INTRODUÇÃO
A pensão por morte, direito irrenunciável, é o benefício pago aos dependentes do segurado que falecer, visando uma prestação substitutiva à renda do segurado falecido. Possui matiz constitucional[1] e foi regulamentada pelos Arts. 74 a 79 da Lei nº 8.213/91, cujos trechos relevantes para esse estudo citaremos adiante.
Seus requisitos básicos são: qualidade de segurado do instituidor e dependência do pretenso beneficiário.
No que pertine à qualidade de segurado, essa se verifica pelo vínculo mantido pelo instituidor com o Regime Geral de Previdência Social (RGPS), mediante a contraprestação, via de regra, de contribuições que custeiam o sistema de previdência. A manutenção dessa qualidade de segurado se verifica mediante as regras previstas no art. 15 da Lei nº 8.213/91, de modo que, na data do fato gerador da pensão por morte (óbito), o instituidor tem que estar vinculado ao RGPS, para que seu dependente faça jus ao benefício.
A ressalva que entendemos relevante aqui constar diz respeito à possibilidade de concessão de pensão por morte quando o instituidor já não mais detinha vínculo com o RGPS, mas já preenchia os requisitos para a concessão de outras espécies de benefícios, tais como: auxílio-doença, aposentadoria por idade, aposentadoria especial e aposentadoria por tempo de contribuição, sendo que em relação a esses três últimos, houve inovação com a edição da Lei nº 10.666/2003, a qual passou a consignar que a perda da qualidade de segurado não será considerada para a concessão desses benefícios, desde que, obviamente, preenchidos os demais requisitos[2].
E a lógica nesses casos é a aplicação pura e simples do Art. 15, I da Lei nº 8.213/91, que assim dispõe:
Art. 15. Mantém a qualidade de segurado, independentemente de contribuições:
I - sem limite de prazo, quem está em gozo de benefício;
Logo, se o instituidor, antes de sua morte, já fazia jus a algum benefício, equivale a dizer que sua qualidade de segurado estaria mantida independentemente de contribuições.
O segundo requisito, que diz respeito à qualidade de dependente, é tratado em rol taxativo pelo art. 16 da Lei nº 8.213/91, verbis:
Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:
I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente;
II - os pais;
III - o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente;
As regras de preferência de uma classe em relação a outra, de equiparação, de conceito de companheiro(a), e de presunção de dependência econômica, estão estampadas nos parágrafos que se sucedem a esse art. 16, cabendo aqui apenas o registro de que tanto a jurisprudência, quanto doutrina e a própria Administração evoluiu e hoje resta pacífica a possibilidade de enquadrar o companheiro homossexual no conceito de dependente para fins previdenciários.
Pois bem. Mas e se o dependente for o homicida ‘doloso’ do segurado instituidor? Ainda assim ele teria o direito de fazer jus a uma pensão previdenciária em razão de vínculo previdenciário de sua vítima? Não seria aplicável, também na seara previdenciária, o instituto da indignidade previsto no Direito Sucessório? É o que iremos discutir.
1. O INSTITUTO DA INDIGNIDADE NO DIREITO CIVIL NA HIPÓTESE DE COMETIMENTO DE HOMICÍDIO DOLOSO
O art. 5º, caput da Constituição Federal garante o direito à vida como fundamental e indisponível. É o bem jurídico hierarquicamente de maior envergadura e que se sobrepõe a todos os outros, razão pela qual goza de especial proteção da tutela estatal.
De igual sorte, o Código Penal, que visa também tutelar a proteção à vida, incrimina as condutas típicas que atentam contra ela, elencando quatro espécies de crimes contra a vida: homicídio; infanticídio; auxílio, instigação ou induzimento ao suicídio e aborto.
O homicídio é o extermínio da vida humana de outrem; e possui como elemento da tutela penal a busca pela manutenção da vida humana e, sendo essa indisponível, pouco importa o consentimento ou não da vítima. Esse crime pode se dar, dentre outras classificações, na modalidade ‘dolosa’ ou ‘culposa’, sendo a primeira aquela em que o agente criminoso possui deliberada e consciente intenção de ter como evento resultante a morte da vítima.
A doutrina[3] subdivide o conceito de dolo em duas espécies: dolo direto (ou imediato) e dolo indireto (dolo alternativo ou dolo eventual), diferenciação que não acarreta em nenhum efeito prático direto, pois o Código Penal brasileiro não positivou as diversas hipóteses de dolo, equiparando todas em seu artigo 18, I[4], e a consequência disso é que a conduta típica será sobrepujada com a mesma intensidade.
