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Provas ilícitas lícitas ?

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Agenda 01/08/2002 às 00:00

3. A prova ilícita dentro do sistema jurídico brasileiro.

Feitas essas breves colocações, chega-se no problema que vem atormentando os operadores do direito, qual seja a utilização da prova obtida mediante comportamento ilícito. Estaria ela vedada, à luz do dogma constitucional ? Se a resposta for negativa, em que hipóteses poderíamos recorrer a esse expediente ? Qual o grau de eficácia do comando ? Essas são apenas algumas das questões postas diariamente no cotidiano forense. E como se era de esperar, em face da delicadeza da questão, não há, ainda, jurisprudência firme, embora seja notada uma tendência pela vedação completa da utilização daquela prova.

O Direito é imenso sistema normativo, composto por regras e princípios. Nenhuma regra, ou mesmo princípio, por mais importante que seja, pode ser entendida por si própria e distante das demais. Muito ao contrário, a interpretação de qualquer comando sempre deverá levar em conta todos os outros comandos prescritos pelo sistema, pena de grave subversão da ordem jurídica.

Nessa medida, o sistema tem a função precípua de dar unidade e coesão ao ordenamento jurídico, eis que ele engloba a totalidade de regras e princípios colhidos em todos textos e práticas nacionais. Vale a lição de NORBERTO BOBBIO, que entende por ‘sistema’ uma totalidade ordenada, um conjunto de entes entre os quais existe uma certa ordem. Para que se possa falar de uma ordem, é necessário que os entes que a constituem não estejam somente em relacionamento com o todo, mas também num relacionamento de coerência entre si [7].

Com razão, de nada adiantaria seguir à risca a interpretação literal de regras (ou princípios) encontradas aqui ou acolá, se, dessa prática, obtivéssemos um resultado incoerente com o próprio sistema. Ao assim proceder, estaríamos prestigiando irracionalmente uma regra (ou princípio), ao preço do sacrifício de toda unidade de um sistema de hierarquia infinitamente maior. Se entendêssemos o Direito como uma série de normas que valem por si próprias (e que, portanto, nenhuma relação entre si guardam), transmitiríamos, em última análise, a insegurança jurídica a todos. Dessa forma, conclui-se que, para salvaguardar o sistema, muitas vezes seremos obrigados a sacrificar regras e mesmo restringir a aplicação de princípios. Ou melhor: necessitaremos dar uma interpretação às regras e aos aludidos princípios mais consentânea com os fins do ordenamento no qual se inserem, harmonizando-os com o sistema.

Para bem ilustrar esse aparente conflito, figuremos o exemplo da garantia do contraditório e da inafastabilidade de lesão ou ameaça a direito do controle do Judiciário (ambos inerentes ao Estado de Direito e assegurados constitucionalmente). Muitas vezes, para a efetivação de um, o outro, momentaneamente, tem sua aplicação mitigada. Vale exemplificar: Jayme, após longos anos de noivado, tem um inesperado filho com Clarissa. Ciente da situação, rompe a relação pública que com ela mantinha. Nove meses se passam e, uma vez nascido Breno, Clarissa decide, representando o bebê, cobrar do genitor uma quantia capaz de, ademais de auxiliar no pagamento das despesas de parto, também garantir a manutenção do rebento durante a menoridade. Ao despachar a petição inicial, o magistrado deparar-se-á com dois princípios garantidos pela Constituição: o que prevê que o menor deverá ter sua existência garantida e, de outro lado, o princípio que assegura a Jayme o direito de ser ouvido antes de ter contra si uma decisão judicial. Qual das soluções tomar: ofertar, desde logo, alimentos a Breno ou esperar, para que, uma vez efetivada a citação, Jayme também possa intentar convencer o juízo ? A solução não parece ser complicada.

Como se vê, no exemplo trazido, em momento algum, Jayme, (que tinha a garantia constitucional de ser ouvido e, assim, trazer sua versão dos fatos, convencendo o juízo) interferiu na ação proposta contra si por seu filho - pelo menos até o momento em que o juiz ordenou o pagamento mensal de pensão. À todas luzes, o princípio do contraditório não foi respeitado em toda sua extensão (que significaria que em todas as circunstâncias as pessoas têm o direito de participar em todas as fases do processo). Ao contrário, no caso, a bilateralidade da audiência somente perfectibilizar-se-ia em momento ulterior, quando Jayme, já citado e pagando a quantia mensal, oferecesse sua contestação, sem embargo de eventual insurgência contra a decisão liminar.

