CONCLUSÃO
Inúmeros são os questionamentos acerca da relativamente nova posição do STJ que relativizou a violência presumida do artigo 217-A do Código Penal, permitindo que os julgadores discutam a validade, no caso concreto, do consentimento da menor de 14 anos em relação à conjunção carnal.
Grande parte da população acredita que se isso refletir uma tendência geral no Judiciário estar-se-á abrindo as portas ao reino da pedofilia e toda sorte de abusos contra crianças. Essas pessoas alegam, ainda, que essa relativização seria uma quebra da repartição de poderes, haja vista que permitiria que o Judiciário mantivesse um entendimento, benéfico ao acusado, formado na interpretação da lei anterior, cuja base legislativa teria sido claramente fulminada com a reforma de 2009.
Feita toda a análise exposta no presente trabalho, o que nos parece mais razoável é a flexibilização da presunção de violência do artigo 217-A do Código Penal, tornando-a relativa e, com isso, admitir que o acusado possa produzir prova em contrário. Tal flexibilização é legítima e juridicamente consistente sob qualquer aspecto de relevo.
Dogmaticamente, porque no Direito Penal contemporâneo não deve existir responsabilidade penal objetiva, logo as presunções absolutas em sede criminal, que nada mais são do que um resquício da superada versari in re ilicita, devem, sempre que possível, ser repudiadas pelos órgãos de interpretação legislativa.
Quando uma presunção é absoluta, o que se está impedindo é justamente a investigação mais aprofundada da culpa subjetiva ligada a cada lesão de bem jurídico, pois só se presume o que não se permite provar.
A lesão a um bem jurídico não deve ser diagnosticada por antecipação legal avessa aos fatos, mas, sim, demonstrada dentro de sua realidade e contexto social. Não admitir prova em contrário é o mesmo que calar um dos polos da ação penal e criar óbices à apuração da verdade.
Além disso, sob a égide de uma absoluta presunção de violência, como fica o direito da suposta vítima de 13 anos de narrar a sua versão, de avaliar o consentimento que manifestou no momento do ato? Por que ela é obrigada a engolir a versão, bem intencionada, mas possivelmente mal sintonizada à sua realidade, de seus pais ou do promotor de justiça?
Não se pode admitir que não se reconheça diferença jurídica alguma entre manter relações sexuais consentidas com uma menina de 13 anos em relação a dobrar-lhe a resistência com violência ou fraude explícita. Por conseguinte, é de suma importância que haja diferença na aplicação da lei, haja vista que ela existe na prática, e um direito que fica de costas para a vida das pessoas, que não capta as sutilezas do cotidiano, é um direito tecido pelas redes de violência simbólica, que procura, sobretudo, controlar o que não compreende.
Uma realidade para a qual não se pode fechar os olhos é a que reflete os corriqueiros casos em que só existe uma “vítima” após os pais de uma menina terem descoberto – muitas vezes, meses depois - à iniciação precoce da garota que até então vivia feliz com seu namorado mais velho.
Vale ponderar, ainda, a ironia que se verifica em nossos tribunais que praticamente não apresentem casos envolvendo mulheres com mais de 18 anos que tiveram relações consentidas com meninos de menos de 14 anos. Dizer que isso não existe é ignorar a realidade social.
Como se sabe, é difícil encontrar um garoto que, mesmo anos depois, não contasse sobre sua precoce iniciação sexual como um prodígio de virilidade. Todavia, se o caso fosse analisado sobre a égide da legislação penal, o único status que ele receberia seria o de “estuprado”. Isso é preservar a dignidade do menino? Não é o que parece.
Ora, se com meninos tem-se “relaxado” (pais, e órgãos acusadores) a vigilância, com as meninas, ao contrário, se clama crescente controle. O filho pode ser precoce, a menina só pode ser ingênua e violentada.
