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Substituição tributária "para frente":

uma análise do fato gerador presumido à luz dos princípios da legalidade e da vedação ao confisco

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Agenda 03/04/2015 às 14:28

Parte importante da doutrina entende se tratar a substituição tributária “para frente” de instituto contrário à melhor interpretação do texto constitucional, por violar direito e garantia fundamental do contribuinte de ser tributado apenas quanto a fatos imponíveis que efetivamente ocorreram no campo fenomênico.

INTRODUÇÃO

Autorizada pelo artigo 150, §7º, da Constituição Federal, introduzido pela Emenda Constitucional nº 3 de 1993, a substituição tributária com a “antecipação do tributo” simplifica o sistema de arrecadação e de fiscalização e, por isso, vem sendo cada vez mais adotada pelos Estados-membros da Federação, abarcando uma gama variada de setores produtivos da Economia. Se antes já se admitia a substituição “para trás”, e.g. o frigorífico responsável por recolher o tributo devido pelo vendedor das cabeças de gado, passou-se a aceitar expressamente que o fabricante, ao vender a mercadoria ao varejista, fosse obrigado a reter o tributo devido por ocasião da revenda, fato que ainda não se realizou e que, no entanto, presume a lei, virá a ocorrer. Passou-se a admitir que o imposto, que seria calculado sobre os preços praticados nas vendas, tivesse a base de cálculo arbitrada pela autoridade fazendária, com mais ou menos critérios que a aproximassem da realidade.

Por seus reflexos na cadeia produtiva e por sua inegável importância para o Fisco como instrumento eficaz de recolhimento de impostos, o tema provocou ao longo dos últimos anos acirrados debates no mundo jurídico, tendo sido objeto de pronunciamentos das Cortes Superiores, e ainda levanta questões. No escopo desta monografia, procuramos expor os principais caracteres deste mecanismo confrontando-o com princípios constitucionais do Direito Tributário. Ativemo-nos ao embate da norma que deu caráter constitucional à substituição tributária “para frente” com os princípios da legalidade e da vedação ao confisco.

A pesquisa se baseou na produção de notáveis autores do Direito Tributário e na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e, principalmente em virtude de seu caráter constitucional, do Supremo Tribunal Federal acerca do tema. Buscamos identificar os benefícios percebidos pelo Fisco na adoção deste instituto e de que forma ele afeta o equilíbrio da relação jurídica tributária, com foco no conceito de “fato gerador presumido”, seu alcance e aspectos legais.

1.PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO TRIBUTÁRIO

1.1DELIMITAÇÃO

A doutrina elenca e a Constituição Federal traz no corpo de seu artigo 150 e incisos uma série de princípios que informam o Direito Tributário, entre os quais destacamos o da legalidade, da irretroatividade da lei tributária, da anterioridade, da igualdade, da capacidade contributiva, da vedação ao confisco e da liberdade de tráfego. O presente trabalho busca tratar do tema da substituição tributária das operações subseqüentes, também conhecida como substituição tributária “para frente” ou progressiva, sob a ótica de dois destes princípios, quais sejam, o da legalidade e o da vedação ao confisco. Necessário, portanto, que cuidemos de expor alguns dos caracteres destes preceitos.

1.2LEGALIDADE

O princípio da legalidade permeia todo o ordenamento jurídico pátrio e está consubstanciado no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal como garantia do indivíduo em face do poder do Estado de criar normas que lhe imponham injunções. Assevera que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei devidamente elaborada conforme os ditames das regras de processo legislativo.

No âmbito do Direito Tributário, tem-se, pelo artigo 150, inciso I, da Constituição Federal, que é vedado à União, aos Estados, do Distrito Federal e aos Municípios exigir ou aumentar tributo sem que a lei o estabeleça. Hugo de Brito Machado entende que a legalidade resguarda a “manifestação legítima da vontade do povo”[1] que, por seus representantes escolhidos por meio do voto, consentem com a instituição do tributo. Ao mesmo tempo, garante a segurança indispensável na relação jurídica entre o contribuinte e o Estado.

O dispositivo do Texto Maior supracitado não se trata de mera especificação a partir de um enunciado geral. O que se tem é um mandamento nuclear que exige que a norma traga em seu bojo a descrição pormenorizada de quem pode exigir o tributo, quem deve pagar, quanto deve pagar e em que condições de tempo e lugar, elevando o grau de rigidez do próprio princípio da legalidade, donde se pode extrair a noção de princípio da estrita legalidade.

Ensina Luciano Amaro:

Em suma, a legalidade tributária não se conforma com a mera autorização da lei para cobrança de tributos; requer-se que a própria lei defina todos os aspectos pertinentes ao fato gerador, necessários à quantificação do tributo devido em cada situação concreta que venha a espelhar a situação hipotética descrita em lei.[2]

Roque Antônio Carrazza, ao citar lição de Alberto Xavier, segue neste mesmo diapasão:

[...] o princípio da legalidade, no pertinente à instituição ou ao aumento de tributos, manifesta-se, entre nós, como princípio da reserva absoluta da lei formal, entendido no sentido de que a lei ordinária (federal, estadual, municipal ou distrital), necessariamente minuciosa, ‘[...] deve conter não só o fundamento da conduta da Administração, mas também o próprio critério da decisão no caso concreto’, de modo que esta possa ser obtida ‘[...] por mera dedução da própria lei, limitando-se o órgão de aplicação a subsumir o fato da norma, independente de valoração pessoal’.[3]

E arremata o jurista:

Aliás, a tipicidade, no direito tributário, é, por assim dizer, mais rigorosa do que no próprio direito penal. Neste, a lei confere ao julgador, no momento da imposição da pena, uma considerável dose de subjetivismo. Já, naquele, a lei indica, peremptoriamente, ao seu aplicado, não só o fundamento da decisão, como o critério de decidir e as medidas que está autorizado a adotar para que a arrecadação do tributo se processe com exatidão.[4]

1.3VEDAÇÃO AO CONFISCO

O artigo 150, inciso IV, da Constituição Federal estabelece que é vedado aos entes federativos utilizar tributo com efeito de confisco. Confiscar é verbo derivado do latim confiscatio e conceituado do seguinte modo por Alexandre de Moraes:

Apesar de dificuldade na definição dos contornos conceituais e jurisprudenciais, confisco ou confiscação pode ser entendido como o ato do poder público de decretação de apreensão, adjudicação ou perda de bens pertencentes ao contribuinte, sem a contrapartida de justa indenização[5].

Roque Antônio Carrazza busca responder à seguinte pergunta: quando um imposto é confiscatório?

A nosso sentir, confiscatório é o imposto que, por assim dizer, “esgota” a riqueza tributável das pessoas, isto é, que passa a largo de suas capacidades contributivas, impondo-lhes ônus que vão além do que se entende por razoável.[6]

Complementa o jurista:

O princípio da não confiscatoriedade limita o direito que as pessoas políticas tem de expropriar bens privados. Assim, os impostos devem ser graduados de modo a não incidir sobre as fontes produtoras de riqueza dos contribuintes e, portanto, a não atacar a consistência originária das suas fontes de ganho. É confiscatório o tributo que incide sobre correções monetárias, que, como se sabe, não revelam aumento de riqueza (e nesta medida, aumento de capacidade contributiva), mas simples recomposições do valor de troca da moeda.

[...] Destacamos que, para as empresas, o confisco está presente, quando o tributo, de tão gravoso, dificulta-lhes sobremodo a exploração de suas atividades econômicas habituais. Mais ainda, o fenômeno está presente quando a carga tributária inviabiliza o desempenho destas mesmas atividades.[7]

Aos sentidos, pode parecer clara a ideia de confisco, porém, ressalva a doutrina que tal princípio tem servido quase que tão somente como alerta ao Estado de que há limites quanto ao valor do tributo e pouco efetivamente diz sobre qual o limite do que seja ou não confiscatório. Avalia Paulo de Barros Carvalho:

A temática sobre as linhas demarcatórias do confisco, em matéria de tributo, decididamente não foi desenvolvida de modo satisfatório, podendo-se dizer que sua doutrina está ainda por ser elaborada. Dos inúmeros trabalhos de cunho científico editados por autores do assim chamado direito continental europeu, nenhum deles logrou obter as fronteiras do assunto, exibindo-as com a nitidez que a relevância da matéria requer. Igualmente, as elaborações jurisprudenciais pouco têm esclarecido o critério adequado para isolar-se o ponto de ingresso nos territórios do confisco. Todas as tentativas até aqui encetadas revelam a complexidade do tema e, o que é pior, a falta de perspectiva para o encontro de uma saída dotada de racionalidade científica[8].

Nebuloso, portanto, o terreno do princípio do não-confisco.

A jurisprudência, como apontado acima, ainda não estabeleceu bases objetivas suficientes de verificação do caráter confiscatório dos tributos, em que pese já tenha se pronunciado no entendimento de que é preciso avaliar o caráter confiscatório levando-se em conta todo o sistema tributário e toda a carga resultante da incidência dos tributos. Neste sentido, destaca-se o julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2010-2/DF ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil contra a totalidade dos dispositivos da lei 9.783 de 1999. Em suma, questionava-se a constitucionalidade da norma que permitia a elevação de 25% da alíquota da contribuição previdenciária dos servidores públicos. Entre os dispositivos violados, argumentava o Conselho Federal da OAB, estava o art. 150, IV, da Constituição Federal. Reproduzimos trecho do voto do então ministro Carlos Velloso:

Qual seria o conceito de ‘tributo com efeito de confisco?’ O conceito é indeterminado, caso em que o juiz laborará em área que chamaríamos de ‘área cinzenta’. Em primeiro lugar, a questão, ao que me parece, deve ser examinada no conjunto de tributos que o servidor pagará, no seu contracheque, dado que se trata de tributo incidente sobre o vencimento, salário ou provento.[9]

O Legislativo já teve oportunidade de se debruçar sobre o tema e buscar uma delimitação objetiva do que fosse confisco, não o tendo feito. Um Projeto de Lei Complementar de 1989 do então senador Fernando Henrique Cardoso versava sobre o tema. Contudo, terminou engavetado. Ives Gandra da Silva Martins lembra[10] que a propositura se apresentava da seguinte forma:

Art. 7º. Considerar-se-á caracterizada a utilização de tributo com efeito de confisco sempre que seu valor, na mesma incidência, ou em incidências sucessivas, superar o valor normal de mercado dos bens, direitos ou serviços envolvidos no respectivo fato gerador ou ultrapassar 50% do valor das rendas geradas na mesma incidência.

§ 1.º É vedada a pena de perdimento em matéria fiscal, ressalvadas as normas sobre o abandono de mercadorias previstas na legislação vigente.

§ 2.º Para os efeitos deste artigo computar-se-ão todos os tributos federais, estaduais ou municipais, que incidam no bem, direito ou serviço com fatos geradores simultâneos, ou decorrentes de um único negócio.

§ 3.º As normas deste artigo não se aplicam ao imposto de importação utilizado como instrumento regulador do comércio exterior.

Ainda que passível de questionamentos e sujeita a aprimoramentos, a proposta buscava proteger o contribuinte da instituição de tributo de valor exorbitante, bem como dos prejuízos da incidência de vários tributos que, mesmo prevendo alíquotas reduzidas, quando considerados em conjunto, representassem carga confiscatória.

