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O instituto da indignidade pode ser aplicado nos casos em que o beneficiário da pensão por morte é o próprio homicida doloso do instituidor?

Agenda 02/10/2014 às 14:22

Analisa-se a aplicabilidade do instituto da indignidade ao direito previdenciário, abordando a possibilidade de afastar do beneficiário que comete homicídio doloso contra o instituidor, o direito à percepção da pensão previdenciária.

INTRODUÇÃO

A pensão por morte, direito irrenunciável, é o benefício pago aos dependentes do segurado que falecer, visando uma prestação substitutiva à renda do segurado falecido. Possui matiz constitucional[1] e foi regulamentada pelos Arts. 74 a 79 da Lei nº 8.213/91, cujos trechos relevantes para esse estudo citaremos adiante.  

Seus requisitos básicos são: qualidade de segurado do instituidor e dependência do pretenso beneficiário.

No que pertine à qualidade de segurado, essa se verifica pelo vínculo mantido pelo instituidor com o Regime Geral de Previdência Social (RGPS), mediante a contraprestação, via de regra, de contribuições que custeiam o sistema de previdência. A manutenção dessa qualidade de segurado se verifica mediante as regras previstas no art. 15 da Lei nº 8.213/91, de modo que, na data do fato gerador da pensão por morte (óbito), o instituidor tem que estar vinculado ao RGPS, para que seu dependente faça jus ao benefício.

A ressalva que entendemos relevante aqui constar diz respeito à possibilidade de concessão de pensão por morte quando o instituidor já não mais detinha vínculo com o RGPS, mas já preenchia os requisitos para a concessão de outras espécies de benefícios, tais como: auxílio-doença, aposentadoria por idade, aposentadoria especial e aposentadoria por tempo de contribuição, sendo que em relação a esses três últimos, houve inovação com a edição da Lei nº 10.666/2003, a qual passou a consignar que a perda da qualidade de segurado não será considerada para a concessão desses benefícios, desde que, obviamente, preenchidos os demais requisitos[2].

E a lógica nesses casos é a aplicação pura e simples do Art. 15, I da Lei nº 8.213/91, que assim dispõe:

 Art. 15. Mantém a qualidade de segurado, independentemente de contribuições:

 I - sem limite de prazo, quem está em gozo de benefício;

 Logo, se o instituidor, antes de sua morte, já fazia jus a algum benefício, equivale a dizer que sua qualidade de segurado estaria mantida independentemente de contribuições.

O segundo requisito, que diz respeito à qualidade de dependente, é tratado em rol taxativo pelo art. 16 da Lei nº 8.213/91, verbis:

 Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:

       

        I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente;  

        II - os pais;

      III - o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente;

As regras de preferência de uma classe em relação a outra, de equiparação, de conceito de companheiro(a), e de presunção de dependência econômica, estão estampadas nos parágrafos que se sucedem a esse art. 16, cabendo aqui apenas o registro de que tanto a jurisprudência, quanto doutrina e a própria Administração evoluiu e hoje resta pacífica a possibilidade de enquadrar o companheiro homossexual no conceito de dependente para fins previdenciários.

Pois bem. Mas e se o dependente for o homicida ‘doloso’ do segurado instituidor? Ainda assim ele teria o direito de fazer jus a uma pensão previdenciária em razão de vínculo previdenciário de sua vítima? Não seria aplicável, também na seara previdenciária, o instituto da indignidade previsto no Direito Sucessório? É o que iremos discutir. 


1. O INSTITUTO DA INDIGNIDADE NO DIREITO CIVIL NA HIPÓTESE DE COMETIMENTO DE HOMICÍDIO DOLOSO

O art. 5º, caput da Constituição Federal garante o direito à vida como fundamental e indisponível. É o bem jurídico hierarquicamente de maior envergadura e que se sobrepõe a todos os outros, razão pela qual goza de especial proteção da tutela estatal.

De igual sorte, o Código Penal, que visa também tutelar a proteção à vida, incrimina as condutas típicas que atentam contra ela, elencando quatro espécies de crimes contra a vida: homicídio; infanticídio; auxílio, instigação ou induzimento ao suicídio e aborto.

O homicídio é o extermínio da vida humana de outrem; e possui como elemento da tutela penal a busca pela manutenção da vida humana e, sendo essa indisponível, pouco importa o consentimento ou não da vítima. Esse crime pode se dar, dentre outras classificações, na modalidade ‘dolosa’ ou ‘culposa’, sendo a primeira aquela em que o agente criminoso possui deliberada e consciente intenção de ter como evento resultante a morte da vítima.

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A doutrina[3] subdivide o conceito de dolo em duas espécies: dolo direto (ou imediato) e dolo indireto (dolo alternativo ou dolo eventual), diferenciação que não acarreta em nenhum efeito prático direto, pois o Código Penal brasileiro não positivou as diversas hipóteses de dolo, equiparando todas em seu artigo 18, I[4], e a consequência disso é que a conduta típica será sobrepujada com a mesma intensidade.