Cabe-nos apenas registrar a diferença entre o ‘dolo eventual’ e a ‘culpa consciente’ eis que, nesta, o agente confia de maneira honesta que o evento não acontecerá; já no caso do ‘dolo eventual’ o sujeito assume e aceita o risco de provocar um resultado. Prevê a conseqüência e, mesmo assim, age.
Por fim, cabe registrar que o Art. 23 do Código Penal prevê também as hipóteses de ‘exclusão de ilicitude’, onde sequer pode-se falar em existência de crime, tal como ocorre nas hipóteses de: estado de necessidade, legítima defesa e em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito.
Pois bem. A relevância dessas conceituações está intimamente ligada ao instituto da ‘indignidade’, que é a determinação legal que possibilita, dentre outras hipóteses elencadas no Código Civil que não pertinem ao objeto desse estudo, a exclusão na herança de sucessores que tenham sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar. Essa é a previsão estampada no Art. 1.814, I do Código Civil, verbis:
Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:
I - que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;
Ou seja, a lei civil exige que a conduta seja tipificada como homicídio doloso para aplicar o instituto da indignidade, excluindo, portanto, a modalidade culposa e obviamente as hipóteses de excludentes de ilicitude, embora, assim como no Código Penal, não faça distinção entre dolo direto ou indireto.
E a exclusão do sucessor pela indignidade possui uma razão lógica e ética, eis que, no dizer de BARBOSA FILHO[5]: “Se a sucessão se funda na existência de uma presumida afeição entre o de cujus e seu sucessor, num liame específico, repugna, tanto sob o ponto de vista jurídico, quanto sob o ponto de vista ético, seja deferido seu patrimônio àquele pratica ato de grande gravidade contra o hereditando...”.
Ora, poderia existir alguma razão mais grave para se excluir alguém de uma sucessão do que esse sujeito intencionalmente tirar a vida de quem deixa a herança? No direito sucessório é assim. Já na seara previdenciária, há controvérsias.
2. A INDIGNIDADE NA SEARA PREVIDENCIÁRIA
É possível aplicar o instituto da indignidade no direito previdenciário, evitando-se a concessão da pensão por morte àquele que ceifa a vida de segurado do qual era dependente?
Bom. Primeiramente, cabe registrar que a legislação previdenciária não traz nada a respeito. Em outras palavras, dentro do compêndio de leis previdenciárias, não há uma norma sequer que preveja a possibilidade de exclusão do beneficiário de pensão por morte do direito ao benefício nos casos em que ele seja o homicida do instituidor.
Portanto, estamos diante de uma lacuna legislativa, para cuja solução apresenta-se a aplicação dos critérios de integração da norma jurídica, mormente, a hermenêutica exercida pelos operadores do direito.
Nesse particular, lembramos que a Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) em seu artigo 4º prevê: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”; sendo a analogia a forma inicial de auto-integração, artifício de interpretação no qual se aplica a um caso não presumido pela legislação a regra que conduz caso semelhante.
E não vemos razão para a não utilização da analogia nesse caso, ou qualquer impedimento para a aplicação do instituto da indignidade na seara previdenciária, eis que em muito se assemelha a herança do benefício de pensão por morte. Ressalvamos, porém, a possibilidade de se conceder pensão por morte ao acusado, quando ainda no aguardo da prolação da sentença em processo penal relativo ao homicídio cometido; o que independe de declaração de indignidade, uma vez que esta trata exclusivamente de espólio, e não de pensão por morte.
E a jurisprudência caminha nessa direção, considerando aplicável a analogia do instituto da indignidade no campo previdenciário, conforme excerto que segue:
PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. BENEFICIÁRIA HOMICIDA. CANCELAMENTO DO BENEFÍCIO. REVERSÃO DA COTA-PARTE. DIREITO SUCESSÓRIO. ANALOGIA. TERMO A QUO DA CONDENAÇÃO.
1. Inexistindo na legislação previdenciária norma acerca da exclusão de beneficiário que cometeu homicídio contra o próprio instituidor da pensão por morte, há que ser aplicada, por analogia, a regra do direito civil, que elimina da sucessão o herdeiro homicida.
2. Hipótese em que ficou comprovado que a Srª Marinalva Barros de Souza assassinou o próprio marido, já tendo sido condenada por homicídio doloso através de sentença transitada em julgado, de modo que deve ser cancelado o seu benefício e revertida a sua cotaparte em favor da autora, Srª Marivalda de Brito Silva, a outra beneficiária do de cujus.