Todavia, a momentânea postecipação do contraditório estava plenamente autorizada e ninguém duvida de seu acerto. Com efeito, não seria justo que nosso querido rebento (que, como qualquer criança, tem despesas e pouca condição de sobreviver por seus próprios meios) necessitasse aguardar o natural e inevitável lapso de tempo decorrente da citação de seu pai (através de mandado por oficial de justiça e o retorno aos autos), o prazo para contestação, mais o período em que os autos restariam conclusos com o juiz, a decisão deste e, enfim, a efetivação da medida, para lograr alcançar o bem da vida buscado. Se, ao interpretar o direito ao contraditório, concluíssemos que Jayme efetivamente tinha direito de ser ouvido antes de ter seu patrimônio atacado por ordem judicial, quantos outros princípios de igual envergadura não estaríamos inarredavelmente agredindo ?

De tudo, resulta que, muito embora todas normas encontrem-se a viger, esse fato não indica que, tão-somente por essa razão, elas devam ser inteiramente respeitadas em todos os casos concretos, mesmo porque seria impossível. A desconsideração do Direito como um sistema complexo implica, em última análise, na impossibilidade de ofertar coerência e unidade ao próprio Direito. Nesse sentido, as provas ilícitas, enquanto integrantes do sistema, não podem assumir facetas alheias a todo conjunto imaginado.

Os princípios, como se viu, estão sempre em permanente conflito. Mesmo devendo ser respeitados na maior escala possível, também eles sujeitam-se às contingências do caso concreto analisado. Por isso, e não raro, devemos restringir a aplicação de um princípio, se de sua obediência contrariarmos outros tantos (de igual envergadura e de maior valor na situação concreta). Com isto, pode-se afirmar que nenhum princípio, por mais importante que seja, pode existir por si apenas, senão necessita conviver com outros tantos, também integrantes do sistema jurídico. Não é à toa que se diz que os princípios estão em rota de permanente colisão e que devem ser valorados, para que se descubra qual deva preponderar.

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De tão relevante é o tema da ilicitude da prova, afirma-se que, em qualquer grau de jurisdição, possa ela ser declarada, e independente do pedido do interessado. Em outras palavras, não há que se falar em preclusão da prova ilícita [8].

Todavia, muito embora a clareza do texto constitucional referente ao emprego das provas ilícitas, temos que a expressão legislativa utilizada no comando não deva ser interpretada por sua literalidade, sob pena de grave subversão do sistema [9]. Embora reze o art. 5º, LVI, que sejam inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos, estas nem sempre estão vedadas no processo. Para bem compreender o alcance da norma, urge perquirir seu escopo e sua função dentro do processo.

Pois bem, ao que tudo indica, o legislador constituinte, que teve sua infância e juventude marcada pelo regime de exceção que governou o país por duas décadas, guardou indisfarçável receio dos métodos utilizados em referido período, o qual se imortalizou na história nacional mais pelo desrespeito aos direitos individuais do que por suas eventuais conquistas [10]. Temendo novas violações, através do comando constitucional, buscou o legislador colocar freios aos impulsos arbitrários daqueles que ainda não se haviam acostumado a conviver em sociedade democrática. Serviria, a norma, para prevenir o cometimento de novos ataques aos valores essenciais do Estado de Direito (proteção da pessoa humana na maior escala possível) e punir, com rigor, as investidas ilícitas contra direitos de terceiros.

