3. Coisa julgada e flexibilização atípica.
A flexibilização da coisa julgada, em hipóteses não previstas em lei, continua sendo tormentosa e está longe de ganhar contornos de convergência doutrinária. Percebe-se em tais discussões certa dose de emoções afloradas que, por vezes, nos distancia da necessária técnica que deve nortear o discurso jurídico.
Teme-se que qualquer brecha para flexibilização da coisa julgada em situações não previstas em lei possa abrir margem para o total enfraquecimento da garantia constitucional, levando-se em alguns casos tal temor às últimas consequências, de maneira a ignorar ou menosprezar situações aberrantes e insuportáveis, admitindo-as como um mero risco que o sistema deve suportar.
Imaginemos, por exemplo, a hipótese de uma ação civil pública que vise à defesa do meio ambiente, pois determinada fábrica está contaminando um rio que abastece uma cidade inteira. Por equívocos na produção probatória (não pela falta de provas, que obstaria a formação da coisa julgada), formou-se coisa julgada sobre uma decisão de improcedência da ação. Contudo, não há dúvidas de que realmente as provas foram forjadas e que, em poucos anos, a população da referida cidade será dizimada, bem como todo o ecossistema do entorno. Não há mais prazo para ação rescisória.
Não obstante a importância da garantia da coisa julgada no nosso sistema, será que devemos levá-la a consequências tão graves, ao ponto de prestigiá-la frente a quaisquer injustiças, por mais graves que sejam? O exemplo citado é apenas uma das graves situações que podem ser perpetuadas com uma decisão flagrantemente injusta, ao lado de outras que já vêm sendo reconhecidas pela jurisprudência, como na investigação de paternidade sem o uso do DNA[23] e as indenizações milionárias por desapropriação, baseadas em laudos falsos.[24]
No âmbito tributário, o Professor Humberto Ávila expõe interessante exemplo da necessidade de flexibilização da coisa julgada quando, no seio de relações jurídicas continuativas, sobrevém decisão do STF em controle concentrado de constitucionalidade, ou difuso acrescido de instrumento de ampliação da eficácia (resolução do Senado ou súmula vinculante), e determinado contribuinte, em virtude de decisão transitada em julgado, tenha de se submeter a um “estado de desigualdade por ela provocado por meio da obrigação de alguém ter de pagar o que ninguém deverá pagar, ou de alguém não pagar o que todos deverão pagar”.[25]
Diante desse quadro, questiona-se se a regra da coisa julgada possui uma finalidade que a sustente que seja imponderável com outros princípios constitucionais fora das hipóteses expressamente previstas de cabimento de ação rescisória.
Esse problema possui uma raiz profunda na teoria geral do direito, especialmente no estudo das diferenças entre regras e princípios, aliada à possibilidade de superação das regras, mesmo que preenchida a previsão normativa para sua incidência.
Refletindo sobre a previsão constitucional de proteção da coisa julgada, estabelecida no art. 5º, XXXVI, concordamos com o Professor Marinoni, para quem tal enunciado prescritivo consubstancia uma regra e não um princípio.[26]-[27] Isso porque se adéqua àquele conjunto de normas “imediatamente descritivas, na medida em que estabelecem obrigações, permissões e proibições mediante a descrição da conduta a ser adotada”, afastando-se, portanto, das normas-princípio que são “imediatamente finalísticas, já que estabelecem um estado de coisas para cuja realização é necessária a adoção de determinados comportamentos.”.[28]
Nesse contexto, a Constituição Federal é peremptória em afirmar a necessidade de preservação da coisa julgada, proibindo medidas que visem a afastar tal garantia de estabilidade da ordem jurídica e tutela da confiança dos cidadãos no Estado. Por ser norma descritiva de uma conduta vedada pelo ordenamento, trata-se de nítida regra jurídica que, a partir da ponderação de valores, deixou claro que o Constituinte optou por prestigiar a segurança jurídica, cristalizando tal valor em regramento específico. Entre eternizar a busca da justiça e conferir estabilidade às relações jurídicas, optou o Constituinte por colocar fim ao litígio, impedindo a revisão da decisão transitada em julgado.