3. Considerando que o INSS não tinha como saber do ocorrido, deve ser fixado como termo a quo da condenação do Instituto (ao pagamento das diferenças) a data da citação. Idêntico raciocínio, todavia, não pode ser estendido à litisconsorte homicida, porquanto (a) não houve recurso de apelação por parte desta e (b) porque ciente da condenação que lhe foi impingida. No seu caso, pois, mantido o cancelamento desde o trânsito em julgado da sentença criminal.(TRF-5, AC 430140/PE, Des. Federal Joana Carolina Lins Pereira, Segunda Turma, Julg. 01.04.2008).
Por fim, registrando a existência de posicionamento jurisprudencial em sentido oposto ao aqui defendido[6] (como em quase tudo no campo do Direito), deixamos para reflexão mais uma assertiva de BARBOSA FILHO[7]: “O indigno não pode auferir qualquer benefício (ainda que indireto), dos bens deixados pela morte do hereditando, sob pena de se negar plena eficácia à exclusão operada”.
3. CONCLUSÃO
Fizemos aqui uma análise integrada sob uma visão macro do Direito, entrelaçando diversos de seus ramos: o direito penal, previdenciário e civil.
Restaram esclarecidos quais os elementos necessários ao enquadramento do tipo ‘homicídio doloso’, que é a conduta que visa propositadamente o extermínio da vida humana de outrem, pouco importando para o direito pátrio se esse dolo foi ‘direto’ ou ‘indireto’.
A lei sucessória elenca como um dos motivos para a exclusão do herdeiro ao direito de ser contemplado com os bens do falecido, o que doutrinariamente se denomina ‘indignidade’, a hipótese de cometimento pelo beneficiário do crime de ‘homicídio doloso’ contra o titular da herança.
Essa previsão não existe na legislação previdenciária, muito se discutindo em razão disso e da aplicação do princípio da especificidade, ser possível ou não excluir o beneficiário que pratica ‘homicídio doloso’ contra o instituidor da pensão por morte e, em razão desse ato execrável, causa o fato gerador da pensão (óbito), do direito à percepção do benefício.
Não obstante a ausência da previsão desse instituto na seara previdenciária, conclui-se ser plenamente defensável a exclusão do beneficiário indigno, nos casos em que ele atenta contra a vida do instituidor. E tal viabilidade jurídica se dá através de uma das formas de auto-integração do direito, qual seja a aplicação da analogia, eis que o Direito é uno e, eventual omissão legislativa em determinado ramo do direito não pode dar azo a que o ordenamento jurídico valide e até beneficie com uma renda mensal aquele que assassinou o instituidor da pensão. Esse posicionamento encontra eco na jurisprudência pátria; com a ressalva de que há entendimento em sentido diametralmente oposto calcado sob o fundamento de que não é possível haver interpretação extensiva quando se trata de restrição de direito, o que nosso sentir não se sustenta, mormente porque a Constituição Federal, lei máxima que goza de supremacia e supralegalidade, defende de forma inegociável, o bem jurídico maior: o direito à vida.
4. REFERÊNCIAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Parte geral. 1vol. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p.211.
BARBOSA FILHO, Marcelo Fortes. A indignidade no direito sucessório brasileiro. Editora Malheiros, São Paulo – SP, 1996.
CASTRO Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 11. ed. Florianópolis: Conceito. 2009.
NOTAS
[1]CF/88. Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a: V - pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º.
[2] Lei 10.666/2003. Art. 3o A perda da qualidade de segurado não será considerada para a concessão das aposentadorias por tempo de contribuição e especial. § 1o Na hipótese de aposentadoria por idade, a perda da qualidade de segurado não será considerada para a concessão desse benefício, desde que o segurado conte com, no mínimo, o tempo de contribuição correspondente ao exigido para efeito de carência na data do requerimento do benefício.
[3] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Parte geral.1vol. 8ed.São Paulo: Saraiva,2003, p.211.
[4] CP. Art. 18 - Diz-se o crime:
Crime doloso
I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.
[5] BARBOSA FILHO, Marcelo Fortes. A indignidade no direito sucessório brasileiro. Editora Malheiros, São Paulo – SP, 1996.
[6] STJ, Recurso Especial Nº 943.605 - SP (2007/0085781-1)
[7] Op. cit., p. 16.