2.TRIBUTO

2.1CONCEITOS

Na tarefa de conceituar “tributo”, apoiamo-nos em Paulo de Barros Carvalho:

O vocábulo “tributo” experimenta nada menos do que seis significações diversas, quando utilizado nos textos do direito positivo, nas lições da doutrina e nas manifestações da jurisprudência. São elas:

  1. “tributo” como quantia em dinheiro;
  2.  “tributo” como prestação correspondente ao dever jurídico do sujeito passivo;
  3. “tributo” como direito subjetivo de que é titular o sujeito ativo;
  4. “tributo” como sinônimo de relação jurídica tributária;
  5. “tributo” como norma jurídica tributária;
  6. “tributo” como norma, fato e relação jurídica.[11]

Claro, portanto, o caráter equívoco da palavra “tributo”. Conforme o exposto na citação acima, tributo pode significar o dinheiro pago pelo particular em favor do Estado, residindo sua definição no caráter pecuniário. Ou pode ter sua significação focada no comportamento exigido daquele que paga, o “dever” de dar o dinheiro ao Estado. Pode-se ainda encontrar sua definição como sendo o “direito” de o Estado receber a prestação pecuniária, bem como pode ter sua significação ligada ao conceito de relação jurídica que se constitui pelo dever do particular de pagar e pelo direito de o Estado cobrar tal prestação. Diz ainda Barros Carvalho que se pode encontrar nas leis, na doutrina e na jurisprudência a palavra “tributo” usada como sinônimo da própria regra de direito. Por fim, afirma o jurista, “tributo” pode englobar toda a “fenomenologia da incidência, desde a norma instituidora, passando pelo evento concreto, nela descrito, até o liame obrigacional que surde à luz com a ocorrência daquele fato”, conteúdo que se coaduna com o disposto no art. 3º do Código Tributário Nacional, de acordo com o autor[12].

O referido dispositivo traz o seguinte:

Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

Dizer que o tributo é uma “prestação pecuniária, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir” significa afirmar que ela deve ser paga em dinheiro, não obstante o não pagamento possa ensejar um processo de execução fiscal que pode levar à perda de bens como forma de adimplemento da obrigação e o CTN, em seu artigo 156, XI, preveja a dação em pagamento como hipótese de extinção do crédito tributário.

É uma prestação compulsória porque não decorre da vontade das partes, mas sim da lei, é ex lege, portanto. Nesse sentido, interessante observarmos o que diz Sacha Calmon Navarro Coêlho:

[...] quando se diz que o tributo decorre da lei e as obrigações convencionais, dos contratos, está se querendo dizer que o tributo é decorrente de fato unilateralmente previsto, e a obrigação convencional, de fato lícito multilateralmente acordado. Um é ex lege (nesse sentido), o outro é ex voluntate.[13]

O tributo, pela leitura do art.3º do CTN, deve ser instituído pela lei. Isso decorre do princípio da legalidade, exposto no início deste trabalho. Conforme o art.150, I, da Constituição Federal, só a lei pode exigir um tributo. Como regra, a lei que institui um tributo é a lei ordinária. Existem casos, no entanto, em que tributos só poderão ser criados por meio de lei complementar, vale dizer os previstos nos seguintes dispositivos da Constituição Federal: art. 153, VII (imposto sobre grandes fortunas); art.154, I (impostos de competência residual da União); art. 148 (empréstimos compulsórios); e art. 195, §4º (“outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social”).

O tributo tem origem legal, derivando de um ato lícito, e não pode ser confundido com penalidade pecuniária, que se origina de um ato ilícito. Isso não quer dizer, por exemplo, que uma renda auferida de maneira ilícita não possa ser tributada. O que não pode haver é a previsão na hipótese de incidência de tributação da atividade ilícita. No dizer de Hugo de Brito Machado, a lei não pode incluir na hipótese de incidência tributária o elemento ilicitude[14]. Mantendo-nos no exemplo do imposto de renda, é possível que se tribute o ganho auferido com a exploração de casa de prostituição, mas não o “serviço” prestado.

Por fim, o tributo deve ser cobrado mediante atividade plenamente vinculada, o que significa afirmar que não há margem de discricionariedade para a atuação da autoridade fiscal. Esta não tem liberdade para analisar o caso apreciando a conveniência e a oportunidade de agir. Estes, portanto, os caracteres resumidos da definição legal de tributo, que, ressalte-se, é alvo de críticas de vários doutrinadores.

Paulo de Barros Carvalho fala em redundância do legislador ao redigir que tributo é “toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir”:

A linguagem natural de que falamos fica bem evidenciada nessa estipulação, prescindível e redundante, em que o político, despreocupado com o rigor, comete dois erros grosseiros: primeiro, ao repetir o caráter pecuniário da prestação. Se já dissera que se trata de uma prestação pecuniária, para que insistir com a locução “em moeda”? Segundo, ao agregar a cláusula “ou cujo valor nela se possa exprimir”, pois com isso ampliou exageradamente o âmbito das prestações tributárias. Note-se que quase todos os bens são suscetíveis de avaliação pecuniária, principalmente, o trabalho humano que ganharia a possibilidade jurídica de formar o substrato de relação de natureza fiscal. Com base nessa premissa, alguns entenderam que o serviço militar, o trabalho nas mesas eleitorais e aquele desempenhado pelos jurados realizariam o conceito de tributo, já que satisfazem às demais condições postas pelo citado preceito.[15]

Em outra frente, Luciano Amaro questiona a afirmação de que o tributo é uma prestação “cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”:

Essa dicção do Código parece que significar que o recolhimento do tributo se sujeita, ‘sempre’, ao procedimento administrativo vinculado (designado de lançamento tributário), o que é uma ficção do Código Tributário Nacional, no extenso campo dos tributos cuja lei determina o dever de o sujeito passivo efetuar o pagamento sem prévio ‘lançamento’, e, mais do que isso, sem nenhum exame prévio da autoridade (CTN, art. 150).[16]

Por entender que cabe à doutrina e não à lei definir um instituto do Direito, Luciano Amaro propõe o conceito de tributo como a “prestação pecuniária não sancionatória de ato ilícito, instituída em lei e devida ao Estado ou a entidades não estatais de fins de interesse público”[17]. O conceito de tributo defendido por Amaro se alinha ao proposto por Geraldo Ataliba:

Juridicamente, define-se tributo como obrigação jurídica pecuniária, ex lege, que se não constitui em sanção de ato ilícito, cujo sujeito ativo é uma pessoa pública (ou delegado por lei desta), e cujo sujeito passivo é alguém nessa situação posto pela vontade da lei, obedecidos os desígnios constitucionais (explícitos ou implícitos).[18]

Entende-se, assim, que o sujeito ativo normalmente é uma pessoa política. É possível que o ente competente para legislar delegue a competência para figurar no pólo ativo desta relação jurídica a uma terceira pessoa, uma autarquia, por exemplo, fenômeno este que consiste na parafiscalidade. Tais conceitos especificam quem é o credor da obrigação, quem tem o direito de receber o pagamento da prestação, o sujeito ativo da relação jurídica tributária, e quem é o sujeito passivo, aquele que deve pagar a prestação, itens importantes para a compreensão do tema objeto deste estudo e sobre os quais nos debruçaremos no decorrer do trabalho.

3.OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA E FATO GERADOR

A etimologia da palavra “obrigação”, com origem em obligatio, remete à ideia de liame, ligação. Pode significar um “dever”, uma imposição a um sujeito para que este se comporte de determinada forma. Para o Direito, obrigação é uma relação jurídica. Relação jurídica é gênero, portanto, da qual obrigação é espécie.

Paulo de Barros Carvalho classifica como “incisiva” a definição primordial e basilar dada por Carnelutti de que a relação jurídica é “uma relação constituída pelo direito, entre dois sujeitos, com referência a um objeto”[19].

Para Caio Mário da Silva Pereira, obrigação “é um vínculo jurídico em virtude do qual uma pessoa pode exigir de outra uma prestação economicamente apreciável”[20]. Temos portanto, que a obrigação se especifica por possuir caráter patrimonial.

Vejamos a definição de Washington de Barros Monteiro:

Obrigação é a relação jurídica, de caráter transitório, estabelecida entre devedor e credor e cujo objeto consiste numa prestação pessoal econômica, positiva ou negativa, devida pelo primeiro ao segundo, garantindo-lhe o adimplemento através de seu patrimônio.[21]

Seguindo esta linha, temos, portanto, um vínculo entre os sujeitos denominados credor e devedor na relação jurídica obrigacional com vistas à prestação de um objeto. O credor tem o direito de exigir a prestação, enquanto o devedor tem o dever de prestá-la. Uma relação jurídica nasce a partir da ocorrência de um fato cuja hipótese estava prevista em lei como apta a gerar um vínculo entre duas ou mais pessoas que tem como objeto uma prestação. Temos, então, três elementos: sujeitos, vínculo e objeto (prestação). No caso da relação jurídica obrigacional, seu objeto é suscetível de apreciação econômica. Possível deduzir, então, que, numa relação jurídica tributária, o objeto seja um tributo, um dar, um fazer ou não fazer relacionado ao tributo, e nisto é que ela se diferencia das obrigações comuns.

Em uma sociedade regida por uma Constituição, é sabido que o Estado tem seu poder limitado pelo que nela estiver disposto, como expusemos sumariamente quando descrevemos os caracteres básicos dos princípios constitucionais que fariam parte do objeto deste estudo. Tributar é a forma encontrada pelo Estado para financiar suas atividades, que devem ser desempenhadas em prol de todos os cidadãos. Mas é a Carta Maior que confere ao Estado a competência para instituir um tributo, e nisto se observa a diferença entre relação de poder e relação jurídica, como no ensinamento de Hugo de Brito Machado:

Entende-se por relação de poder aquela que nasce, desenvolve-se e se extingue segundo a vontade do poderoso, sem observância de qualquer regra que porventura tenha sido preestabelecida. Já a relação jurídica é aquela que nasce, desenvolve-se e se extingue segundo regras preestabelecidas.[22]

Até seria possível haver regras preestabelecidas em uma relação de poder, mas estas regras se afastariam do razoável e do que se entende por “justo”, tornando, neste caso, o ato de tributar apenas manifestação do ius imperium do Estado e, em última instância, de autoritarismo. Assim, a obrigação tributária, vale dizer, a relação jurídica que tem como objeto a prestação de um tributo, decorre da lei, independente da vontade das partes que a integram. Amparamo-nos, mais uma vez, em Hugo de Brito Machado, que formulou o seguinte conceito sobre obrigação tributária:

Diríamos que ela é a relação jurídica em virtude da qual o particular (sujeito passivo) tem o dever de prestar dinheiro ao Estado (sujeito ativo), ou de fazer, não fazer, ou tolerar algo no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos, e o Estado tem o direito de constituir contra o particular um crédito.[23]

A definição supracitada abarca as noções de obrigação principal e acessória, constantes do Código Tributário Nacional:

Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória.

§ 1.º A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente.