Com efeito, indaga-se se, diante de uma regra constitucional, é possível que o legislador ordinário ou mesmo o Poder Judiciário possam, em alguma medida, não aplicar tal regra, ou melhor, excepcioná-la, viabilizando a modificação de uma decisão transitada em julgado, “pela consideração de razões excepcionais que superem a própria razão que sustenta a aplicação normal da regra”, consubstanciando o que se chama de “aptidão para cancelamento (defeasibility)”.[29]
Conforme já afirmamos, foi a própria Constituição Federal que outorgou ao legislador ordinário a possibilidade de, ponderando valores, prescrever situações em que a coisa julgada será flexibilizada, na medida em que estabeleceu o cabimento da ação rescisória e da revisão criminal, sem precisar em que situações poderiam ser manejadas.
Coube assim ao legislador, no âmbito civil, disciplinar no art. 485 do CPC as hipóteses de cabimento da ação rescisória. Ou seja, verificaram-se situações que apresentavam tamanha injustiça e gravidade que se viabilizou a flexibilização da coisa julgada por meio da ação rescisória. Estamos aqui, portanto, diante de uma flexibilização tipificada da coisa julgada. Não se pode perder isso de vista. As hipóteses de cabimento da ação rescisória e o seu prazo nada mais são do que situações de flexibilização da coisa julgada estabelecidas, por meio da ponderação de valores, pelo legislador ordinário. Afastou-se, assim, a regra constitucional em virtude de razões axiológicas que superaram a razão que confere sustentação a tal garantia. Se a coisa julgada é um importante instrumento de proteção da segurança jurídica, esse valor constitucional não é absoluto e, havendo situações que recomendam seu afastamento para prestigiar outro valor (justiça), estamos diante de casos que justificam a superação da regra e, no caso, possibilitam o ajuizamento da ação rescisória.
Com efeito, não obstante ser a garantia da coisa julgada uma regra constitucional, no dizer de Marinoni uma “super-regra”[30], sua aplicação não observa constantemente a lógica do “tudo ou nada”, havendo situações excepcionais que, não obstante preenchido o enunciado prescritivo que recomenda sua observância, será possível a superação.[31]
A grande questão que ainda precisa ser resolvida doutrinariamente diz respeito à possibilidade de que tal superação seja operada pelo Poder Judiciário, fora das hipóteses previstas em lei. Trata-se de tema dos mais difíceis, porquanto não há qualquer disciplina legal a respeito, a não ser a regra constitucional de proteção da coisa julgada e a competência dos tribunais para apreciação de rescisória e de revisão criminal.
Na doutrina nacional encontramos as mais diversas opiniões, desde a ampla possibilidade de flexibilização atípica da coisa julgada, até a sua radical negação. Conhecidas são as ideias defendidas por José Augusto Delgado, no sentido de sobrepor ao princípio da segurança jurídica inúmeros outros como a legalidade, moralidade e justiça, abrindo-se, assim, amplo campo de possibilidades mitigadoras da coisa julgada.[32] Destaca-se, outrossim, a doutrina de Cândido Dinamarco, que pretende cotejar a coisa julgada com os “princípios da razoabilidade e da proporcionalidade”, viabilizando a flexibilização sob a ideia de que não se pode perpetuar injustiças a pretexto de evitar a eternização de incertezas.[33]
Como dissemos, não obstante seja a coisa julgada uma regra das mais importantes em um Estado de Direito, o que faz com que sua superação ocorra em situações absolutamente excepcionais, não nos parece que só o Poder Legislativo esteja autorizado a estabelecer os casos de superação da regra constitucional. Deve ter prioridade, mas não exclusividade. Há de remanescer, em alguma medida, atribuição ao Judiciário para afastar uma decisão transitada em julgado.[34]
O Poder Judiciário ocupa papel de alta relevância em um Estado Democrático de Direito, inclusive para suprir eventuais omissões do Legislativo.[35] Por exemplo, já passamos da hora de ter uma previsão legislativa de cabimento de rescisória ou outra forma de superação da coisa julgada[36] nos casos de investigação de paternidade em que a decisão transitou em julgado negando a qualidade de pai sem a realização do exame de DNA.[37]
Não nos afigura adequado que o Judiciário fique absolutamente engessado, diante de situações aberrantes, que importem sacrifícios irrazoáveis para os jurisdicionados e para a sociedade, em nome da preservação da coisa julgada.