O que se pretende esclarecer, com isso, é que, como de costume, nenhuma hermenêutica é apenas uma relação solitária entre o intérprete racional e a lei, mas um processo eivado de intenções, concepções de mundo, distorções e, mesmo, preconceitos. Se na prática flexibilizou-se a presunção de violência quando o mais novo da relação é homem, por que se escandalizar com a mesma medida quando o arranjo de gêneros ocorreu no sentido inverso?
A presunção de violência, que, como já foi esclarecido, encontra-se em total descompasso com a realidade social, não pode, além de tudo, ser uma mera questão de gênero.
Enfatizamos: por que para um menino pode sua iniciação sexual em tenra idade pode significar algo positivo e receber apoio e estímulo dos pais, enquanto a menina, por mais consciente que tenha sido no seu consentimento, é obrigada a suportar o status de “estuprada”?
A resposta que parece mais oportuna é a que relaciona tal problema à hipocrisia social, aliada a uma pedagogia que confunde pré-adolescência com ausência de qualquer discernimento, quer que ela carregue o ônus de vítima, pois é mais fácil para todos que não sabem o que fazer com a iniciação sexual antecipada de seus filhos apontarem um culpado que não esteja na própria família.
Se agora, a nova denominação dos “crimes contra os costumes” assumiu a roupagem de “crimes contra a dignidade sexual”, pergunta-se: a dignidade sexual de quem? Dos pais? Ou da adolescente que pode informar adequadamente (pelo menos, na maioria dos casos) se foi ou não enganada, se foi ou não estuprada, se quer ser mesmo a “vítima” nessa história.
Ora, o conceito de dignidade deve remeter o estudioso à ideia de que a pessoa deve ser tratada sempre como um fim em si, e não como um meio, um objeto. Não querer sequer saber como a garota foi e se sentiu tratada, se ela se sentiu usada ou amada, é tratá-la como objeto. E não pode ser a legislação penal, os pais ou o órgão de acusação, que devem, omitindo a vontade da presumida vítima, construir o sentido de tal evento.
“Mãe, mas fui eu que pedi.” “Cala a boca, minha filha. Não seja estúpida, você foi estuprada”.
Quanto ao argumento de que assim facilitaremos a vida dos pedófilos, ele incorre em dois problemas. Primeiro na completa descrença no Poder Judiciário, presumindo que este, uma vez relativizada à presunção, confundirá o abuso criminoso de um pedófilo com um romance consentido, ainda que prematuro, em que ninguém tratou com desrespeito ou se sentiu objeto de outrem. Segundo, punir aquele que talvez não merecesse para assim conter ou assustar os efetivamente criminosos é argumento para quem possui uma visão distorcida acerca da função do Direito nos Estados democráticos. Violar direitos individuais para satisfazer interesses instrumentais ou exemplificativos do Estado é não levar os direitos a sério.
Vale dizer, por fim, que a lógica do punir para dissuadir terceiros só funciona nos estados de terror, com suas penas cruéis e indiscriminadas. Nos Estados de direito, a culpabilidade, e não o medo do que farão terceiros, é que legitima a pena.
Portanto, quebrar presunções absolutas é apenas realizar o óbvio na administração da justiça criminal, analisar cada caso em seu contexto existencialmente carregado de significado.
Há duas gerações, meninas de 13 anos casavam com o apoio dos pais. Eram tais pais partícipes de estupros? Será que a nova lei de fato sintonizou-se com o mundo dos adolescentes e pré-adolescentes de hoje? Ou apenas expressou a ânsia de que o Direito Penal venha a suprir nossa educação deficiente e diminuir nossa perplexidade diante de um comportamento que nos assombra?
Ao lançar mão do conceito de vulnerabilidade, pretendeu o legislador reafirmar o caráter absoluto da norma, preconizando que independentemente da relação ter se manifestado mediante violência ou grave ameaça, a conduta do agente estaria incerta no artigo 217-A, uma vez que seu consentimento não seria válido já que não possui aptidão necessária para fazê-lo.
