo, dos seus interesses pelas vias legítimas; e, visto que só a religião, como dissemos no princípio, é capaz de arrancar o mal pela raiz, lembrem-se todos de que a primeira coisa a fazer é a restauração dos costumes cristãos, sem os quais os meios mais eficazes sugeridos pela prudência humana serão pouco aptos para produzir salutares resultados. Quanto à Igreja, a sua acção jamais faltará por qualquer modo, e será tanto mais fecunda, quanto mais livremente se possa desenvolver. Nós desejamos que compreendam isto sobretudo aqueles cuja missão é velar pelo bem público. Em-preguem neste ponto os Ministros do Santuário toda a energia da sua alma e generosidade do seu zelo, e guiados pela vossa autoridade e pelo vosso exemplo, Veneráveis Irmãos, não se cansem de inculcar a todas as classes da sociedade as máximas do Evangelho; façamos tudo quanto estiver ao nosso alcance para salvação dos povos, e, sobretudo, alimentem em si e acendam nos outros, nos grandes e nos pequenos a caridade, senhora e rainha de todas as virtudes. Portanto, a salvação desejada deve ser principalmente o fruto duma grande efusão de caridade, queremos dizer, daquela caridade que compendia em si todo o Evangelho, e que, sempre pronta a sacrificar-se pelo próximo, é o antídoto mais seguro contra o orgulho e o egoísmo do século. 18
Ao finalizar seu documento, o Papa Leão XIII dissertando sobre a condição dos operários, apresentou mais uma vez os deveres dos ricos ou patrões, assim como reiteirou a necessidade da Igreja Católica continuar livremente divulgando e solicitando a restauração dos costumes cristãos como um bem social.
Por fim, ressaltou que a alteração das relações entre operários e os patrões, não poderiam resultar em conflito, e, menos ainda em uma corrupção dos constumes, proclamou a Não luta, mas concórdia das classes. Evidencia-se os princípios de uma solução, pautada na justiça e na equidade, tentanto resolver o problema das relações entre o capital e o trabalho, ou seja, entre os trabalhadores, isolados e sem defesa e a usura voraz, por meio da caridade senhora e rainha de todas as virtudes, capaz de concretizar a missão de velar pelo bem público.
Considerações finais
As ingerências da encíclica Rerum Novarum no Direito do trabalho e suas contribuições para garantia de condições de vida digna e adequada subsistência da família são inegáveis, principalmente, no que concerne aos avanços na seara trabalhista, advindos da conclamação da mudança de um modelo liberal para um Estado e Direito sociais.
Independente de apresentar finalidades diversas das enunciadas, quais sejam: pleitear condições mais justas para os operários, busca por uma humanização das relações entre patrões e empregados pautada na restauração dos costumes cristãos e na caridade, as influências da encíclica no Direito do Trabalho foram intensamente profícuas.
Em momento algum se olvida o fato de a Igreja Católica defender seus próprios interesses políticos e econômicos, velados por uma preocupação com as péssimas condições dos operários. Entende-se que a finalidade principal foi manter sua posição e liberdade para continuar com suas prerrogativas e propriedades que até então lhe foram dadas pelo Estado liberal.
Contudo, a principal preocupação evidenciada na encíclica papal com os efeitos políticos da massacrante exploração dos operários era o confronto direto da luta de classes que possibilitaria a propagação da ideologia socialista.
Ao conclamar a necessaria convivência entre o capital e trabalho, reforçou a ideia que o trabalho é a fonte principal das riquezas no modelo capitalista de produção permeando todas as relações sociais, sendo responsável pela harmônia e paz social, denominado na encíclica de bem público.
Portanto, a valorização do trabalho e suas inter-relações como tema central da carta encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII sobre a condição dos operários evidencia que a aplicabilidade da intervenção estatal regulando as relações socio-laborais ratificam necessidade da aplicabilidade do princípio da dignidade humana nas relações de trabalho, como também ressalta a mais relevante concretização desse princípio na sua vertente de proteção ao trabalhador e de salvaguarda da paz social consubstanciando os interesses sociais vitais.