Temos que atentar, todavia, que estamos diante de uma das regras mais importantes de um Estado Democrático de Direito e essa premissa deve nortear toda a construção proposta. Isso reforça, por exemplo, a preocupação antes citada do Professor Humberto Ávila no sentido de que as regras só podem ser superadas “por razões extraordinárias e mediante um ônus de fundamentação maior”.[38] No particular, tal exigência se avulta.
Preocupa-nos bastante a tese ora perfilhada de ao Poder Judiciário ser possível, ainda que excepcionalmente, afastar a coisa julgada quando presentes razões que superem os valores que fundamentam tal garantia constitucional.[39] Entretanto, sendo coerente com o discurso jurídico até aqui desenvolvido, não podemos defender que a coisa julgada se sustenta em um valor absoluto, insuperável, pois o próprio sistema nos desmentiria, na medida em que as hipóteses de cabimento da ação rescisória e da revisão criminal escancaram a possibilidade de superação da regra constitucional.
Como dissemos, o que se faz necessário é o entendimento de que a flexibilização dessa “super-regra” só pode ocorrer em situações absolutamente excepcionais e mediante um ônus argumentativo da mais alta envergadura. Tal ingerência do Judiciário deve se dar com a consciência de que a tarefa de flexibilização da coisa julgada é prioritariamente exercida pelo Poder Legislativo, devendo ser respeitadas, na maior medida possível, as escolhas por ele delineadas de superação da imutabilidade dos julgados.[40]
Importante, ainda, que o próprio Poder Legislativo estabeleça mecanismos claros ao exercício desse poder excepcional de revisão da coisa julgada pelo Judiciário e, ainda, fique atento para avaliar se, nas hipóteses flexibilizadas, não seria interessante uma atuação célere do Parlamento no sentido de conferir um tratamento legal à hipótese em que a regra constitucional foi superada.
Quanto à crítica a respeito da garantia de que a segunda decisão do Judiciário seria mais justa que a primeira[41], como dito acima, a superação da regra só será admitida em situações excepcionais, em que estejam presentes todas as evidências de que o valioso princípio da segurança jurídica deva ceder diante de outros valores que, no caso, devam ser preservados. Assim, parece-nos que o fundamental não é perscrutar sobre a justiça da segunda decisão - pois efetivamente o ideal de justiça sempre será relativo - mas sim identificar com precisão que a decisão transitada em julgado proporciona situação tão injusta que justifique a preservação de outros valores em detrimento das razões que dão suporte à garantia da coisa julgada. Não há como prometer a justiça absoluta do segundo julgado, mas sim exigir certo consenso quanto à aberração jurídica proporcionada pela decisão transitada em julgado.
Não se desconhece a dificuldade em identificar qual seria tal “injustiça flagrante” apta a dar ensejo à flexibilização atípica da coisa julgada. Tampouco se pretende oferecer uma fórmula mágica como panaceia ao intricado problema. Pensamos que tal identificação deve ser fruto de dedicado e responsável trabalho da doutrina e da jurisprudência, com o atento olhar do Legislativo, no intuito de conferir a menor insegurança possível à sociedade.[42]
Nos termos aqui propostos, teremos um ordenamento jurídico que preservará a coisa julgada como garantia fundamental constitucionalmente prevista, cuja superação se dará nas hipóteses previstas em lei, cabendo ao Judiciário, em situações absolutamente excepcionais e mediante procedimento legalmente estabelecido[43], flexibilizá-la com a máxima atenção possível ao “estado de confiabilidade do Direito por meio da estabilização das decisões”.[44]
4. Coisa julgada e eficácia executiva
4.1 Distinções fundamentais
Uma interessante questão que merece ser examinada diz respeito à relação que se alega existir entre coisa julgada e eficácia executiva da decisão transitada em julgado. A questão que se apresenta é saber se a supressão da possibilidade de execução de uma decisão transitada em julgado implica, em alguma medida, violação à garantia da coisa julgada.
Como já afirmado anteriormente, a imutabilidade da coisa julgada incide sobre a norma jurídica concreta definida na decisão de mérito transitada em julgado. Tal norma jurídica nada mais significa do que o direito subjetivo erigido a partir do ordenamento jurídico vigente.
A princípio, deveriam os jurisdicionados identificar a norma jurídica concreta a partir das relações jurídicas estabelecidas socialmente e observarem, de forma voluntária, o ordenamento em vigor. Contudo, situações há em que não existe consenso quanto ao conteúdo da norma jurídica concreta, fazendo com que se busque o Poder Judiciário para fazê-lo. Quando o Estado-Juiz intervém e define a norma jurídica concreta (que poderia ter sido definida pelos sujeitos da demanda ajuizada), agrega a sua autoridade a tal norma[45], conferindo-lhe a qualidade de imutável, no intuito de proporcionar segurança jurídica à sociedade.