A obrigação tributária principal é aquela que tem como objeto o pagamento do tributo ou da penalidade pecuniária e, como diz a norma, nasce com a ocorrência do fato gerador, conceituado no artigo 114 do CTN como “a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência”. Sacha Calmon Navarro Coêlho classifica a redação deste dispositivo como tautológica e lembra, assim como fazem outros doutrinadores, que da expressão “fato gerador” emergem duas acepções:

Primus – Fato gerador como descrição de uma situação jurígena feita pelo legislador (fato gerador abstrato).

Secundus – Fato gerador como situação jurígena que ocorre no mundo real, instaurando relações jurídicas (fato gerador concreto).[24]

Deveras, a expressão “fato gerador” é alvo recorrente de críticas de doutrinadores por seu caráter dúbio, ora significando a norma abstrata que descreve a hipótese ou situação cuja ocorrência ou confirmação no mundo dos fatos enseja o estabelecimento do vínculo jurídico entre dois sujeitos, ora tratando-se da menção ao próprio fato ou situação existente, ocorrida ou confirmada no plano fenomênico. José Eduardo Soares de Melo comenta:

A expressão “fato gerador” é muito simples e concisa para representar a causa e a razão do nascimento da obrigação tributária, em toda sua extensão, não permite inferir e compreender todos os elementos que a integram, além de não revelar a exata adequação dos aspectos da hipótese de incidência prevista em lei, com os fatos efetivamente ocorridos no mundo real.[25]

Em rápida digressão histórica, vemos que a expressão “fato gerador”, consagrada no âmbito legislativo tributário, remonta ao francês Gaston Jéze e seu trabalho “O Fato Gerador do Impôsto”, publicado na Revista de Direito Administrativo em 1945[26]. Tal estudo fez com que o termo ganhasse trânsito na doutrina brasileira a partir de então.

Para evitar a confusão entre o fato gerador como descrição do legislador e situação fática, diversos outros estudiosos do Direito Tributário buscaram outras terminologias. Geraldo Ataliba prefere “fato imponível” para designar o próprio fato que ocorreu no plano fenomênico (o fato concreto), e “hipótese de incidência” para indicar a definição contida na norma criada pelo legislador (a previsão legal)[27].

Luciano Amaro diz que Ataliba empresta “fato imponível” de Dino Jarach que, em espanhol, utilizou “hecho imponible”. Segundo Amaro, ainda, Ataliba aceita “hipótese de incidência”, locução proposta por Alfredo Augusto Becker[28].

Carvalho, por sua vez, destaca que outros termos foram empregados por diversos doutrinadores, como “situação-base”, “suporte fático” e “pressuposto de fato do tributo”, e critica a expressão “fato imponível”:

Quanto a fato imponível, ainda que corresponda, razoavelmente, à situação do mundo exterior que pretende simbolizar, traz um pequeno obstáculo de ordem semântica. 

Em princípio, fato imponível seria aquela ocorrência que estivesse sujeita à imposição tributária, por isso imponível, quer dizer, passível de sofrer imposição. Não é, propriamente, o que se passa. Apenas surge o fato e a incidência se dá, automática e infalível, fazendo desabrochar a relação jurídica. Não existe o fato anteriormente à incidência, de tal modo que, enquanto imponível, não é ainda fato  em, após a incidência, de modo  concomitante com seu nascimento, já  assumiu, na plenitude, os dons da sua  juridicidade.[29]

O jurista supracitado opina pela adoção de “hipótese tributária” para designar a “construção de linguagem prescritiva geral e abstrata” e “fato jurídico tributário” ao se referir à “sua projeção factual”. Deve haver exata adequação entre o fato e o desenho normativo previsto na hipótese tributária para que se dê o fenômeno da incidência da norma tributária em sentido estrito, qual seja, explica o autor, aquela que descreve o fato, estipula os sujeitos da relação e os termos determinativos da dívida, chamada pelo tributarista de norma-padrão de incidência ou regra matriz da incidência tributária[30].

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Outros autores, embora reconhecendo o caráter equívoco do termo “fato gerador”, o preservam, seja porque favoráveis ao seu uso, apesar das críticas, seja porque adotam “fato gerador” para se referir à concretização da hipótese descrita em lei.

Vejamos o que diz Hugo de Brito Machado:

A expressão hipótese de incidência designa com maior propriedade a descrição, contida na lei, da situação necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária, enquanto a expressão fato gerador diz da ocorrência, no mundo dos fatos, daquilo que está descrito na lei. A hipótese é simples descrição, é simples previsão, enquanto o fato é a concretização da hipótese, é o acontecimento do que fora previsto.[31]

Leandro Paulsen contribui para o estudo neste mesmo sentido ao dizer: “A hipótese de incidência integra o antecedente ou  pressuposto da norma tributária impositiva. O fato gerador é a própria situação que, ocorrida, atrai a incidência da norma”[32].

Ruy Barbosa Nogueira preserva o conceito legal de “fato gerador” ao afirmar que se trata do “conjunto dos pressupostos abstratos descritos na norma de direito material, de cuja concreta realização decorrem os efeitos jurídicos previstos”[33].

Entendemos que, a par de sua consagração, “fato gerador”, precipuamente em sede didática, não é o melhor termo a ser usado. E se a expressão “fato gerador” é objeto de tanto controvérsia, fácil deduzir que o vocábulo “fato gerador presumido” não poderia guardar menos debates, como se verá mais adiante.

Alinhando-nos às lições de Paulo de Barros Carvalho em estudo do tributo como norma jurídica, temos que para uma hipótese tributária haverá sempre um conseqüente tributário. Em outras palavras, a norma que descreve um fato lícito de possível ocorrência irá descrever também, de forma abstrata, o vínculo jurídico que irá se instaurar entre dois sujeitos em torno de um objeto – no caso, a prestação pecuniária característica do tributo – sempre que esta previsão se confirmar no plano fenomênico[34].  A hipótese descreve uma previsão de conduta (critério material) a ser praticada num dado momento (critério temporal) e num dado local (critério espacial), enquanto que o conseqüente determina quem são as pessoas que estarão vinculadas quando da ocorrência da hipótese prevista em lei no mundo dos fatos (critério pessoal) e qual a dimensão do objeto desta relação que se estabelece entre os dois sujeitos (critério quantitativo), vale dizer, alíquota e base de cálculo. Dedicaremo-nos a tratar do critério pessoal do conseqüente tributário, de suma importância para compreendermos o fenômeno da substituição tributária.

4.SUJEITOS DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA

Sujeito ativo é aquele que possui capacidade tributária ativa, a aptidão para arrecadar e fiscalizar um determinado tributo. Na dicção do art. 119 do CTN, “é a pessoa jurídica de direito público titular da competência para exigir o seu cumprimento”, definição que parece limitar a capacidade de figurar no pólo passivo da obrigação tributária aos entes públicos, o que não se mostra de todo correto. Ao contrário da competência tributária, a aptidão para criar tributos, descrevendo em lei todos os elementos essenciais da norma jurídica tributária, a capacidade tributária ativa é delegável. Quando isto ocorre, temos o fenômeno da parafiscalidade.

Enquanto o sujeito ativo tem o direito de exigir o cumprimento da obrigação constante da relação jurídica tributária, o sujeito passivo tem o dever de prestar o objeto desta obrigação. É aquele que possui a capacidade tributária passiva, a aptidão para figurar no pólo passivo da relação jurídica obrigacional, e de quem se exige o cumprimento da prestação pecuniária (obrigação principal) ou dos meros deveres instrumentais ou formais (obrigação acessória).

Geraldo Ataliba define assim o sujeito passivo:

Sujeito passivo da obrigação tributária é o devedor convencionalmente chamado de contribuinte. É a pessoa que fica na contingência legal de ter o comportamento objeto da obrigação, em detrimento do próprio patrimônio e em favor do sujeito ativo. É a pessoa que terá diminuição patrimonial, com a arrecadação do tributo.[35]

Alfredo Augusto Becker propôs uma divisão do “gênero” contribuinte, de viés econômico, em duas espécies: contribuinte de fato e contribuinte “de jure”. O primeiro seria aquele “que suporta definitivamente o ônus econômico do tributo (total ou parcial), por não poder repercuti-lo sobre outra pessoa”. O segundo seria “a pessoa que a regra jurídica localizar no pólo negativo da relação jurídica tributária [...]. Noutras palavras, o contribuinte de jure é o sujeito passivo da relação jurídico-tributária”.[36]

Assim define o Código Tributário Nacional:

Art. 121 - Sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária.

Parágrafo único. O sujeito passivo da obrigação principal diz-se:

I - contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador;

II - responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei.

Em termos históricos, importante destacarmos o trabalho de Rubens Gomes de Sousa, que propôs a classificação dos sujeitos passivos em direto e indireto. Entendia o doutrinador que, como regra, o tributo deve ser cobrado daquele que esteja em relação econômica com o “ato, fato ou negócio tributado”, ou seja, daquele que obtém uma vantagem econômica da situação que origina a relação jurídica tributária, sendo este denominado sujeito passivo direto. Nos termos da norma pátria, o contribuinte. O sujeito passivo indireto seria aquele que, embora não estivesse em relação direta com o fato tributável, estaria obrigado ao pagamento do imposto, por força da lei.[37] De acordo com o art. 121 do CTN, o responsável.

Segundo Paulo de Barros Carvalho, a orientação da norma atualmente em vigor teve raiz no magistério de Gomes de Sousa que, não obstante, merece críticas. Para ele, a elaboração dos conceitos de sujeitos passivos direto e indireto “data dos albores do Direito Tributário no Brasil” e estaria por demais influenciada por “categorias estranhas”, principalmente a econômica, como inclusive podemos ver no inciso I do art. 121, que exige que o sujeito passivo tenha “relação pessoal e direta” com o fato que originou a obrigação tributária. Diz o professor:

Daí a procedência de uma observação crítica decisiva e fulminante: não há, em termos propriamente jurídicos, a divisão dos sujeitos em diretos e indiretos, que repousa em considerações de ordem eminentemente factuais, ligadas à pesquisa das discutíveis vantagens que os participantes do evento retiram de sua realização. Interessa, do ângulo jurídico-tributário, apenas quem integra o vínculo obrigacional. O grau de relacionamento econômico da pessoa escolhida pelo legislador, com a ocorrência que faz brotar o liame fiscal, é alguma coisa que escapa da cogitação do Direito, alojando-se no campo de indagação da Economia ou da Ciência das Finanças.[38]

4.1 O CONTRIBUINTE

Atendo-nos à sistemática do CTN, temos, como visto, as figuras do contribuinte e do responsável. Contribuinte é aquele que realiza o fato descrito na hipótese de incidência. Responsável, aquele ao qual a lei imputa o dever de cumprir a obrigação tributária, sobre o qual trataremos mais detidamente adiante. Ao citar Amílcar de Araújo Falcão, Luciano Amaro ensina que a tarefa de se identificar o contribuinte não pode se resumir à descoberta do “autor” do fato descrito na norma hábil a constituir a relação jurídica tributária, sob o risco de esta descrição não se afigurar cristalina:

Existem situações de direito privado (que a lei tributária elege como fato gerador de tributo) que envolvem mais de uma pessoa, podendo qualquer delas ser eleita como contribuinte. Por exemplo, se o fato gerador do tributo é a transmissão de imóveis, podemos ter como contribuinte qualquer das partes na operação.[39]

Luciano Amaro também medita acerca da noção de que o contribuinte é a pessoa que manifesta capacidade contributiva na situação descrita na norma como apta a instaurar o vínculo obrigacional. Embora não esteja no centro de nosso estudo, é importante lembrarmos que o princípio da capacidade contributiva se encontra expresso no art. 145, § 1.º, da Constituição Federal:

§ 1º - Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

Das palavras de Geraldo Ataliba, é possível depreender que a descrição do critério pessoal da hipótese de incidência deve consagrar este princípio:

De tudo se vê que não é livre o legislador ordinário na escolha dos sujeitos passivos. Pelo contrário, ele é obrigado a colher como tal somente aquela pessoa que realmente corresponda às exigências do aspecto pessoal da hipótese de incidência, tal como determinada (pressuposta), em seus contornos essenciais, pelo próprio texto constitucional: o ‘realizador’ da operação tributável (RDT 34/2170).