Como bem observa BARBOSA MOREIRA, explica-se tal opção, em grande parte, por circunstâncias históricas. A Constituição foi elaborada logo após notável mudança política. Extinguira-se, recentemente, o regime autoritário que dominara o País e sob o qual eram muito freqüentes as violações de direitos fundamentais, sem exclusão dos proclamados na própria Carta da República então em vigor, como a inviolabilidade do domicílio e da correspondência. Ninguém podia considerar-se imune a diligências policiais arbitrárias ou ao grampeamento de aparelhos telefônicos. Quis-se prevenir a recaída nesse gênero de violências. É mister reconhecer que, naquele momento histórico, não teria sido fácil conter a reação contra o passado próximo nos lindes de uma prudente moderação. Se puxarmos um pêndulo com demasiada energia em certo sentido e assim o mantemos por largo tempo, quando seja liberado ele, fatalmente, se moverá com força equivalente no sentido oposto [11].

O escólio do mestre carioca já indicava problemas que vivenciaríamos anos mais tarde. Efetivamente, foi-se de um lado extremo, no qual eram utilizadas em larga escala as provas obtidas por meios ofensivos aos direitos, para o outro, no qual, a pretexto de preservar os direitos conquistados após brava caminhada, encontra-se a vedação ampla e irrestrita à utilização daquelas conseguidas através de violação ao mais discutível direito individual, nem que para isso seja preciso, até mesmo, santificar o egoísmo em detrimento da boa-fé.

É bom que se estabeleça, vez por todas, que a idéia de vedar a utilização da prova ilícita no processo busca precipuamente varrer a malícia e a deslealdade. Se, na conduta do agente, não se confirmam tais premissas, por seguro a prova poderá ser acolhida, visto que o dispositivo está impedido de incidir. Dessa forma, a correspondência ao filho drogadicto enviada pelo traficante e violada pela mãe é prova boa, assim como a condução do indigitado pai para o exame de dna. Nessas ações, não há qualquer deslealdade, malícia, má-fé,... Muito ao contrário, essas pessoas agem movidas pelos mais nobres sentimentos.

Situação radicalmente inversa seria observada se, ao invés da mãe e do cônjuge, fossem, as provas, produzidas por terceiros (polícias por exemplo). Nesse caso, a regra da vedação à prova ilícita incidiria com toda força, diante da diversidade dos interesses e valores envolvidos, nada justificando aquela lesão à esfera de outras pessoas.

Para bem situar a emblemática questão, necessário recorrer a métodos de interpretação que possibilitem a resolução desses conflitos, traduzidos pela eterna batalha dos princípios por sua sobrevivência.


4.A importância do princípio da proporcionalidade.

Quiçá o maior aliado na resolução desses problemas seja o chamado princípio da proporcionalidade (verhaeltnissmaessigkeitprinzip), utilizado originariamente no direito administrativo tedesco, em meados do século XIX, e que, com o tempo, adquiriu status constitucional, sendo incorporado à Lei Fundamental de 1949 daquela República Ocidental. Os mentores daquele que hoje é um princípio aceito pela ampla maioria dos doutrinadores constataram, na época, que, por vezes, a aplicação estrita e literal de um comando legal, embora plenamente válido e eficaz, poderia ensejar um efeito contrário ao próprio Estado de Direito previsto pelo sistema de determinado país, de modo que se concluiu que a norma (genérica e abstrata) incidindo em determinados casos concretos poderia acarretar conseqüência negativa para a ordem estabelecida naquela nação. Destarte, tornou-se imperioso criar um mecanismo racional, capaz de outorgar a devida segurança jurídica à sociedade, isto é, um meio que garantisse que a norma somente fosse observada caso cumprisse com sua missão e se aliasse aos escopos do sistema. A aplicação de normas, então, deveria harmonizar-se com o sistema no qual elas estão insertas. Nesse diapasão, o princípio da proporcionalidade visava, originariamente, regular o poder de polícia do Estado, ofertando maior segurança jurídica aos particulares.

Eis a forma pela qual foi imaginado o princípio da proporcionalidade, cuja função precípua é justamente garantir o Estado de Direito em toda sua plenitude, vedando a aplicação de normas desarrazoadas quando em confronto com o sistema vigente. Nada mais acertado, afinal não há, em realidade, nenhum direito absoluto [12], capaz de sobrepor-se sobre todos os demais. Assim, e partindo desse pressuposto (o de que os direitos fundamentais encontram-se não raro em rota de colisão), a doutrina germânica também admitiu que nenhuma norma poderia ser entendida distante do contexto no qual se insere, devendo ter sua aplicação restringida na medida em que afrontasse disposições outras de maior envergadura ou não cumprisse com seus objetivos originários.