O que queremos atestar com tal arrazoado é que a decisão judicial, embora represente um complemento à norma jurídica que poderia ter sido concebida pelos próprios sujeitos da relação de direito material[46], não assegura a exigibilidade infinda do direito reconhecido. Da mesma forma que os direitos subjetivos reconhecidos voluntariamente pelos cidadãos não são exigíveis para sempre, por igual motivo o direito subjetivo recriado pela decisão judicial também não o é. Em suma, não é objeto da coisa julgada a exigibilidade do direito declarado na decisão final, tornando-a definitiva. A coisa julgada incide sobre o conteúdo do julgado, tornando o direito nele previsto inquestionável.
A afirmação acima se confirma, por exemplo, na prescrição da pretensão executiva. Consoante a súmula n. 150 STF, “Prescreve a execução no mesmo prazo de prescrição da ação.”. Ou seja, após o trânsito em julgado de uma decisão, deve-se verificar no direito material qual é o prazo de prescrição para exigir aquele direito reconhecido judicialmente. Em tendo transcorrido o prazo, não mais haverá possibilidade de exigir o cumprimento do direito (exigibilidade) e, por via de consequência, fulminada estará a eficácia executiva do julgado.
Não se questiona, na espécie, qualquer malferimento à coisa julgada a circunstância de não mais ser executável a decisão transitada em julgado, exatamente porque o reconhecimento de um direito em juízo e a inalterabilidade advinda da coisa julgada nada tem a ver com a exigibilidade desse direito.[47]
Inúmeros outros casos de supressão da exigibilidade podem ser listados, tais como cumprimento da obrigação, compensação, transação, renúncia etc. Em síntese, tais hipóteses comprovam, sem sobra de dúvidas, que a coisa julgada não confere imutabilidade à exigibilidade do direito.[48]
O art. 741 do CPC nos demonstra de forma eloquente tal relação entre a exigibilidade dos direitos e a eficácia executiva dos julgados. Impressiona como a doutrina não confere a devida relevância a tais distinções e, vez por outra, afirma de forma categórica que a supressão da eficácia executiva das decisões importa violação à coisa julgada.
A coisa julgada, reitere-se, não tem por objeto a exigibilidade dos direitos ou a eficácia executiva da decisão, mas sim o próprio direito reconhecido, tornando-o incontestável quanto à sua existência. A exigibilidade, porém, pode ser alterada, suprimida, interrompida, suspensa, sem qualquer violação à coisa julgada.
4.2 Eficácia executiva e segurança jurídica.
Feita a necessária distinção entre o objeto da coisa julgada e a eficácia executiva da decisão transitada em julgado, é importante perceber que o instituto da coisa julgada é apenas uma das formas de proteção da segurança jurídica, mas não a única. Como já afirmado, o princípio da segurança jurídica é uma decorrência imediata do Estado Democrático de Direito, podendo ser extraído diretamente da Constituição. Assim, todo ordenamento jurídico deve ser por ele orientado, tanto na elaboração legislativa, como na sua interpretação.
O tema nos interessa, pois a suspensão da exigibilidade de um direito reconhecido judicialmente, a depender de como for prevista, pode gerar uma situação de insegurança incompatível com a promessa constitucional de um ordenamento jurídico confiável. Imaginemos, por exemplo, uma previsão legal que determine que o autor vitorioso deva requerer a execução da decisão judicial em vinte e quatro horas, sob pena de inexigibilidade do título executivo. Seria razoável um prazo tão exíguo para o exercício da pretensão executória, após a longa duração fisiológica e, por vezes, patológica do processo[49]?
A resposta a tal indagação será identificada após a ponderação dos valores que se pretende proteger com a regra hipotética antes sugerida e o valor segurança jurídica. Se entendermos que a disposição legal proporciona uma situação de insegurança injustificável diante dos valores que visa prestigiar, é de ser reconhecida a sua inconstitucionalidade.