O legislador deve colocar como sujeito passivo, nos impostos, a pessoa cuja capacidade contributiva é manifestada (revelada) pelo fato imponível.[40]

Para Amaro, contudo, não necessariamente quem demonstra capacidade contributiva é escolhido pela lei para figurar no pólo passivo como contribuinte. Tal argumento fica demonstrado em trecho de seu Direito Tributário Brasileiro que faz remissão às duas espécies de contribuinte propostas por Alfredo Augusto Becker, em que pese haver críticas de doutrinadores quanto à utilidade de tal classificação:

Se uma empresa vende produtos de primeira necessidade, a tributação não leva em conta a capacidade econômica da empresa, mas a do consumidor, ao definir a eventual tributação desses bens. Ou seja, embora, de direito, o contribuinte possa ser definido como contribuinte (o chamado “contribuinte de direito”), a capacidade econômica do consumidor é que precisa ser ponderada para efeito da definição do eventual ônus fiscal (pois ele será o “contribuinte de fato”).[41]

Conclui Amaro que o contribuinte tem conceito jurídico-formal. “É contribuinte quem a lei identificar como tal, observados os parâmetros que decorrem da Constituição e do próprio Código Tributário Nacional”, vale dizer, sem ignorar a capacidade contributiva do sujeito, embora dela possa se afastar em alguns casos. “Respeitada essa premissa, a Constituição não será ferida se a legislação infraconstitucional indicar como contribuinte numa operação de venda para consumo, indiferentemente, o vendedor ou o comprador”.[42]

Lembra ainda o autor de elucidar o que a lei trata como “relação pessoal e direta” do contribuinte com a situação passível de estabelecer o vínculo obrigacional entre sujeitos ativo e passivo da relação jurídica tributária. “Ao falar em relação pessoal, o que se pretendeu foi sublinhar a presença do contribuinte na situação que constitui o fato gerador”, ressaltando que não necessariamente essa presença será física, mas jurídica. A relação direta, por seu turno, pressupõe que o contribuinte seja o “personagem de relevo” no fato, o “personagem principal”. “Se o fato gerador do imposto de renda, por exemplo, é a aquisição de renda, terá relação direta com esse fato a pessoa que aufere renda”.[43] Imperioso recordar a objeção de Paulo de Barros Carvalho quanto a se levar em consideração no estudo da norma jurídica tributária a relação econômica entre o sujeito passivo e a situação fática apta a gerar o vínculo obrigacional. Como já explicitado anteriormente, para ele, não cabe ao cientista do Direito cogitar das vantagens percebidas por cada um dos participantes do evento, posto que caractere estranho ao mundo jurídico e anterior à elaboração da norma.

4.2 O RESPONSÁVEL

Para que entremos no terreno da substituição, e em seguida na sua modalidade progressiva, trataremos da figura do responsável, aquele ao qual, pela lógica do art. 121, inciso II, do CTN, a lei atribui a obrigação de efetuar o pagamento do tributo sem que tenha realizado no mundo dos fatos o que está descrito na hipótese de incidência, vale dizer, sem ser o contribuinte.

No lecionar de Rubens Gomes de Sousa, responsável é o sujeito passivo indireto, podendo se revestir dessa característica em substituição àquele que praticou o fato descrito na norma ou recebendo a incumbência de pagar o tributo, sem que a lei ignore a existência do sujeito que efetivamente praticou o ato descrito na regra, o que chamou de Transferência. Esta, por sua vez, na visão do jurista, se desdobraria em Sucessão, Solidariedade e Responsabilidade.[44]Aqui é preciso que se faça um destaque: a expressão “Responsabilidade”, ao contrário do ensinamento de Gomes de Sousa, viria a ser empregada no CTN de forma genérica, designando a situação em que se enquadrariam todas as hipóteses de sujeição passiva indireta. A Transferência ocorre quando a obrigação tributária, depois de ter surgido contra uma pessoa determinada (que seria o sujeito passivo direto), em virtude de um fato posterior, transfere-se para outra diferente[45].

Sacha Calmon Navarro Coêlho assim exemplifica a Transferência:           

I – “A” pratica o fato gerador e deve pagar o imposto;

II – em virtude de fato posterior (morte, negócio jurídico, falência, inadimplemento ou insolvência etc.), a lei determina que a um terceiro seja transferido o dever de pagar. Este terceiro, que podemos chamar de “B”, torna-se ex-lege responsável pelo tributo, originariamente devido por “A”. Dá-se uma alteração na consequência da norma jurídica no plano do sujeito passivo. O responsável sub-roga-se na obrigação.[46]

Na Substituição, o legislador, ao elaborar a hipótese de incidência, o fato gerador “in abstrato”, desde logo, coloca no pólo passivo da relação jurídica tributária a figura do substituto, não a do sujeito que, ao praticar o fato descrito na norma, a princípio, deveria ocupar este lugar. Na Transferência – reforçamos – um fato posterior faz com que haja alteração no pólo passivo, enquanto que na Substituição é a lei quem opera essa troca.

As hipóteses de sujeição passiva indireta por transferência encontram-se regidas na Lei. Vejamos, de maneira sucinta, cada uma delas.

Na Solidariedade, prevista nos artigos 124 e 125 do CTN, o dever de pagar o tributo nasce, desde logo, para o contribuinte. Mas, por força da lei – e apenas por meio de lei – um terceiro ou mais pessoas que não praticaram o fato imponível também são obrigados a responder pelo pagamento. Luciano Amaro diz que, na solidariedade, “opera-se uma extensão da subjetividade passiva”:

O evento que provoca a solidariedade não integra a definição legal do fato gerador (hipótese de incidência ou fato gerador abstrato). Mas esse evento pode matizar o fato gerador concreto, cujo elemento subjetivo, no pólo passivo, nasce plúrimo. Vale dizer, ocorrido o fato gerador, tem-se desde logo mais de uma pessoa ocupando a posição de sujeito passivo, como se dá nas hipóteses de comunhão de interesses de duas ou mais pessoas na situação em que se traduza o fato gerador; realizado este, todas essas pessoas figuram somo sujeitos passivos solidários.[47]

Nesta hipótese, não se pode invocar o beneficio de ordem, nos termos do art. 124, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, isto porque, afirma o autor supracitado, cuida-se de solidariedade passiva, “situação na qual o credor tem a prerrogativa de exigir de qualquer dos coobrigados (ou de todos) o cumprimento da obrigação”[48].

 Na Sucessão, disciplinada nos artigos 129, 130, 131, 132 e 133 do CTN, temos hipótese de sub-rogação nos direitos e obrigações do primitivo devedor, o contribuinte. O dever de pagar o tributo nasce para o contribuinte, porém este desaparece, deixando quem lhe faça juridicamente as vezes. Detalha Amaro:

A sucessão dá-se no plano da obrigação tributária, por modificação subjetiva passiva. Assim, o sucessor passa a ocupar a posição do antigo devedor, no estado em que a obrigação se encontrava na data do evento que motivou a sucessão. Se se trata de obrigação cujo cumprimento independe de providência do sujeito ativo, cabe ao sucessor adimpli-la, nos termos da lei. Se depende de providência do sujeito ativo (lançamento), já tomada, compete-lhe também satisfazer o direito do credor. Se falta essa providência, cabe-lhe aguardá-la e efetuar o pagamento, do mesmo modo que o faria o sucedido.[49]

Temos como exemplo a sucessão “causa mortis”, em que o herdeiro responde pelas dívidas tributárias do “de cujus” até o limite da herança, e, como exemplo de sucessão “inter vivos”, aquela em que o adquirente de um imóvel responde pelas respectivas dívidas tributárias.

A Responsabilidade de Terceiros, por seu turno, repousa no artigo 134 e incisos do CTN. Aqui, a pessoa que tinha o dever legal de zelar para que o contribuinte recolhesse o tributo não o faz, acarretando a este o dever de, num primeiro momento, suportar o pagamento do tributo. Diz o referido dispositivo:

Art. 134 - Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis:

I - os pais, pelos tributos devidos por seus filhos menores;

II - os tutores e curadores, pelos tributos devidos por seus tutelados ou curatelados;

III - os administradores de bens de terceiros, pelos tributos devidos por estes;

IV - o inventariante, pelos tributos devidos pelo espólio;

V - o síndico e o comissário, pelos tributos devidos pela massa falida ou pelo concordatário;

VI - os tabeliães, escrivães e demais serventuários de ofício, pelos tributos devidos sobre os atos praticados por eles, ou perante eles, em razão do seu ofício;

VII - os sócios, no caso de liquidação de sociedade de pessoas.

Amaro comenta que o CTN trata como responsabilidade solidária casos de impossibilidade de exigir o cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, o que, na verdade, se consubstancia em responsabilidade subsidiária. Senão, vejamos:

Anote-se que o próprio Código disse (art. 124, parágrafo único) que a solidariedade não comporta benefício de ordem (o que é óbvio); já o art. 134 claramente dispõe em contrário, o que infirma a solidariedade. Em suma, o dispositivo não cuida de responsabilidade solidária, mas subsidiária, restrita às situações em que não haja possibilidade de exigir o cumprimento da obrigação pelo próprio contribuinte.[50]

5.SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA

A Substituição Tributária, ainda que assim não explicitamente denominada pelo CTN, é hipótese descrita em lei como de sujeição passiva indireta, operando-se nos termos do artigo 128 do referido diploma legal:

Art. 128 – Sem prejuízo do disposto neste Capítulo, a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação.

Temos aqui exclusão da responsabilidade do contribuinte, posto que o dever de pagar o tributo nasce de imediato e por expressa previsão legal para a pessoa de um terceiro. A substituição pode ocorrer, nas palavras de Rubens Gomes de Sousa, “por interesse ou necessidade” do Estado de cobrar o tributo de pessoa diferente daquela que praticou o fato imponível. Sustentou o jurista que o fenômeno se dava quando:

[...] em virtude de uma disposição expressa de lei, a obrigação tributária surge desde logo contra uma pessoa diferente daquela que esteja em relação econômica com o ato, ou negócio tributado: nesse caso é a própria lei que substitui o sujeito passivo direto por outro indireto.[51]

Observemos que, no sentido do que foi exposto acima, a substituição do contribuinte por um terceiro que não praticou o fato jurídico tributável se dá num momento pré-legal, político, no âmbito do legislador e, portanto, da elaboração da norma, no que Paulo de Barros Carvalho confronta a lição de Gomes de Sousa ao afirmar que: “na hipótese, o legislador nada substitui, somente institui”[52]. Assim, poderíamos entender não se tratar a substituição de hipótese de sujeição passiva indireta, como quer o Código, mas direta.