Partindo dessas premissas, como assevera o ilustre maestro da Universidade de Munique, HEINRICH SCHOLLER [13], a jurisprudência acabou por desenvolver o conteúdo do princípio da proporcionalidade em três níveis: a lei, para corresponder ao princípio da reserva da lei proporcional, deverá ser simultaneamente adequada (geeignet), necessária (notwendig) e razoável (angemessen). Os requisitos da adequação e da necessidade significam, em primeira linha, que o objetivo almejado pelo legislador ou pela administração, assim como o meio utilizado para tanto, deverão ser, como tais, admitidos, isto é, que possam ser utilizados. Para além disso, o meio utilizado deverá ser adequado e necessário.

Estabelece-se, assim, um nítido confronto entre os meios utilizados para lograr o resultado pretendido. Em última análise, o juízo, para estabelecer a pertinência da aplicação do princípio da proporcionalidade no caso concreto, deveria cotejar analiticamente os direitos envolvidos no litígio, estabelecendo qual deles deva preponderar sob as circunstâncias peculiares da relação apreciada, nada impedindo que, em outra feita, o direito cá preterido, diante de novas condições fáticas, paire sobre aquele ora privilegiado. Tudo irá depender da avaliação de se o meio utilizado para a obtenção do escopo almejado mostrava-se adequado, necessário e razoável. Por vezes, um princípio terá sua aplicação maximizada. Noutras, sua observância poderá ser, até mesmo, postecipada, sem que nenhuma subversão ao sistema seja visualizada nesse fato corriqueiro.

A correlação entre os meios e os fins serviu de base para a criação da teoria dos degraus (Stufentheorie), hoje adotada pelo Tribunal Federal Alemão. De acordo com ela, os direitos encontram-se hierarquizados. Por isso, as exigências para a restrição de um direito crescem à medida em que esse assume posição de maior relevo no cenário jurídico. Decorre, em última análise, maior rigor para restringir a aplicação daqueles princípios mais importantes dentro do sistema, exigindo, da situação fática, manifesto contorno de urgência e necessidade.

Para ilustrar a nobre função princípio da proporcionalidade, figuremos um exemplo bastante usual nos corredores do Foro: Gustavo, manejando seu corsa, é abordado por policiais, em razão de apresentar indícios de consumo de álcool. Muito embora tenha negado-se a utilizar-se do bafômetro, os polícias o portam até hospital próximo, no qual é obrigado a doar alguns mililitros de sangue para análise. Sobrevém resultado, deixando inconteste que nossa personagem consumira duas vezes mais a quantidade de álcool tolerada pela legislação. Passados alguns meses, o caso assume conotação judicial, na medida em que o sempre combativo promotor de justiça da comarca o denuncia pela suposta prática do delito de direção perigosa e, em instrução, defende a validade da prova coligida naquele hospital. Poderíamos aceitá-la ? Vênia deferida de entendimento diverso, jamais o nobre magistrado da causa poderia ter a prova como boa, aos efeitos de embasar sentença penal condenatória, na medida em que o meio pelo qual ela fora obtida violara tantos outros direitos assegurados à nossa personagem – justamente pelo mesmo ordenamento que proíbe particulares de trafegar alcoolizados. Note-se que, no caso, para bem colocar o princípio da proporcionalidade, deveríamos cotejar os interesses envolvidos no litígio. De um lado, poderíamos argumentar que existe o interesse público, materializado pela obrigação de evitar que mais vidas sejam ceifadas em razão de condutas culposas no trânsito. Todavia, no outro lado da balança, existiriam outras garantias individuais, dentre as quais aquela que confere a todos cidadãos o direito de dispor do próprio corpo conforme sua vontade (e que, poder-se-ia dizer, decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana). Ao que nos parece, o fim aqui não estaria a justificar os meios empregados, visto que, do contrário, praticamente chancelaríamos o arbítrio. Nunca é demais lembrar que uma das funções da vedação da prova ilícita é justamente instigar pessoas menos acostumadas à vida em democracia a pensar duas ou mais vezes antes de investir contra os direitos de terceiros. Nesse caso, uma vez aceita a prova produzida, provavelmente os senhores que portaram Gustavo até o hospital sentir-se-iam capazes de repetir o feito em outras oportunidades, e, quiçá, até mesmo aumentar seu espectro de atuação conduzindo motoristas que não houvessem ingerido qualquer substância proibida até nosocômio vizinho.