Não pretendemos nos estender nesse ponto, a fim de não fugirmos do tema a que nos propomos (coisa julgada). O que precisamente interessa aqui é destacar que a eventual inconstitucionalidade da regra citada, manipulando a exigibilidade do direito reconhecido e consequentemente a eficácia executiva do julgado, não decorre de uma possível violação à coisa julgada, mas sim de uma agressão direta ao princípio da segurança jurídica. A norma jurídica concreta cujo direito nela reconhecido se torna imutável em nada é abalada com a supressão da exigibilidade, conforme já amplamente demonstrado.
4.3 Eficácia executiva e posterior declaração de inconstitucionalidade pelo STF
Os questionamentos acerca da exigibilidade do direito reconhecido por decisão transitada em julgado tornam-se ainda mais interessantes quando analisados sob a ótica do art. 741, parágrafo único, e do art. 475-L, §1º, do CPC, que veiculam, em sede de embargos à execução e de impugnação ao cumprimento de sentença, a viabilidade de alegação da inexigibilidade do título executivo, sempre que “fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal.”.
Tais regramentos foram inseridos no ordenamento jurídico brasileiro por inspiração do direito alemão que, no §79 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional Federal, prevê:
(1) É legítimo o pedido de revisão criminal nos termos do Código de Processo Penal contra a sentença condenatória penal que se baseia em uma norma declarada inconstitucional (sem a pronúncia de nulidade) ou nula, ou que se assenta em uma interpretação que o Bundesverfassungsgericht considerou incompatível com a Lei Fundamental. (2) No mais, ressalvado o disposto no § 95 (2), da Lei da Bundesverfassungsgericht ou uma disciplina legal específica, subsistem íntegras as decisões proferidas com base em uma lei declarada nula, nos termos do § 78. É ilegítima a execução de semelhante decisão. Se a execução forçada tiver de ser realizada nos termos da disposição do Código de Processo Civil, aplica-se o disposto no § 767 do Código de Processo Civil. Excluem-se as pretensões fundadas em enriquecimento sem causa. (grifo nosso)[50]
À vista do dispositivo inspirador da regra existente no ordenamento jurídico brasileiro, importante sublinhar alguns pontos que nos parecem fundamentais: a) O dispositivo alemão trata nitidamente da eficácia executiva de decisões baseadas em dispositivos declarados inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional. Por tal razão que é expresso em afirmar que as decisões proferidas ficam íntegras, sendo inviável apenas a sua execução; b) Ademais, também de forma clara, impede que a decisão do Tribunal Constitucional tenha efeitos pretéritos, vedando pretensões de enriquecimento sem causa decorrentes do cumprimento de uma decisão baseada em dispositivo tido por inconstitucional.
Apesar de o ordenamento jurídico brasileiro não ser claro quanto aos consectários do art. 741, parágrafo único, e art. 475-L, §1º, do CPC, não entendemos porque a doutrina nacional ignora completamente tal interpretação autêntica delineada pelo legislador alemão e não a utiliza para nortear a aplicação dos referidos dispositivos.[51] Prefere-se, ao contrário, perfilhar que a regra brasileira tem efeitos retroativos, ataca a própria existência da decisão e viabiliza pretensões repetitórias caso cumprida a decisão baseada em disposição inconstitucional.
O Professor Marinoni lembra interessante passagem de conferência proferida por Friedrich Müller, no Rio de Janeiro em 2002, na qual tece considerações sobre o regramento alemão e como é visto pela Corte Constitucional Federal. Vejamos:[52]
O §79 regulamentou matérias especialmente relevantes: contra sentenças penais que se baseiam em uma norma posteriormente declarada inconstitucional ou nula cabe a retomada de um processo. Mas decisões não mais impugnáveis nas outras áreas do direito remanescem “intocadas”: por conseguinte, não mais podem ser eliminadas. Se a partir delas ainda não tiver sido efetuado o procedimento da execução – e.g., no Direito Civil -, isso não poderá mais ocorrer a partir de agora. E caso no passado já tenha sido realizada uma execução a partir delas, essa prestação (Leistung) não mais poderá ser cobrada de volta, “pretensões resultantes de enriquecimento ilícito (...) estão excluídas” (§79 II 4). Nesses casos a dimensão temporal do passado é por assim dizer sustada, é bloqueada diante do futuro. Uma exceção – abertura facultativa da dimensão futura – só vale para o direito penal. A razão é plausível, pois esse ramo do direito intervém de modo especialmente cortante nas relações pessoais e porque a pena envolve um juízo de desvalor sobre o comportamento humano – mas justamente com base em uma norma agora declara inconstitucional. O §79 precisava solucionar o conflito entre a justiça do caso individual e a segurança jurídica objetiva – em uma constelação que abrange diversas dimensões temporais; em outras palavras, num caso clássico de direito intertemporal. Nos casos antes citados – bloqueio do passado diante do futuro -, o §79 decidiu-se pela segurança jurídica e foi por isso elogiado pelo Tribunal Constitucional Federal. A Corte extraiu do §79 até um “princípio jurídico universal”, no sentido de “que uma decisão do Tribunal Constitucional Federal, que declara a nulidade de uma norma, em princípio não deve produzir efeitos sobre relações jurídicas já processadas, abstraindo da exceção de uma sentença penal transitada em julgado.