Num primeiro plano, Sacha Calmon Navarro Coêlho defende Gomes de Sousa e a expressão “substituição”:

O legislador, sabendo que a pessoa envolvida economicamente com o ato ou negócio tributado seria, naturalmente, o sujeito passivo, o substitui, instituindo um responsável (o substituto legal tributário). A não ser assim, como explicar o fenômeno da substituição tributária? Não menos do que por isso, o substituto deve estar em relação com o substituído, para que possa forrar-se do ônus econômico acarretado pelo fato de ser responsável pelo pagamento de um tributo (art. 128 do CTN) cujo fato gerador não realizou. Rigorosamente, ele é devedor de tributo por fato de terceiro. Não poderá, pois, sofrer o ônus econômico; basta-lhe o dever jurídico. Se o aspecto material da hipótese de incidência fosse suficiente para indicar o sujeito passivo eu estaria errado. Como não é, a doutrina contrária é que está.[53]

O confronto entre os jurisconsultos, no entanto, se ameniza ao observarmos que ambos entendem não haver, em momento posterior à elaboração da norma, transferência de deveres entre sujeitos passivos, e que aquele eleito para integrar o pólo passivo da obrigação tributária, mesmo não tendo praticado a conduta descrita na hipótese tributária, é sim o devedor da prestação. Sacha Calmon Navarro Coêlho chega a dizer que o substituto é sujeito passivo direto, ainda que não possa ser denominado de “contribuinte”, mas “destinatário legal tributário”:

Em suma, a sujeição passiva indireta dá-se apenas nos casos de transferência com alteração de obrigados. Somente nestes casos “paga-se dívida alheia”. Nas hipóteses de substituição, não há pagamento de dívida alheia. Ao contrário, há pagamento de dívida própria, embora decorrente de fato gerador de terceiro.

A principal diferença entre os ensinamentos de Sacha Calmon e Barros Carvalho no que tange à substituição tributária é que este não cogita dos caracteres econômicos da relação que se estabelece quando da ocorrência do fato previsto na hipótese de incidência. Para ele, como visto no item 4.1, não interessa quem tire vantagem econômica do ato, fato ou negócio tributado, mas tão somente quem a lei coloca no pólo passivo da relação. Sacha Calmon, em contrapartida, ao que nos parece, defende a importância destes caracteres para que se entenda que, na substituição, não ocorre a substituição de sujeitos passivos, mas sim de pessoas que deveriam ser, diretamente, sujeitos passivos, “pela simples razão de, ‘economicamente’, estarem no cerne das situações eleitas como jurígenas, prestigiando o princípio da capacidade contributiva”[54]. E complementa ao dizer que “o que a doutrina chama de substituto é, na realidade, o único contribuinte do tributo”. O autor acrescenta que o legislador, no art. 128 do CTN, exigiu que o substituto estivesse vinculado ao fato gerador da respectiva obrigação. Ricardo Lobo Torres complementa:

Mas o substituído não é totalmente estranho à relação tributária. Para que haja a substituição é necessário que o contribuinte e o substituto participem do mesmo processo econômico, de modo que entre as suas atividades haja algum nexo. As imunidades e as isenções pertencem ao substituído, e não ao substituto. [55]

Por estes entendimentos, não devemos afirmar, que, atualmente, o substituído não tem qualquer relação com o Estado por não integrar o pólo passivo da obrigação tributária. O binômio substituto/substituído é importante na leitura dos dispositivos legais referentes à responsabilidade por substituição e também no que tange ao direito de o substituto transferir o ônus tributário ao substituído. Hugo de Brito Machado assim escreve:

O substituto legal tributário pode ter ou não o direito de transferir para o contribuinte de fato o ônus do tributo. Na maioria dos casos essa transferência não lhe é proibida, e por isto mesmo tem-se que é permitida, mas não há um direito a essa transferência, que fica a depender de circunstâncias econômicas.[56] [grifos do autor].

Vejamos também este julgado do Superior Tribunal de Justiça:

“TRIBUTÁRIO. ICMS. SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA. TRIBUTO PAGO A MAIOR, CONSIDERANDO A DIFERENÇA ENTRE O PREÇO ESTIMADO E O VALOR EFETIVO (MENOR) DA OPERAÇÃO. LEGITIMIDADE DO ‘SUBSTITUÍDO’ PARA REQUERER A REPETIÇÃO DO INDÉBITO OU PROCEDER À RESPECTIVA COMPENSAÇÃO, MAS SOMENTE A PARTIR DA LEI COMPLEMENTAR Nº 87, DE 1996.  Até a Lei Complementar nº 87, de 1996, o ‘substituído’ não tinha qualquer relação jurídica com o sujeito ativo da obrigação tributária; depois dela, sem embargo de que não participe da relação tributária, o ‘substituído’ está legitimado a requerer a repetição do indébito do ICMS pago a maior na chamada ‘substituição para frente’ (art. 150, § 7º c/c o art. 10, § 1º, da Lei Complementar nº 87, de 1996) - desautorizada a presunção juris et de jure que militava a favor da base de cálculo por estimativa, na forma da Lei Complementar nº 44, de 1983.  Recurso especial não conhecido.”

(STJ, REsp nº 203.551/MG, 2a Turma, Rel. Min. Ari Pargendler, DJ de 03/05/99, p. 138).

Veremos ainda nesta monografia o que nos acrescenta a Lei Complementar nº 87 de 1996, mas, de pronto, reputamos de fundamental relevância visualizar, antes de discorrermos sobre a responsabilidade tributária por fato futuro, que não se fala em substituto sem se falar em substituído. Alfredo Augusto Becker assim justifica a adoção do instituto da substituição tributária:

Na relação jurídica do imposto de consumo, o sujeito passivo, teoricamente, deveria ser o consumidor.  Ora, criar regra jurídica que estabeleça relações jurídicas tributárias do imposto do consumo, vinculando o Estado a cada um dos indivíduos consumidores, é criar regra jurídica tributária absolutamente impraticável, pois jamais haverá órgão administrativo e órgão judiciário, ainda que equipados com cérebros eletrônicos, capazes de garantirem a respeitabilidade aos efeitos jurídicos daquela regra.

A solução criada pelo legislador foi a seguinte: em lugar do consumidor, o sujeito passivo, na relação jurídica de consumo, é o produtor do bem que será consumido.

Simultaneamente, o Legislador outorga ao produtor, mediante outra regra jurídica, o direito de repercussão jurídica por reembolso do imposto de consumo por ele pago. A outorga deste direito de reembolso não é essencial à fenomenologia do substituto legal tributário. O legislador só estará juridicamente obrigado a outorgar este direito de reembolso quando legisla dentro de um sistema jurídico cuja constituição juridicizou o princípio da capacidade contributiva.[57]

Ainda que o substituto seja o sujeito passivo da obrigação, em face do legislador e da Administração Tributária, o substituído continua sendo ator de suma importância para o adequado funcionamento do mecanismo da substituição, tendo uma relação jurídica com o Estado que lhe permite, por exemplo, proceder ao pedido de restituição do valor do imposto pago em sede de substituição tributária quando não se concretizar o fato gerador presumido.

5.1 MODALIDADES

Neste trabalho, restringimos o confronto dos postulados constitucionais já expostos no início do estudo em face da sistemática da substituição tributária nas operações subseqüentes no âmbito do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual, Intermunicipal e de Comunicação, previsto no art.155, II, da Constituição Federal. Destarte, limitaremos a partir daqui nosso campo de visão da aplicabilidade deste instituto em face do ICMS, ainda que o legislador possa prever a substituição “para frente” em outras espécies de tributos, visto que não há impedimento expresso na norma legal. Este imposto plurifásico é responsável pela maior parte da arrecadação dos Estados e nele repousa a gênese dos questionamentos já feitos sobre a constitucionalidade da adoção da substituição tributária com antecipação do tributo devido nas operações seguintes.

A Lei Complementar n° 87 de 1996, em seu art. 6º, §1º, prevê hipóteses de substituição tributária no ICMS. Adotaremos, neste trabalho, as classificações das modalidades encontradas em obras de doutrinadores como o já citado Roque Antônio Carrazza e Zelmo Denari[58]:

a) “Para trás”, regressiva ou das operações antecedentes: o legislador atribui a terceiro a responsabilidade pelo pagamento do ICMS em relação às operações anteriores. Neste caso, o pagamento do tributo é efetuado após a ocorrência do fato gerador por um terceiro que, embora tenha relação com ele, não o praticou. Ainda que existam discordâncias, alguns doutrinados tratam esta modalidade como sinônimo de “diferimento”, já que o momento do pagamento da prestação pecuniária ficaria diferido, adiado, para um momento posterior. José Roberto Rosa, autor de notável saber prático acerca do tema, elenca hipóteses de aplicação deste instituto:

[...] produtor rural vende frutas para indústria de sucos, batatas para indústria de salgadinho, café para indústria torrefadora, etc. Como para o Estado é bem mais interessante esperar a circulação da mercadoria afunilar na indústria para aí controlar o tributo, inclusive porque o produtor rural está dispensado de escrituração, a maioria dos Estados prefere conceder o diferimento [...][59];

    Carrazza acrescenta:

“Em matéria de ICMS o diferimento costuma ser concedido para favorecer contribuinte mais fraco (v.g., o sucateiro), que, além de enfrentar maiores dificuldades financeiras, não tem reais condições de manter a escrita fiscal em dia. Por isso, o recolhimento do tributo fica a cargo do próximo contribuinte (v.g., a empresa de ferro-velho), que adquire a mercadoria e promove a revenda. Este recolherá (i) o ICMS devido pela operação mercantil que efetivamente realizou e (ii) o relativo à operação mercantil anterior, alcançada pelo diferimento [...]”[60]

b) Concomitante: caracterizada pela atribuição da responsabilidade pelo pagamento do ICMS a sujeito que não realiza diretamente o fato gerador in concreto, mas em fase concomitante à ocorrência deste. Neste caso, temos como exemplo, no Estado de São Paulo, a substituição tributária no serviço de transporte de cargas prestado por autônomos ou transportadoras de outros Estados, em que o tomador do serviço é colocado como substituto; e

c) “Para frente”, progressiva ou das operações subseqüentes: o legislador atribui a quem não está ligado diretamente à realização do fato gerador in concreto a função de responsável pelo pagamento do imposto devido nas operações seguintes. Aqui o fato gerador ainda não ocorreu, mas a cobrança do imposto se dá antecipadamente, a pretexto de se evitar a sonegação e simplificar a fiscalização em setores onde há poucos fabricantes ou importadores e muitos revendedores, e.g. o setor automobilístico. Nesta hipótese, o valor do ICMS que seria devido quando da comercialização de um veículo ao consumidor final pela concessionária é cobrado da indústria montadora. Sacha Calmon Navarro Coêlho estabelece paralelo com a forma como é cobrado o ITBI, no âmbito municipal:

Cobra-se do substituído um imposto cujo fato gerador sequer ocorreu (como sempre se cobrou o imposto de transmissão de bens imóveis ao se lavrar a escritura inter vivos). Ora, é consabido que a transmissão só ocorre após a escritura ser registrada no cartório próprio, conforme predica o Direito Civil pátrio.[61]

Para um melhor entendimento, podemos recorrer ao estudo de Florence Cronemberg Haret, em sua tese de doutorado, acerca das presunções e do que seja a substituição tributária “para frente”. Amparada nos ensinamentos de Paulo de Barros Carvalho e fazendo menção a Humberto Ávila, a autora explica que tal instituto, na tributação do ICMS, opera alterações na regra-matriz de incidência: 1) modifica o critério temporal, antecipando a ocorrência do fato jurídico do ICMS; 2) modifica o critério subjetivo, fazendo ingressar a relação a figura do substituto; e 3) modifica o critério quantitativo, convencionando em termos arbitrários a base de cálculo da exação[62].