Mas não convém resumir o raciocínio à idéia de que nenhuma pessoa, sob qualquer circunstância, sempre poderá dispor livremente de seu corpo. Como dito, o escopo da aplicação do princípio da proteção à dignidade da pessoa humana, acima materializado no direito de dispor do corpo para contestar aquela ordem, pode assumir outras formas, como logo veremos.

Efetivamente, situação inversa ocorreria se, em meio a processo promovido por Renata, de quatro anos de idade, a fim de investigar sua paternidade, Mathias, indigitado pai, recebesse ordem judicial para doar alguma quantidade de sangue (ou fios de cabelo) para confrontação de dna’s. Pergunta-se: poderia o varão alegar garantias constitucionais em seu favor a fim de eximir-se do mandado, de tal sorte que a criança fosse obrigada a satisfazer-se tão-somente com a famigerada paternidade presumida? Novamente, rogando vênia aos defensores de opinião contrária - por ora sob guarida do entendimento de escassa maioria do Supremo Tribunal Federal - aqui a matéria assumiria feições outras. Já não estaria em jogo o interesse do particular de negar-se a cumprir as mais bizarras ordens de policiais, dispondo livremente de sua liberdade. Aqui, a questão seria definir qual interesse deva ceder: aquele do indigitado pai preservar sua integridade física, eximindo-se do dever de oferecer alguns fios de cabelo ou mililitros de sangue, ou aquele da criança em descobrir sua real, e não fictícia, identidade. Ora, nesse caso, jamais poderia nosso querido amigo desobrigar-se da ordem, pois, ao fim e ao cabo, o interesse da pessoa em descobrir sua verdadeira (e não presumida) identidade representa o princípio da dignidade da pessoa humana e o ato intentado por Mathias, uma grave afronta a sua aplicação. Esse interesse da criança - e de todos os homens - jamais poderia ceder em nome de uma egoísta e literal interpretação de outra garantia, afinal, como bem assinalou o Min. Carlos Velloso, não há no mundo interesse maior do que este: o do filho conhecer ou saber quem é o seu pai biológico [14].

Dessa narrativa, conclui-se que, quando tratamos de princípios, estejam eles positivados ou não, não poderemos a priori determinar qual solução será a ideal para um caso futuro, na medida em que somente da análise de suas particularidades, lograremos evidenciar quais as medidas que efetivarão os ditames de um legítimo Estado de Direito. Gustavo pôde esquivar-se da ordem de dirigir-se até hospital próximo para verificar sua condição física, isto porque, do outro lado do pêndulo, havia um remoto interesse de oferecer segurança no tráfego. Nada impediria, entretanto, que Gustavo respondesse pelas conseqüências de seu ato, mediante presunções que emanassem de sua conduta. Mathias, de seu turno, jamais poderia evitar sua estada na clínica, vez que, na outra ponta da relação, estaria outra pessoa, buscando, com muito custo, ter, enfim, sua paternidade definida juridicamente, através da certeza científica. A presunção de ebriedade, no primeiro exemplo, poderia satisfazer o sistema, restabelecendo a tranqüilidade social. Já no segundo caso, a mera presunção de paternidade, ao contrário, representaria sensação de desassossego para toda a comunidade, na medida em que sequer o direito de conhecer a própria identidade pessoal seria chancelado. Nesta última hipótese, pode-se afirmar que o sistema já não permitiria a resolução do litígio mediante o artifício de uma presunção. Tratam-se de duas condutas idênticas (negar-se a ir até clínica) que, diante das condições concretas, importam em conseqüências distintas.

Sobre o autor
Daniel Ustárroz

advogado, mestrando em Direito pela UFRGS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

USTÁRROZ, Daniel. Provas ilícitas lícitas ?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3056. Acesso em: 8 nov. 2024.

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