É interessante observar que não se cogita, com a cessação da eficácia executiva, em violação à coisa julgada. Ao contrário, prestam-se encômios à impossibilidade de a decisão posterior do Tribunal Constitucional alemão não poder retroagir para abalar a coisa julgada fora da seara penal, impedindo assim qualquer pleito repetitório.[53] É o que se chama de sustação da dimensão temporal do passado diante do futuro. Assim, nas situações já consolidadas, ocorre “o bloqueio do passado diante do futuro”, tendo sido elogiado pelo Tribunal Constitucional alemão, porquanto decidiu pela segurança jurídica. Contudo, caso ainda não cumprido o direito definido na decisão judicial, isso não mais poderá ocorrer, pois suprimida está a eficácia executiva diante da decisão da Corte Suprema.
Pensamos que o art. 741, parágrafo único, e o art. 475-L, §1º, do CPC devem ser interpretados nos mesmos termos do regramento alemão, na medida em que constituem uma hipótese de ineficácia prospectiva dos julgados baseados em dispositivos tidos por inconstitucionais pelo STF. Não é furtivo o fato de ser suprimida a exigibilidade do direito, afastando a eficácia executiva do julgado. O que tais dispositivos pretendem, pois, é suprimir a possibilidade de se executar um título judicial caso sobrevenha um evento da mais alta relevância no ordenamento jurídico nacional, que é o reconhecimento da inconstitucionalidade de um enunciado normativo pelo STF. Visa ao futuro, jamais ao passado. Não há retroatividade que atinge a coisa julgada, muito menos possibilidade de repetição do que foi regularmente cumprido.
Defender que tais regramentos retroagem para atingir a decisão transitada em julgado ou possibilitar a repetição do indébito quando já cumprido o direito reconhecido judicialmente só pode ser fruto de um hercúleo exercício exegético, pois definitivamente não é isso que está consignado no texto legal.[54]
O grande problema que identificamos na doutrina que se debruça sobre a constitucionalidade de tais dispositivos está na premissa adotada. Costuma-se afirmar que são retroativos, fazendo com que a decisão posterior do STF retroaja para afetar a coisa julgada e elimine todos os efeitos gerados pela decisão transitada em julgado. Realmente, se essa for a premissa adotada, sobram argumentos para configurar a inconstitucionalidade.
Contudo, se a mera leitura do art. 741, parágrafo único, e do art. 475-L, §1º, do CPC não é suficiente para se afastarem tais conclusões, utilizemo-nos da sua raiz histórica alemã e da respectiva doutrina a respeito como auxílio na interpretação dos dispositivos. O que não se pode concordar é com a tentativa de inquiná-los de inconstitucionais por razões que lhes são estranhas e avessas à sua teleologia.
Delimitado, portanto, o conteúdo normativo do art. 741, parágrafo único, e do art. 475-L, §1º, do CPC, cumpre-nos voltar à questão se a supressão da eficácia executiva de uma decisão acobertada pela coisa julgada viola tal garantia constitucional.
Conforme já expusemos, a eficácia executiva das decisões não fica acobertada pela garantia da coisa julgada, existindo inúmeros exemplos nos quais ela é suprimida, suspensa, interrompida, enfim, modificada das mais diversas maneiras. Entender diversamente implica reconhecer que, por exemplo, a prescrição da pretensão executória consubstancia hipótese de flexibilização da coisa julgada, o que não nos parece adequado.