6.SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA PARA FRENTE

6.1HISTÓRICO

O instituto da chamada substituição tributária “para frente” não é novo no direito positivo brasileiro e sua introdução nele se deu pela redação do já revogado artigo 58, § 2º, II do Código Tributário Nacional. Tal dispositivo asseverava que a lei poderia atribuir ao industrial ou comerciante atacadista a condição de responsável quanto ao imposto devido pelo comerciante, “mediante acréscimo, ao preço da mercadoria a ele remetida, de percentagem não excedente de 30% (trinta por cento) que a lei estadual fixar”. Em 1967, foi editado o Ato Complementar nº 34, que modificou a redação do referido inciso, permitindo que a lei atribuísse a condição de substituto:

II - ao industrial ou comerciante atacadista, quanto ao imposto devido por comerciante varejista, mediante acréscimo:

a) da margem de lucro atribuída ao revendedor, no caso de mercadoria com preço máximo de venda no varejo marcado pelo fabricante ou fixado pela autoridade competente.

b) de percentagem de 30% (trinta por cento) calculada sobre o preço total cobrado pelo vendedor, neste incluído, se incidente na operação, o art. 46, nos demais casos.

Posteriormente, o Decreto-lei nº 406, de 31 de dezembro de 1968 viria a revogar tais dispositivos até que, por meio da Lei Complementar nº 44 de 1983, fosse acrescentando no corpo de seus artigos 2º, 3º e 6º novos parágrafos que versavam sobre a responsabilidade tributária por fato futuro. Atualmente, contudo, na visão de boa parte da doutrina, estes se encontram revogados tacitamente pela Lei Complementar nº 87, de 1996. A crescente adoção do mecanismo fez com que os responsáveis, incumbidos do ônus jurídico, ingressassem com ações em face do Estado contra a norma que previa a substituição tributária.

Para, de certa forma, tentar encerrar o debate sobre a legalidade do tema, por força da Emenda Constitucional n°3 aprovada pelo legislador constituinte derivado no ano de 1993, esta modalidade foi insculpida no Texto Maior, em seu artigo 150, § 7º:

A lei poderá atribuir a sujeito passivo da obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido.

A CF, art. 155, § 2º, XII, b, determina também que cabe à lei complementar dispor sobre substituição tributária do ICMS. Nesse sentido, a Lei Complementar nº 87, de 1996, estabelece que cada Unidade Federativa é competente para atribuir ao contribuinte a responsabilidade pelo pagamento do referido imposto devido nas operações ou prestações. A LC 87/96 estabelece, ainda, em seu artigo 9º, que para a adoção do regime de substituição tributária em operações interestaduais faz-se necessária a celebração de acordo específico entre os Estados interessados. Nesse sentido, o Convênio ICMS nº 81, de 1993, foi aprovado para disciplinar as normas gerais a serem aplicadas na elaboração dos acordos firmados entre os Estados.

No Estado de São Paulo, de acordo com a Lei Estadual nº 6.374 de 1989, com alterações aprovadas pela Assembleia Legislativa, principalmente no fim da primeira década dos anos 2000, e o Regulamento do ICMS, uma diversidade de mercadorias e serviços encontra-se na lista daqueles cujas operações, dentro do território paulista ou entre São Paulo e outro Estado, dependendo de cada caso, estão sujeitas ao regime da substituição tributária “para frente”. A título de exemplo, além do automóvel, tem-se refrigerante, bebidas alcoólicas, sorvetes, petróleo, combustíveis ou lubrificantes, dele derivados, e álcool carburante, cigarros, tintas, lâmpada elétrica, pilha, baterias elétricas, leite em pó, produtos farmacêuticos, cosméticos, materiais de construção e autopeças.

Em 2009, a Lei nº 13.291 alterou as normas referentes ao ICMS no Estado de São Paulo obrigando a realização de consulta prévia a entidades como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo para que fossem definidos os produtos cujas operações passariam a se submeter ao regime da substituição tributária “para frente”. Assim, foi incluído ao artigo 8º da Lei nº 6.374/89, o § 16, que dispõe:

A definição dos produtos sujeitos ao regime de substituição tributária será precedida de consultas à Federação das Indústrias do Estado de São Paulo - FIESP, à Federação do Comércio do Estado de São Paulo - FECOMERCIO, à Associação Comercial de São Paulo - ACSP, à Associação Paulista de Supermercados - APAS e a outras entidades representativas dos setores econômicos afetados, a critério da Secretaria da Fazenda, e levará em conta fatores como a concentração de produção, dispersão de comercialização, particularidades das cadeias de produção e distribuição e tratamento auferido em outras unidades da Federação.

Destaque-se que a exigência legal de consulta às entidades somente tornou-se norma positivada em São Paulo tempos depois de o Governo ter incluído na sistemática da substituição tributária quase que a totalidade das operações de circulação de mercadorias e serviços sujeitas à incidência do ICMS.

Uma das polêmicas envolvendo a substituição tributária “para frente” – a alegada ofensa ao princípio da vedação aos tributos com efeito de confisco – repousa na base de cálculo do ICMS apurado quando a circulação da mercadoria ou serviço estiver sujeita a este regime. A transcrição a seguir é longa, mas nos ajuda a entender a complexidade advinda da fixação do critério quantitativo da regra matriz de incidência tributária quando da aplicação do instituto da substituição tributária com responsabilidade por fato futuro. Vejamos, então, o que traz a Lei Complementar nº 87 de 96 a respeito disso:

Art. 8º A base de cálculo, para fins de substituição tributária, será:

[...]

II - em relação às operações ou prestações subseqüentes, obtida pelo somatório das parcelas seguintes:

a) o valor da operação ou prestação própria realizada pelo substituto tributário ou pelo substituído intermediário;

b) o montante dos valores de seguro, de frete e de outros encargos cobrados ou transferíveis aos adquirentes ou tomadores de serviço;

c) a margem de valor agregado, inclusive lucro, relativa às operações ou prestações subseqüentes.[grifo meu]

§ 2º Tratando-se de mercadoria ou serviço cujo preço final a consumidor, único ou máximo, seja fixado por órgão público competente, a base de cálculo do imposto, para fins de substituição tributária, é o referido preço por ele estabelecido.

§ 3º Existindo preço final a consumidor sugerido pelo fabricante ou importador, poderá a lei estabelecer como base de cálculo este preço.

§ 4º A margem a que se refere a alínea c do inciso II do caput será estabelecida com base em preços usualmente praticados no mercado considerado, obtidos por levantamento, ainda que por amostragem ou através de informações e outros elementos fornecidos por entidades representativas dos respectivos setores, adotando-se a média ponderada dos preços coletados, devendo os critérios para sua fixação ser previstos em lei. [grifo meu]

§ 5º O imposto a ser pago por substituição tributária, na hipótese do inciso II do caput, corresponderá à diferença entre o valor resultante da aplicação da alíquota prevista para as operações ou prestações internas do Estado de destino sobre a respectiva base de cálculo e o valor do imposto devido pela operação ou prestação própria do substituto.

§ 6o Em substituição ao disposto no inciso II do caput, a base de cálculo em relação às operações ou prestações subseqüentes poderá ser o preço a consumidor final usualmente praticado no mercado considerado, relativamente ao serviço, à mercadoria ou sua similar, em condições de livre concorrência, adotando-se para sua apuração as regras estabelecidas no § 4o deste artigo. (Redação dada pela Lcp 114, de 16/12/2002)

Da leitura dos dispositivos, vê-se que a base de cálculo do ICMS na substituição tributária devido em relação às operações subseqüentes é estabelecida levando-se em conta presumidamente o valor atribuído à operação que será realizada, por exemplo, entre varejista e consumidor. Tal valor poderá ser estabelecido com base em fixação de: a) preço único ou máximo de venda, pelo órgão público competente, b) preço sugerido ao consumidor pelo fabricante ou importador, ou ainda, c) margem de valor agregado a ser calculada sobre o próprio valor da operação, modalidade mais freqüente. Assim, o valor da base de cálculo do ICMS devido por substituição será correspondente ao preço único ou máximo de venda, preço final ao consumidor ou ao seguinte cálculo, conforme nos ensina José Roberto Rosa[63]:

VALOR PRATICADO PELO SUJEITO PASSIVO POR SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA

(+) FRETE, CARRETO, SEGURO, IMPOSTOS E OUTROS ENCARGOS TRANSFERÍVEIS AO ADQUIRENTE;

(+) VALOR ADICIONADO, CALCULADO MULTIPLICANDO-SE O PREÇO PRATICADO PELO ÍNDICE DE VALOR ADICIONADO SETORIAL (margem de valor agregado)

Exemplifiquemos imaginando, por hipótese, um produto cujo preço de venda do industrial, substituto tributário, para o varejo, substituído, fosse de R$ 100,00 e sob o qual incidisse uma alíquota de 18% em operação sem substituição tributária. Adicionemos R$ 10,00 de custos com frete, carreto, seguro, outros impostos e encargos. Imaginemos ainda que fosse fixada uma margem de valor agregado para este produto de 50%. Temos, então:

1) Base de cálculo da chamada “operação própria”, aquela em que não haveria aplicação da substituição tributária: soma-se o preço de venda do industrial para o varejo (R$ 100,00) e os encargos (R$ 10,00), obtendo como resultado o equivalente a R$ 110,00;

2) O valor do ICMS devido na venda do industrial para o varejista: aplica-se a alíquota de 18% sobre a base de cálculo anteriormente obtida (R$ 110,00), resultando no equivalente a R$19,80.

3) Base de cálculo da operação com substituição tributária: soma-se o valor da base de cálculo da operação própria (R$ 110,00) ao resultado obtido na multiplicação desta base de cálculo com a margem de valor agregado de 50%: R$ 110 + (R$ 110,0 x 50%) = R$ 165,00.

4) O valor do ICMS a ser recolhido por antecipação a título de substituição tributária: multiplica-se a alíquota de 18% sobre a base de cálculo anteriormente descrita (R$ 165,00), diminuindo-se deste valor o ICMS devido na operação própria (R$ 19,80): (R$ 165,00 x 18%) – R$ 19,80 = R$ 9,90.