Cabe-nos apenas registrar a diferença entre o ‘dolo eventual’ e a ‘culpa consciente’ eis que, nesta, o agente confia de maneira honesta que o evento não acontecerá; já no caso do ‘dolo eventual’ o sujeito assume e aceita o risco de provocar um resultado. Prevê a conseqüência e, mesmo assim, age.

Por fim, cabe registrar que o Art. 23 do Código Penal prevê também as hipóteses de ‘exclusão de ilicitude’, onde sequer pode-se falar em existência de crime, tal como ocorre nas hipóteses de: estado de necessidade, legítima defesa e em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito.

Pois bem. A relevância dessas conceituações está intimamente ligada ao instituto da ‘indignidade’, que é a determinação legal que possibilita, dentre outras hipóteses elencadas no Código Civil que não pertinem ao objeto desse estudo, a exclusão na herança de sucessores que tenham sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar. Essa é a previsão estampada no Art. 1.814, I do Código Civil, verbis:

Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:

I - que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;

Ou seja, a lei civil exige que a conduta seja tipificada como homicídio doloso para aplicar o instituto da indignidade, excluindo, portanto, a modalidade culposa e obviamente as hipóteses de excludentes de ilicitude, embora, assim como no Código Penal, não faça distinção entre dolo direto ou indireto.

E a exclusão do sucessor pela indignidade possui uma razão lógica e ética, eis que, no dizer de BARBOSA FILHO[5]: “Se a sucessão se funda na existência de uma presumida afeição entre o de cujus e seu sucessor,  num liame específico, repugna, tanto sob o ponto de vista jurídico, quanto sob o ponto de vista ético, seja deferido seu patrimônio àquele pratica ato de grande gravidade contra o hereditando...”.

Ora, poderia existir alguma razão mais grave para se excluir alguém de uma sucessão do que esse sujeito intencionalmente tirar a vida de quem deixa a herança? No direito sucessório é assim. Já na seara previdenciária, há controvérsias.


2. A INDIGNIDADE NA SEARA PREVIDENCIÁRIA

É possível aplicar o instituto da indignidade no direito previdenciário, evitando-se a concessão da pensão por morte àquele que ceifa a vida de segurado do qual era dependente?

Bom. Primeiramente, cabe registrar que a legislação previdenciária não traz nada a respeito. Em outras palavras, dentro do compêndio de leis previdenciárias, não há uma norma sequer que preveja a possibilidade de exclusão do beneficiário de pensão por morte do direito ao benefício nos casos em que ele seja o homicida do instituidor.    

Portanto, estamos diante de uma lacuna legislativa, para cuja solução apresenta-se a aplicação dos critérios de integração da norma jurídica, mormente, a hermenêutica exercida pelos operadores do direito.

Nesse particular, lembramos que a Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) em seu artigo 4º prevê: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”; sendo a analogia a forma inicial de auto-integração, artifício de interpretação no qual se aplica a um caso não presumido pela legislação a regra que conduz caso semelhante.

E não vemos razão para a não utilização da analogia nesse caso, ou qualquer impedimento para a aplicação do instituto da indignidade na seara previdenciária, eis que em muito se assemelha a herança do benefício de pensão por morte. Ressalvamos, porém, a possibilidade de se conceder  pensão por morte ao acusado, quando ainda no aguardo da prolação da sentença em processo penal  relativo ao homicídio cometido; o que independe de declaração de indignidade, uma vez que esta trata exclusivamente de espólio, e não de pensão por morte.

E a jurisprudência caminha nessa direção, considerando aplicável a analogia do instituto da indignidade no campo previdenciário, conforme excerto que segue:

PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. BENEFICIÁRIA HOMICIDA. CANCELAMENTO DO BENEFÍCIO. REVERSÃO DA COTA-PARTE.   DIREITO  SUCESSÓRIO.   ANALOGIA.   TERMO   A QUO DA CONDENAÇÃO.

1. Inexistindo na legislação previdenciária norma  acerca da exclusão de beneficiário que cometeu homicídio contra o próprio instituidor da pensão  por  morte,  há  que  ser  aplicada,  por  analogia,  a regra  do direito civil, que elimina da sucessão o herdeiro homicida.

2. Hipótese em que ficou comprovado que a Srª Marinalva Barros de Souza  assassinou  o próprio  marido,  já tendo  sido  condenada  por homicídio  doloso  através  de  sentença  transitada  em  julgado,  de modo que deve ser cancelado o seu benefício e revertida a sua cotaparte  em favor da autora, Srª Marivalda  de Brito Silva, a outra beneficiária do de cujus.