Com efeito, a inexigibilidade prospectiva das decisões transitadas em julgado não afeta a coisa julgada, que tem por objeto o direito reconhecido judicialmente, garantindo a sua existência e impossibilidade de ser questionado em outras demandas judiciais. Por tal razão, como o art. 741, parágrafo único, e o art. 475-L, §1º, do CPC proporcionam apenas a inexigibilidade do direito reconhecido judicialmente, não se pode falar violação à coisa julgada.
Diante de um evento de alta relevância, que é a decretação da inconstitucionalidade pelo STF, o legislador ponderou valores e cristalizou a regra que suprime a eficácia executiva das decisões baseadas no dispositivo inquinado de inconstitucional pela Corte Suprema. Afastou a segurança jurídica que emerge do direito de executar a decisão transitada em julgado e considerou o reconhecimento da inconstitucionalidade pelo STF evento superveniente e apto a prevalecer em um juízo de proporcionalidade.[55]
Os dispositivos ora interpretados visam, assim, a compatibilizar o controle difuso de constitucionalidade existente no Brasil com a existência de uma Corte de cúpula, responsável em dar a última palavra em questões constitucionais. Como a decisão do STF causa induvidoso impacto no ordenamento jurídico, optou o legislador em inviabilizar a execução de decisões baseadas no regramento inconstitucional.[56]
Assim, ainda que analisado apenas sob a ótica da segurança jurídica (item 4.2 supra), não nos parece inconstitucional o resultado da ponderação de valores feita pelo Legislador, quando positiva que a definição sobre a constitucionalidade de um dispositivo legal pelo STF constitui algo tão impactante no ordenamento jurídico que se torne apto a impedir a execução de decisões que o tenha por fundamento. Além de prestigiar a autoridade das decisões da Suprema Corte e a própria força normativa da Constituição[57], consagra a isonomia, na medida em que busca proporcionar uma aplicação homogênea do ordenamento, na maior dimensão possível. Os cidadãos, por sua vez, estarão devidamente informados que as decisões judiciais não produzirão mais efeitos se o Supremo Tribunal Federal reconhecer a inconstitucionalidade dos dispositivos no qual ela se baseia.
Interessante registrar que, mesmo antes do art. 741, parágrafo único, e do art. 475-L, §1º, do CPC, Teori Zavascki já recomendava a supressão da eficácia executiva das decisões judiciais, após decisão do STF em controle concentrado ou difuso com resolução do Senado, mediante a ponderação de valores constitucionais, nos seguintes termos:[58]
Quid juris sobre a exeqüibilidade, após a Resolução do Senado, de obrigações anteriores ainda pendentes? Estaria ela assegurada pela força vinculante da sentença? Entendemos que não. Reproduz-se, na situação focada, o conflito entre a força vinculante da sentença do caso concreto e a da que decorre da decisão do Supremo e da Resolução do Senado. Entre uma e outra, mesmo que se esteja em fase de execução, a prevalência, pelos motivos antes expostos, é da segunda, que poderá ser invocada, em embargos do devedor, como causa extintiva da obrigação executada (CPC, art. 741, VI).
Em recente decisão, o STJ ratificou essa posição, extinguindo sem julgamento de mérito ação ordinária proposta em primeira instância por um contribuinte, na qual objetivava afastar decisão transitada em julgado com base em pronunciamento posterior do STF incrementado pela resolução do Senado. Segundo a Corte, apesar da ação não poder ser manejada, pois ofenderia a coisa julgada, tributos cujos fatos geradores ocorreram entre a coisa julgada e a resolução do Senado que ainda não foram pagos, não mais poderiam ser exigidos, em virtude da ineficácia executiva que se operou após o pronunciamento do STF e a resolução senatorial.[59]
4.4 Eficácia executiva e eficácia preclusiva da coisa julgada.
Um último ponto merece nossa atenção quanto às alegações de inconstitucionalidade do art. 741, parágrafo único, e do art. 475-L, §1º, do CPC. Defende-se que a possibilidade de alegação, na fase executiva, da inexigibilidade do título executivo com base na inconstitucionalidade proporcionaria violação da coisa julgada, pois flexibilizaria a sua eficácia preclusiva.[60] Isso porque a inconstitucionalidade do dispositivo legal (como tal reconhecido pelo STF) poderia ter sido alegada antes do trânsito em julgado, não podendo ser aduzido após o seu advento. Tal possibilidade violaria a garantia constitucional da coisa julgada.[61]
Tal argumento não nos convence. Analisando os regramentos que suprimem a exigibilidade das decisões transitadas em julgado, verificamos que efetivamente ocorre um evento posterior à formação da coisa julgada apto a proporcionar tal efeito. Referimo-nos à decisão do STF dando a última palavra sobre a constitucionalidade de certo dispositivo legal e não à mera alegação de inconstitucionalidade desprovida de pronunciamento da Corte Suprema.