5) Valor total da nota fiscal: temos que o ICMS embutido no valor da mercadoria na operação sem substituição tributária entre industrial e varejista é de R$ 19,80. Na operação na qual se aplica a substituição tributária, o ICMS é de R$ 9,90. Assim, o valor total da nota fiscal emitida pelo industrial será: R$ 110,00 + R$ 9,90 = R$ 119,90.

6.2O FATO GERADOR PRESUMIDO E EVENTUAL OFENSA A PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO TRIBUTÁRIO DA LEGALIDADE E DA VEDAÇÃO AO EFEITO DE CONFISCO

Sabemos que, pela sistemática em comento, os Estados exigem o pagamento do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias no início da cadeia mercantil por conveniência, agilidade e economia na tarefa de arrecadação. A substituição tributária progressiva, no entanto, foi e ainda é objeto de fortes críticas por parte de parcela considerável da doutrina, pois, além de exigir o pagamento do tributo antes da ocorrência do fato gerador, o quantum a pagar, como visto, não é calculado em função da dimensão econômica efetiva da operação, e sim de uma base estimada, em tese, sujeita a distorções.

O §7º do artigo 150 da Constituição Federal fala em “fato gerador presumido” sem, contudo, defini-lo. Presumir, pelo que se depreende da leitura dos dicionários, dentre alguns de seus significados, é o mesmo que supor antecipadamente, prever, pressupor. A doutrina do Direito nos ensina que as presunções podem ser legais, quando definidas em lei, ou humanas, quando se originam do raciocínio do homem. Luciano Amaro diz que “as presunções legais, como as humanas, extraem de um fato conhecido, fatos ou conseqüências prováveis, que se reputam verdadeiros, dada a probabilidade de que realmente o sejam”[64]. As presunções legais são divididas pela doutrina em relativas (juris tantum) e absolutas (juris et de jure). As primeiras são passíveis de serem ilididas por prova em contrário, enquanto as segundas, não.

Carrazza, ao criticar a substituição tributária “para frente”, por vezes iguala o termo “fato gerador presumido” a “fato futuro”, cuja ocorrência, do que se entende por “futuro”, é incerta. O iminente tributarista chega a sugerir similitude entre “fato gerador presumido” e “fato imaginário”, definido por ele como o “que ainda não aconteceu (mesmo que, depois, ele realmente aconteça)”[65]. Kyoshi Harada, por seu turno, ressalta que “fato gerador presumido não se confunde com fato gerador fictício. Aquele está no mundo da probabilidade e este, no mundo da fantasia, do imaginário”[66]. A delimitação do alcance do fato gerador presumido é de suma importância para compreendermos a natureza dos questionamentos feitos em relação à constitucionalidade do instituto da substituição tributária das operações subseqüentes.

O primeiro deles é com relação à própria possibilidade de se exigir o pagamento de um tributo de maneira antecipada, em eventual lesão ao princípio da legalidade. Carrazza reputa “absurda” a figura da responsabilidade tributária por fato futuro e diz que “a denominada substituição tributária ´para frente´ é um falso problema de substituição, pois, nela, o legislador exige tributo sobre fato que ainda não ocorreu”[67] e atenta contra os limites constitucionais do poder de tributar:

Ora, a Constituição veda a tributação baseada em fatos de provável ocorrência. Para que o mecanismo da substituição venha adequadamente utilizado é preciso que se estribe em fatos concretamente ocorridos; nunca em fatos futuros, de ocorrência incerta. Esta é uma barreira inconstitucional inafastável, pois integra o conjunto de direitos e garantias que a Lei Maior confere ao contribuinte. É ela que – sistematicamente interpretada – não admite que haja a chamada substituição tributária “para frente”.[68]

Em artigo, Ives Gandra da Silva Martins comenta a redação do §7º do art. 150 da CF:

A falta de cuidado do constituinte foi absoluta. Poderia ter colocado essa norma entre os princípios gerais, ao enunciar as espécies tributárias. Decidiu, contudo, ironicamente, colocá-la naquela seção dedicada às “limitações constitucionais ao poder de tributar”, como que afirmando, paradoxalmente, que a melhor forma de limitar o poder de tributar, é aumentá-lo.

À evidência esse tipo de substituição tributária não se enquadra no conceito de “limitação ao poder de tributar”, mas configura um considerável alargamento deste poder, em detrimento das garantias do contribuinte. A lógica saiu consideravelmente maculada, no texto constitucional. Neste particular, Konrad Hesse, em célebre comentário, tinha razão: “A necessidade não conhece princípios”[69].

Em outro texto, elaborado ainda no calor das discussões após a aprovação da Emenda 3/93, o jurista supracitado confronta diretamente o instituto da substituição tributária “para frente” e o princípio da legalidade.

Ora, o artigo 150 principia seu discurso com a locução “sem prejuízo de outras garantias asseguradas” e acrescenta “é vedado a ... I. exigir ou aumentar tributo sem que a lei o estabeleça”. O princípio da legalidade tributária, portanto, é acrescentado ao princípio da legalidade geral, mencionado no artigo 5º, inciso II. É uma legalidade estrita, em que a presunção absoluta ou ficção jurídica impositiva não se sustentam.

Ocorre que o § 7º cria uma ficção de legalidade. Considera devido um tributo que não existe, pois a realidade econômica sobre a qual incidiria ainda não foi gerada. É um tributo sem fato gerador. Uma exigência sem operação. E, portanto, uma ficção tributária, uma imposição spielberguiana.

O próprio constituinte, que redigiu o princípio da estrita legalidade consagrado no artigo 150, inciso I, ao criar um tributo sobre fato gerador inexistente, em gesto de indiscutível humildade, mas de poucas luzes científicas, declara que esta imposição realmente não tem base de cálculo ocorrida e, na eventualidade de não se realizar no futuro aquele fato inexistente no presente, o tributo, que não era tributo e nunca será tributo, deverá ser devolvido. Reconhece, pois, que a exigência da imposição não tem qualquer sustentação e é apenas uma expectativa de ocorrência. É, pois, uma ficção e não uma presunção. Pode ser um prognóstico, mas não é uma presunção.

Considera que o tributo é devido, mas não tem certeza se o fato gerador ocorrerá e, se não ocorrer, haverá a repetição do indébito.

Neste reconhecimento reside sua indiscutível humildade.[70]

Geraldo Ataliba acrescentou:

[...] se, de um modo geral, as leis civis, comerciais, administrativas, podem prudentemente estabelecer presunções e ficções, a Constituição veda que isso seja feito em matéria penal e tributária (nullum crimem, nulum tributum sine lege). Isto integra o art. 5º e está protegido pelo § 4º do artigo 60. Além do mais, o § 1º do art. 145 – mero desdobramento do art. 5º, I, e por isso expletivo – refere-se a “capacidade econômica” como critério de tratamento igual dos contribuintes. Ora, essa “capacidade econômica”, atribuível a cada contribuinte, em cada caso, revela-se e realiza-se pela exigência de que todo fato tributável tenha conteúdo econômico mensurável. Ora, esse conteúdo há de ser real, efetivo, comprovado, concreto. Não pode ser presumido. Não pode resultar de ficção, do mesmo modo que não se pode punir alguém por crime não cometido.[71]

Em sentido contrário, o ministro do Superior Tribunal de Justiça Antonio de Pádua Ribeiro defende que o instituto da substituição tributária “para frente” não ofende princípios constitucionais. E mais: deve ser analisado sob o prisma do princípio da “praticabilidade” ou praticidade da tributação:

Na verdade, sob o prisma radical ortodoxo, não é possível visualizar o instituto, fundamental para tornar efetivo, no atual estágio da civilização, o princípio da praticabilidade da tributação, algo parecido, no campo do processo, com o princípio da economia processual, segundo lembra Sacha Calmon. Acrescento mais: da mesma forma que o Direito processual passa por verdadeira revolução visando a concretizar o princípio da efetividade da jurisdição, com a criação de diversos institutos novos (ampliação das cautelares e antecipação de tutela, dentre outros), o Direito Tributário não pode passar imune a essa evolução da sociedade, deixando de acolher a figura da substituição tributária para frente, que, numa visão analógica, apresenta certo caráter cautelar: objetiva tornar efetiva a responsabilidade tributária. Note-se que o destinatário legal tributário, como o substituto, tem sempre assegurada a possibilidade de recuperar o que despender para pagamento do tributo gerado por outrem.[72]

E conclui:

A “substituição tributária para frente” constitui instituto consagrado pelo nosso Direito, que, antes mesmo da vigência da atual Constituição, teve a sua compatibilidade com a Lei das Leis reconhecida pelo Excelso Pretório. A sua adoção constitui exigência da sociedade moderna, visando à aplicação do princípio da praticabilidade da tributação. Apóia-se, aqui e alhures, em dois valores básicos: necessidade de evitar a evasão fiscal (segurança fiscal) e de assegurar recursos com alto grau de previsão e praticabilidade (certeza fiscal).[73]

Marco Aurélio Grecco também não vê incompatibilidade constitucional na substituição tributária “para frente”, não obstante ressaltando a necessidade de se balizar tal instituto com as garantias do contribuinte e a necessidade de arrecadação por parte do Estado:

[...] a mais moderna doutrina do Direito Tributário nacional e estrangeiro sustenta sua validade. As dificuldades que sua interpretação e análise ensejam, ao invés de conduzirem a inconstitucionalidade, propõem, isto sim, um desafio para todos os aplicadores do Direito tributário, qual seja o de identificar os seus contornos e limites em função das peculiaridades de cada tributo e realidade econômica ou jurídica por ele atingida.[74]

A jurisprudência abastece o debate de maneira substancial. No ano de 1994, em julgamento do Recurso Especial 37.361-1/SP, a questão da afronta ao princípio da legalidade estrita na substituição tributária “para frente” foi levada à análise do Superior Tribunal de Justiça. No julgado em questão, objetivava a recorrente, Fazenda Pública do Estado de São Paulo, o cumprimento dos dispositivos previstos nos Convênios 66 de 1988 e 107 de 1989, que regulavam o instituto antes do advento da Lei Complementar 87/96, em face de uma empresa revendedora de veículos. O voto do então ministro relator Cesar Asfor Rocha, da 1ª Turma do STJ, ilumina a discussão, pois, além de ter reconhecido a legitimidade do substituído para discutir o pagamento antecipado do ICMS, negou provimento ao recurso:

Ora a teor da norma contida no art. 155, I, ‘b’, da Constituição Federal, a saída da mercadoria representa o aspecto temporal da hipótese de incidência do ICMS, pelo que, enquanto não tiver sido realizada tal ocorrência não estará configurado o fato gerador do tributo (o fato imponível) e, conseqüentemente, não terá nascido a obrigação tributária e nenhum tributo será devido nem poderá ser exigido. Com efeito, essa antecipação atenta e viola o princípio constitucional da tipicidade tributária, pois representa uma exigência feita antes de concretizado o fato desencadeador do nascimento da obrigação tributária.

Por outro lado, a base de cálculo do ICMS é o valor da operação.

No caso em exame, contudo, pretende-se estabelecer a base de cálculo como sendo o valor da tabela e não o valor da operação.

É inquestionável que há hipótese em que a base de cálculo pode ser arbitrada, conforme o editado pelo artigo 148 do CTN.