Acontece que, como mencionado anteriormente, a previsão dessa responsabilização objetiva fática contraria preceitos constitucionais fundamentais. Sob a ótica do ofendido, pode-se registrar o princípio da presunção de inocência e o princípio da adequação social. Por outro lado, fere a dignidade da pessoal humana, na medida em que retira do adolescente de 12 ou 13 anos a possibilidade de decidir
o momento de sua iniciação sexual. Quantos aos menores de 12 anos, defende-se o caráter irrestrito da norma, sob o argumento de proteção do desenvolvimento sexual desses menores. Ademais, justifica-se a título de política criminal, haja vista tutelá- los das garras das redes nefastas de pedofilia.
Por todo o exposto, o que se conclui é pela inconstitucionalidade do artigo 217-A.
REFERÊNCIAS
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REHDER, G. A. C. Crimes sexuais: ensaios históricos. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. 2010. Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/site/artigos/_imprime.php?jur_id=10473.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal Brasileiro. V.1, Parte Geral, 9.ed. revista e atualizada.
Notas
1 HOEPPNER, M. G. Minidicionário Jurídico. São Paulo: Ícone, 2008, p. 534.
2 PARENTONI, R. B. Código de Hamurabi. Instituto Jurídico Roberto Parentoni. 2009. Disponível em: https://plenariodojuri.blogspot.com.br/2009/02/código-de-hamurabi.html. Acesso em 23 abril de 2014.
3 CAVALCANTE, K. K. A. C. Evolução histórica do direito penal. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, III, n. 11, nov. 2002.
4 CAVALCANTE, K. K. A. C. Evolução histórica do direito penal. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, III, n. 11, nov. 2002.
5 REHDER, G. A. C. Crimes sexuais: ensaios históricos. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. 2010.
6 CAVALCANTE, K. K. A. C. Evolução histórica do direito penal. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, III, n. 11, nov. 2002.
7 REHDER, G. A. C. Crimes sexuais: ensaios históricos. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. 2010.
8 CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO, 1830. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
9 CÓDIGO PENAL, 1940. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
10 NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à lei 12.015, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 37
11 GRECO, Rogério. Código Penal: comentado. 3. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009. p. 615
12 GRECO, Rogério. Código Penal: comentado. 3. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009. p. 617
13 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2. ed revista e ampliada, 31ª impressão, Nova Fronteira, p. 1792.
14 BITENCOURT. Tratado de Direito Penal. Parte Especial 4, p. 82
15 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado.2012, p. 966.
16 JESUS, Damásio de. Direito Penal. Parte Especial. 20 ed. Saraiva, 2011, p. 156.
17 CUNHA, Rogério Sanches. Comentários à Reforma Criminal de 2009 e à Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. Revista dos Tribunais, 2009, p. 51.
18 BITENCOURT. Tratado de Direito Penal. Parte Especial 4, p. 93
19 BITENCOURT. Tratado de Direito Penal. Parte Geral 1, 13.ed., Saraiva, p. 11
20 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 2012, p. 966/967.
21 TÁVORA, Nestor. Curso de Direito Processual Penal. 5 ed. 2011, Jus Podivm, p. 53.
22 Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/7198/o-principio-da-presuncao-de-inocencia>. Acesso em: 20 de abril de 2014.
23 SCHIMITT, Ricardo Augusto. Princípios penais constitucionais, Direito e Processo Penal à Luz da Constituição Federal. Jus Podivm, 2007, p. 183.
24 PAULA, Vicente de. Revistas Unifacs. Disponível em https://www.revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/viewFile/2451/1797. Acesso em 29 de abril de 2014.
25 GRECO, Rogério. Código Penal Comentado, p. 614.
26 Disponível em: <https://atualidadesdodireito.com.br/lfg/2012/04/09/estupro-adolescente-de-12-anos-presuncao-relativa-da-violencia-criticas-ao-populismo-penal/>. Acesso em: 13 de março de 2014.
27 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 2012, p. 966.
28 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. V.I, Parte Geral, 8.ed. ver., atualizada e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 358.
29 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal Brasileiro. V.1, Parte Geral, 9.ed. revista e atualizada, p. 430.
30 BITENCOURT. Tratado de Direito Penal, Parte Especial 4, p. 98/99.