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Aplicabilidade da regra do stare decisis ao Direito brasileiro

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Agenda 03/11/2014 às 13:46

4. Conclusão

Por tudo quanto foi examinado, verifica-se que não há, no Brasil, óbices reais à utilização do stare decisis nos moldes em que vigora nos países de common law. Vivencia-se um momento histórico de recíproca aproximação entre os sistemas jurídicos anglo-saxônico e romano-germânico, na medida em que Estados da tradição de civil law tendem a identificar e a reafirmar o papel criativo da jurisprudência, ao passo que países que se estruturaram em torno do common law têm verificado um crescimento nunca antes visto de sua produção legislativa. O ponto de equilíbrio parece ser um Judiciário consciente de seu papel criativo, e por isso mesmo, limitado, para fins de coerência, por regras de vinculação a precedentes judiciais, acompanhado de um Legislativo produtivo e atento aos anseios sociais, que possibilite, quando necessário, a evolução rápida do direito e esteja pronto a corrigir eventuais interpretações da magistratura que se afigurem destoantes da imperiosa vontade popular, sem prejuízo, contudo, da indispensável função contramajoritária da jurisdição.

Em meio a essa tensão entre Judiciário e Legislativo, presente tanto no civil law quanto no common law, o stare decisis se revela o mais aparente consenso, qual elemento estabilizador e limitativo do amplo poder jurisdicional. Ante um cenário filosófico que considera o texto legal mero dado de entrada para o fenômeno hermenêutico-jurídico (SOBOTA, 1991, p. 1), necessária a contenção do poder normativo dos tribunais, cuja mudança de orientação tem de ser justificada pela alteração das condicionantes sociais da ratio decidendi, em motivação explícita do novo entendimento e com o mais amplo cuidado em se tutelar a confiança de quem se guiou pelo precedente, sob pena de se quedar a população refém de manifestações imprevisíveis do Judiciário. A isso faz jus a sociedade em um Estado de Direito, construído sobre as bases do princípio democrático.

No Brasil, o único obstáculo à imposição da regra do stare decisis é de ordem cultural. Filiado, por herança portuguesa, à tradição romano-germânica, conviveu o País, desde antes de sua afirmação como Estado independente, com um sistema de direito que valorizava a lei e propagava o mito da sujeição do juiz ao legislador. Em um contexto de suposta ausência de criatividade judicial, desnecessário falar-se em contenção dos poderes do julgador, que, no imaginário geral, se limitava a declarar a vontade soberana da lei. O aumento da complexidade das relações sociais, fruto do desenvolvimento econômico e tecnológico, que trouxe a globalização, e, a partir do pós-guerra, na segunda metade do século XX, a ampliação da tutela internacional dos direitos humanos, que se incorporou ao constitucionalismo contemporâneo, acabaram de vez com a ilusão do juiz enquanto mera bouche de la loi, na medida em que o sentido da lei ou a própria validade formal desta passaram a se condicionar a normas constitucionais e a princípios suprapositivos, como a igualdade, as liberdades individuais e coletivas e a dignidade da pessoa humana. Não mais se justifica, pois, um olhar sobre a atividade judicial tal como efetuada no século XIX, razão da crise política vivenciada no Brasil em tempos recentes, nos quais se chegou a cogitar, inclusive, da sujeição esdrúxula do STF ao Congresso Nacional em matéria de jurisdição constitucional (Proposta de Emenda à Constituição n.º 33/2011). [12] É preciso conceber o Judiciário como instância de produção jurídico-normativa que é, pelo que se faz necessário um mínimo de contenção e de coerência em suas manifestações, razão maior da estratégia de vinculação às decisões pretéritas.

O Brasil não somente pode implementar um regime de stare decisis como, paulatinamente, tem realizado isso. As recentes reformas do Código de Processo Civil demonstram a importância que se tem conferido à jurisprudência como fonte do direito nacional, à decisão judicial como norma vocacionada para a solução de casos futuros. Apenas optou-se, por força de um apelo nitidamente cultural, por estruturar a jurisprudência vinculante não em torno de precedentes, mas a partir de súmulas, que, com seus enunciados autônomos, gerais e abstratos, fazem lembrar a lei, tida, ao longo do meio milênio de influência do direito romano-germânico em território nacional, como a fonte por excelência do Direito. A motivação, porém, é muito mais psicológica que da essência da realidade jurídica brasileira. Prova disso é que os mais novos institutos processuais (repercussão geral em recurso extraordinário e julgamento unificado de recursos especiais repetitivos) já prescindem da fixação do entendimento em enunciado de súmula, no que se verifica uma tendência de reconhecimento do papel do precedente propriamente dito no sistema. O Projeto de Lei do Novo Código de Processo Civil brasileiro segue no mesmo sentido, dando espaço à figura do precedente, na medida em que demandas de massa passam a ser solucionadas por meio do incidentes de resolução de demandas repetitivas. Aliás, o texto do PLNCPC, o qual, em seu art. 938, estabelece que “Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada a  todos os processos que versem idêntica questão de direito” (BRASIL, 2010, p. 1), é prova inequívoca de que o precedente – e não a “súmula” – vinculante é uma realidade não apenas possível, mas em vias de implantação no direito brasileiro.