Se, antes do pronunciamento do STF, realmente era possível termos a alegação da inconstitucionalidade do dispositivo legal, fazendo com que a eficácia preclusiva da coisa julgada impedisse uma nova alegação na fase executiva, estamos aqui tratando da supressão desse dispositivo do ordenamento jurídico, após a decisão do STF.
Entender que o contexto jurídico anterior e posterior à decisão da Suprema Corte é rigorosamente o mesmo é admitir que este fato não causa qualquer impacto no ordenamento jurídico.[62]
Assim não nos parece. Após o STF dar a última palavra sobre a constitucionalidade de certo dispositivo legal, em especial quando reconhece sua inconstitucionalidade, temos uma alteração significativa o ordenamento jurídico, porquanto os juízes não mais poderão aplicar a regra afastada pela Corte maior. Caso o faça, e não estejamos diante do pronunciamento do STF em sede de controle concentrado de constitucionalidade – situação que confere grande nitidez ao referido impacto jurídico – basta que a demanda seja conduzida ao STF que certamente tal solução lhe será conferida.[63]
Não podemos concordar com o Professor Marinoni, quando afirma que o art. 741, parágrafo único, e o art. 475-L, §1º, do CPC importam violação da eficácia preclusiva da coisa julgada, pois viabilizam a apresentação, em oposição da execução, dos mesmos motivos “que foram arguidos ou que poderiam ter sido invocados na fase antecedente à resolução do mérito”.[64]
O legislador não permitiu a mera alegação da inconstitucionalidade em sede de execução, nos mesmos moldes que poderia ter sido feito na fase de conhecimento, mas sim oportunizou trazer aos autos um elemento novo, posterior à decisão transitada em julgado, que foi a decisão da Suprema Corte. E este novo elemento, justamente porque sequer existia, não poderia ter sido antes alegado.
Como dissemos, entender que a situação jurídica anterior e posterior à decisão da Suprema Corte é a mesma, significa admitir que este fato não causa qualquer impacto no ordenamento jurídico. Luis Guilherme Marinoni, paradoxalmente, tratando das relações jurídicas continuativas, reconhece expressamente que as decisões do STF impactam de forma significativa no ordenamento jurídico, apresentando aptidão de fazer cessar a eficácia das decisões judiciais transitadas em julgado em relação aos fatos jurídicos futuros. Vejamos:
A declaração de inconstitucionalidade pode ser vista como uma circunstância superveniente, tal como uma nova norma. Assim, pode permitir ao vencido na ação anterior – em que a inconstitucionalidade não foi reconhecida – alegar, por exemplo, a declaração de inconstitucionalidade do tributo.[65]
(...)
(...) a declaração de constitucionalidade tem os efeitos de eliminar a dúvida sobre a aplicação de uma norma – dando-lhe especial eficácia – e de vincular os órgãos do Judiciário e os órgãos da Administração, obrigando-os a se comportar de acordo com o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. A partir da declaração de constitucionalidade há certeza jurídica sobre a constitucionalidade da norma. Além de a certeza jurídica vincular os órgãos do Judiciário e da Administração, ela se impõe sobre todos os membros da sociedade, obrigados que estão a respeitá-la.[66]
Ora, como se pode considerar a declaração de inconstitucionalidade pelo STF um evento posterior à coisa julgada que impacta a ordem jurídica e demonstra aptidão de ser considerada como alteração das circusntâncias jurídicas frente às relações jurídicas continuativas e, em relação à eficácia preclusiva, tal fato não consubstancia evento novo e, portanto, não se submete à eficácia preclusiva da coisa julgada? Com o devido respeito, há uma contradição em tais posicionamentos.
Nesses termos, não há de se falar em violação à eficácia preclusiva da coisa julgada, pois o que proporciona a supressão da exigibilidade não é a simples alegação de inconstitucionalidade que poderia ter sido veiculada antes do trânsito em julgado, mas sim a decisão do STF, dando a última palavra sobre o tema.