3. Considerando que o INSS não tinha como saber do ocorrido, deve ser  fixado  como  termo  a  quo  da  condenação   do  Instituto  (ao pagamento das diferenças) a data da citação. Idêntico raciocínio, todavia, não pode ser estendido à litisconsorte  homicida, porquanto (a)  não  houve  recurso  de  apelação  por  parte  desta  e  (b)  porque ciente  da  condenação  que  lhe  foi  impingida.  No seu  caso,  pois, mantido  o cancelamento  desde  o trânsito  em julgado  da  sentença criminal.(TRF-5, AC 430140/PE, Des. Federal Joana Carolina Lins Pereira, Segunda Turma, Julg. 01.04.2008).

Por fim, registrando a existência de posicionamento jurisprudencial em sentido oposto ao aqui defendido[6] (como em quase tudo no campo do Direito), deixamos para reflexão mais uma assertiva de BARBOSA FILHO[7]: “O indigno não pode auferir qualquer benefício (ainda que indireto), dos bens deixados pela morte do hereditando, sob pena de se negar plena eficácia à exclusão operada”.


3. CONCLUSÃO

Fizemos aqui uma análise integrada sob uma visão macro do Direito, entrelaçando diversos de seus ramos: o direito penal, previdenciário e civil.  

Restaram esclarecidos quais os elementos necessários ao enquadramento do tipo ‘homicídio doloso’, que é a conduta que visa propositadamente o extermínio da vida humana de outrem, pouco importando para o direito pátrio se esse dolo foi ‘direto’ ou ‘indireto’.

A lei sucessória elenca como um dos motivos para a exclusão do herdeiro ao direito de ser contemplado com os bens do falecido, o que doutrinariamente se denomina ‘indignidade’, a hipótese de cometimento pelo beneficiário do crime de ‘homicídio doloso’ contra o titular da herança.

Essa previsão não existe na legislação previdenciária, muito se discutindo em razão disso e da aplicação do princípio da especificidade, ser possível ou não excluir o beneficiário que pratica ‘homicídio doloso’ contra o instituidor da pensão por morte e, em razão desse ato execrável, causa o fato gerador da pensão (óbito), do direito à percepção do benefício.

Não obstante a ausência da previsão desse instituto na seara previdenciária, conclui-se ser plenamente defensável a exclusão do beneficiário indigno, nos casos em que ele atenta contra a vida do instituidor. E tal viabilidade jurídica se dá através de uma das formas de auto-integração do direito, qual seja a aplicação da analogia, eis que o Direito é uno e, eventual omissão legislativa em determinado ramo do direito não pode dar azo a que o ordenamento jurídico valide e até beneficie com uma renda mensal aquele que assassinou o instituidor da pensão. Esse posicionamento encontra eco na jurisprudência pátria; com a ressalva de que há entendimento em sentido diametralmente oposto calcado sob o fundamento de que não é possível haver interpretação extensiva quando se trata de restrição de direito, o que nosso sentir não se sustenta, mormente porque a Constituição Federal, lei máxima que goza de supremacia e supralegalidade, defende de forma inegociável, o bem jurídico maior: o direito à vida.


4. REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Parte geral. 1vol. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p.211.

BARBOSA FILHO, Marcelo Fortes.  A indignidade no direito sucessório brasileiro. Editora Malheiros, São Paulo – SP, 1996.

CASTRO Carlos  Alberto   Pereira   de;   LAZZARI,   João   Batista.   Manual   de   Direito Previdenciário. 11. ed. Florianópolis: Conceito. 2009.


NOTAS

[1]CF/88. Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a:     V - pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º. 

[2] Lei 10.666/2003. Art. 3o A perda da qualidade de segurado não será considerada para a concessão das aposentadorias por tempo de contribuição e especial.   § 1o Na hipótese de aposentadoria por idade, a perda da qualidade de segurado não será considerada para a concessão desse benefício, desde que o segurado conte com, no mínimo, o tempo de contribuição correspondente ao exigido para efeito de carência na data do requerimento do benefício.

[3] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Parte geral.1vol. 8ed.São Paulo: Saraiva,2003, p.211.

[4] CP. Art. 18 - Diz-se o crime: 

Crime doloso

I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.

[5] BARBOSA FILHO,  Marcelo Fortes.  A indignidade  no direito sucessório  brasileiro. Editora Malheiros, São Paulo – SP, 1996.

[6] STJ, Recurso Especial Nº 943.605 - SP (2007/0085781-1)

[7] Op. cit., p. 16.

Sobre o autor
Geandré Gomides

Procurador Federal, pós-graduado pela Escola Superior da Magistratura de Pernambuco - ESMAPE e especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília – UnB.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMIDES, Geandré. O instituto da indignidade pode ser aplicado nos casos em que o beneficiário da pensão por morte é o próprio homicida doloso do instituidor?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4110, 2 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32423. Acesso em: 22 nov. 2024.

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