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Notas

[1] A doutrina costuma elencar como elementos do precedente a ratio decidendi (tese jurídica firmada) e o obiter dictum (argumentos utilizados apenas incidentalmente pelo julgador). A ratio decidendi, por sua vez, é formada por três elementos: a) statement of material facts (descrição dos fatos materiais); b) legal reasoning (raciocínio judicial); c) judgement (juízo decisório). Cf. DIDIER JÚNIOR, 2009, p. 381. Para uma consideração detalhada sobre o stare decisis e o conceito de precedente judicial, vide LIMA JÚNIOR, 2014, p. 1.

[2] Especificamente nos Estados Unidos da América, no âmbito do stare decisis, consolidou-se a prática da formulação de “distinções inconsistentes” como instrumento dos tribunais para afastamento do precedente (técnica do drawing of inconsistent distinctions). Note-se, porém, que, inclusive lá, o instituto somente é utilizado em situações excepcionais, como quando a corte ainda não está plenamente convencida da necessidade de revogação do precedente e, portanto, com a decisão, acaba por sinalizar a intenção de mudança, ou, ainda, quando, apesar de ciente da necessidade de revogação, pretende tutelar a confiança justificada, impedindo que quem confiou no precedente, balizando por ele suas relações sociais, seja integralmente derrotado no Judiciário. Isto é, na prática, o que se denomina, entre os norte-americanos, de “distinção inconsistente” é uma técnica substitutiva da revogação parcial (overruling) justificada pelo caráter tipicamente provisório do período que contempla um processo de superação de determinada orientação jurisprudencial. Cf. MARINONI, 2013, p. 350-351.

[3] BRASIL, 1988, p. 1: “Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”

[4] BRASIL, 1988, p. 1: “Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal: I - processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 23, de 02/09/99)”

[5] BRASIL, 1988, p. 1: “Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)”

[6] BRASIL, 1988, p. 1: “Art. 41. São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) § 1º O servidor público estável só perderá o cargo: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) I - em virtude de sentença judicial transitada em julgado; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) II - mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)”

[7] BRASIL, 1988, p. 1: “Art. 96. Compete privativamente: I - aos tribunais: a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos;”

[8] BRASIL, 1988, p. 1: “Art. 5º. (...) XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção;

[9] BRASIL, 1988, p. 1: “Art. 5º. (...) LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;

[10] Para uma análise das técnicas de aplicação, interpretação e superação de precedentes no sistema jurídico anglo-saxônico, vide MARINONI, 2013, p. 325-388.

[11] A previsibilidade está um passo à frente da estabilidade: de tão estável, o Direito torna-se previsível ou “certo”. É de se observar, contudo, que, não obstante a terminologia empregada no common law, a rigor, não se pode falar em “certeza” (certainty) da norma jurídica, porquanto é sempre possível que se opere a evolução jurisprudencial do Direito, a qual, em sede de stare decisis, realiza-se com a revogação total ou parcial dos precedentes judiciais, na forma do overruling (LIMA, 2013, p. 160). A certeza, conceito próprio do campo das ciências exatas, não é facilmente transponível ao Direito. É a previsibilidade, assim, não a certeza matemática do direito a ser declarado pela autoridade judicial, mas, em vez disso, o grau máximo de conhecimento da norma jurídica a que se pode chegar antes do processo – o que, porém, não a torna menos necessária.

[12] A referida PEC altera a quantidade mínima de votos de membros de tribunais para declaração de inconstitucionalidade de leis, condiciona o efeito vinculante de súmulas aprovadas pelo Supremo Tribunal Federal à aprovação pelo Poder Legislativo e submete ao Congresso Nacional a decisão do Supremo sobre a inconstitucionalidade de Emendas à Constituição (BRASIL, 2011, p. 1). Foi aprovada pela Comissão de Constituição de Justiça e Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados em 24/03/2013 e, após intensa repercussão negativa na mídia e no meio jurídico, teve sua tramitação suspensa, mas, até a conclusão deste trabalho, ainda não havia sido arquivada. (BRASIL, 2011, p. 1) Trata-se, como dito, de proposta absurda, porquanto fundada em olhar retrógrado sobre a função judicial, a qual, ante a nova ordem dos direitos humanos internacionais, comporta o dever de agir contrariamente à vontade da maioria para assegurar os direitos das minorias ou de um único indivíduo, ainda que não se mostrem organizados politicamente ao ponto de ostentarem representação no Parlamento (caráter contramajoritário da jurisdição), razão maior da opção política do constituinte brasileiro pela afirmação do princípio democrático por um Judiciário selecionado por critérios técnicos, e não eleito pela população. Ademais, desapercebe-se o autor da proposta que, independentemente do que venha a ser decidido pelo STF, é sempre possível ao Legislativo exercer seu papel legiferante, incluindo reformas constitucionais que, não violando cláusulas pétreas ou princípios fundamentais, limitam formalmente o julgador, sobrepondo eventuais decisões judiciais que vigorem no vazio normativo.


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Abstract: The study undertakes research into the applicability of the rule of stare decisis to Brazilian law, reviewing for and against  arguments about the importing of the template. Concludes defending the feasibility and desirability of adopting the institute, because of the reasons which explains.

Sobre o autor
Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - dupla diplomação. Ex-Assessor da Justiça Federal de Primeira Instância na 5ª Região. Ex-Assessor do Ministério Público Federal na 1ª Região. Atualmente, é Oficial de Justiça do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA JÚNIOR, Cláudio Ricardo Silva. Aplicabilidade da regra do stare decisis ao Direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4142, 3 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30640. Acesso em: 22 dez. 2024.

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