No entanto, o caso em exame refoge às inteiras hipóteses previstas naquele indicado dispositivo, visto ser possível a determinação do valor da operação, sob pena de ferir de morte o disposto no art. 2º, I, do Decreto-lei nº 406/68.

Daí porque irregular a utilização da tabela quando a operação comporta cômoda quantificação.

O assunto chegou ao Supremo Tribunal Federal. No Recurso Extraordinário 213.396/SP, julgado em sessão plenária no dia 2 de agosto de 1999, foi suscitada a eventual inconstitucionalidade da substituição tributária progressiva no comércio de veículos novos, regulada no Estado de São Paulo, então, pela Lei 6.374 de 1989. Ao discorrer sobre a alegada ofensa ao princípio da legalidade, segundo o qual não seria possível exigir tributo antes da ocorrência do fato gerador, o relator, ministro Ilmar Galvão, apoiado principalmente nas lições de Marco Aurélio Greco, entendeu que a antecipação do cumprimento da obrigação estava respaldada em critérios que permitiam auferir, com margem de segurança considerável, que o fato tido como presumido haveria de ocorrer efetivamente. Vejamos quais são estes critérios:

De qualquer modo, sublinhe-se que a criação do modelo da antecipação e a escolha, pelo legislador, da fase preliminar não pode ser aleatória nem arbitrária; a escolha só pode recair em eventos que apresentem, no plano fático, algum tipo de vinculação com o fato tributável a ocorrer posteriormente, e em determinado grau que permita prever, com razoável certeza, sua ocorrência (elemento adequação) e na dimensão então prevista (elemento proporcionalidade ou proibição do excesso).

O primeiro consiste em verificar se aquele evento que foi considerado como fase preliminar para fins de antecipação atende ao requisito da necessidade em relação ao evento final (fato gerador); a fase preliminar será necessária se, inexistindo esta, não existirá o fato “gerador”.  Note-se que a relação a ser perquirida não é uma relação de causalidade entre ambas, por isso que o requisito a ser verificado é da “necessidade” e não da “suficiência”, ou seja, a fase não deixará de ser preliminar e não perderá sua condição de servir para acarretar o recolhimento antecipado, pela circunstância de não ser suficiente (bastante em si) para acarretar o fato final. Ainda que outros elementos devam ser agregados para a ocorrência do fato “gerador”, o elemento “necessidade” estará atendido com os requisitos acima.

O segundo consiste na verificação de adequação acima mencionada e por ele caberá verificar se aquele evento que se reputa preliminar já apresenta elementos que permitem prever com certo grau de certeza o evento final (o fato “gerador”). É o que se encontra dentro do tempo presumido, utilizado pelo constituinte no § 7º examinado.

O terceiro é o conceito de proporcionalidade ou proibição do excesso, segundo o qual a dimensão pecuniária imposta no momento da antecipação deve ser proporcional à dimensão que resultaria da ocorrência do fato tributável. Daí, em certas legislações, pesquisas de mercado etc. como instrumentos para esta aferição que permita manter a proporcionalidade. E a proibição do excesso corresponde à cláusula explícita de devolução do valor recebido a maior.[75]  

No caso em tela, Ilmar Galvão estabeleceu em seu voto o seguinte a respeito do que seja o fato gerador presumido:

Com efeito, trata-se de fato econômico que constitui verdadeira etapa preliminar do fato tributável (a venda do veículo ao consumidor final), que o tem por pressuposto necessário; o qual, por sua vez, é possível prever, com quase absoluta margem de segurança, uma vez que nenhum outro destino, a rigor, pode estar reservado aos veículos que saem dos pátios das montadoras, senão a revenda aos adquirentes finais; sendo, por fim, perfeitamente previsível, porque objeto de tabela fornecida pelo fabricante, o preço a ser exigido na operação final, circunstância que praticamente elimina a hipótese de excessos tributários.[76]

Discutido o tema da legalidade, surge outro aspecto da norma a ser analisado: a questão da devolução do imposto no caso da não ocorrência do fato gerador presumido, como descrito na segunda parte do §7º do artigo 150 da CF. Analisemos, portanto, o que o legislador quis dizer ao assegurar “a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido”.

A Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, no parecer nº 2055 datado de 3 de dezembro de 1996, entendeu literalmente que a restituição aludida no dispositivo constitucional somente seria devida em caso de não ocorrência do fato gerador, vale dizer, do fato gerador “in concreto” – aquele com base no plano fenomênico. E mais: haveria direito à restituição do imposto pago a maior unicamente se o pagamento antecipado ocorresse sobre valor superior à base de cálculo fixada em lei, ou seja, aquela constante do art.8º da Lei Complementar 87/96. Com base em tal interpretação, 23 Estados membros da Federação celebraram o convênio n° 13/97 sobre o ICMS no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária estabelecendo que:

Cláusula primeira: A restituição do ICMS, quando cobrado sob a modalidade da substituição tributária, se efetivará quando não ocorrer operação ou prestação subseqüentes à cobrança do mencionado imposto, ou forem as mesmas não tributadas ou não alcançadas pela substituição tributária.

Cláusula segunda: Não caberá a restituição ou cobrança complementar do ICMS quando a operação ou prestação subseqüente à cobrança do imposto, sob a modalidade da substituição tributária, se realizar com valor inferior ou superior àquele estabelecido com base no artigo 8º da Lei Complementar 87, de 13 de setembro de 1996.

Observemos, portanto, que, para os Estados celebrantes do convênio, a não ocorrência no plano fático daquilo que era tido pela norma como presumido seria capaz de ensejar a restituição. Porém, a ocorrência, digamos, parcial, no plano fático do que outrora era dito presumido seria incapaz de tanto. Imposto pago sob base de cálculo estabelecida nos termos do art.8º da LC 87/96, ainda que, na operação subseqüente, a venda da mercadoria do varejista ao consumidor final se desse em valor menor ou maior, não haveria de ser restituído ou cobrado por parte do Fisco, mas apenas e tão somente se a venda, no exemplo dado, não ocorresse.

Boa parcela da doutrina combate este pensamento.

A partir da leitura da segunda parte do art.150, §7º, CF, Sacha Calmon Navarro Coêlho entende que, por prever devolução, apenas aos impostos sobre circulação, plurifásicos, se aplicaria o instituto da substituição tributária “para frente”, excluindo de sua abrangência os impostos sobre a renda e a propriedade, posto que impossível a sua imediata e preferencial restituição nestes tipos de imposto. O autor evolui no debate, demonstrando que, à vista do princípio da não-cumulatividade do ICMS – em que pese não tratarmos deste nesta monografia –, a possibilidade de a base de cálculo estimada pelo Fisco ser maior do que o valor real da operação mercantil representaria outra flagrante inconstitucionalidade. O doutrinador, então, afirma que o dispositivo contraria, também, o inciso IV do art.150 da CF, que veda a utilização de tributo com efeito de confisco:

Ora, o recebimento pelo Estado de valores a título de ICMS, acima das bases de cálculo reais, i.e., não correspondentes aos preços reais praticados pelos contribuintes, caracteriza confisco tributário e enseja a sua imediata restituição, por força da própria Constituição [...].

Quando o poder constituinte derivado permitiu, mediante a Emenda nº 3 à Constituição de 1988, a “substituição tributária para frente”, condicionou a sua prática a que, em não se realizando a operação ou fosse esta realizada por valor inferior ao real, se restituísse de modo imediato e preferencial a quantia paga em excesso. Onde há poder, há também limitação. [77]

Do mesmo pensamento compartilha Roque Antonio Carraza, para quem a inexistência do dever de devolução, ainda que a operação final ocorra em montante inferior ao estimado, constitui “excesso de arrecadação” equivalente à não realização do fato gerador presumido e, por isso, devendo ensejar a “imediata e preferencial restituição da quantia paga”, sob pena de configurar confisco[78]. Ao contrário do que foi compreendido no parecer citado anteriormente e do Convênio n° 13/97, para o eminente jurista, a interpretação do que seja a “não-realização do fato gerador presumido” não haveria de ser literal, devendo compreender a sua integral não-realização e a sua não-realização parcial, vale dizer, quando a operação final se der em montante inferior ao da base estimada pelo Fisco. Não trata o autor, porém, da hipótese de o montante ser superior.

A questão foi objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1851-4/AL movida pela Confederação Nacional do Comércio em face do disposto na cláusula segunda do Convênio ICMS 13/97 supracitado e de decreto editado pelo governo alagoano regulamentando a previsão normativa elaborada no âmbito do Confaz. Em sede de liminar, o ministro relator Ilmar Galvão entendeu que o texto do artigo 150, § 7º, da CF, não poderia ser interpretado de maneira literal, porém, quando do julgamento da referida Adin em plenário, houve uma inflexão: o voto do ilustre relator foi proferido no sentido de declarar a constitucionalidade da cláusula segunda do Convênio ICMS nº 13/97:

O fato gerador do ICMS e a respectiva base de cálculo, em regime de substituição tributária, de outra parte, conquanto presumidos, não se revestem de caráter de provisoriedade, sendo de ser considerados definitivos, salvo se, eventualmente, não vier a realizar-se o fato gerador presumido. Assim, que não há falar em tributo pago a maior ou a menor, em face do preço pago pelo consumidor final do produto ou do serviço, para fim de compensação ou ressarcimento, quer de parte do Fisco, quer de parte do contribuinte substituído. Se a base de cálculo é previamente definida em lei, não resta nenhum interesse jurídico em apurar se correspondeu ela à realidade.

Por isso mesmo, a salvaguarda estabelecida na Constituição [...] é restrita à hipótese de não vir a ocorrer o fato gerador presumido.

Admitir o contrário valeria pela inviabilização do próprio instituto da substituição tributária progressiva, visto que implicaria o retorno ao regime de apuração mensal do tributo e, consequentemente, o abandono de um instrumento de caráter eminentemente prático, porque capaz de viabilizar a tributação de setores de difícil fiscalização e arrecadação.

Acompanharam o iminente relator os então ministros Moreira Alves, Sydney Sanches, Maurício Corrêa e Sepúlveda Pertence. Em sentido oposto, votaram Celso de Mello, Carlos Velloso e Marco Aurélio Mello, manifestação da qual um trecho aqui destacamos:

[...] para mim, é muito sintomático que os Estados queiram manter um preceito que veda, inclusive, a diferença de tributo, que veda a possibilidade de eles próprios buscarem diferenças não no campo da simples presunção – presunção que, segundo o vernáculo, tem-se como temporária –, mas no da realidade. Isto porque há parâmetros ditados unilateralmente. Porque dificilmente teremos uma hipótese em que o valor presumido ficará aquém daquele resultante do fato gerador. Assusta-me, sobremaneira, o enriquecimento sem causa, considerado este embate contribuinte - Estado.

Parcela considerável da doutrina lamenta o entendimento final do Supremo no caso em tela. Sacha Calmon Navarro Coêlho escreve: “O desastre, contudo, está completo. O STF decidiu que o preço “pautado” pelo fabricante é definitivo mesmo que a venda final tenha sido por valor menor. Trata-se de confisco”[79].

Hugo de Brito Machado destaca: “Admitir que o valor antecipado é definitivo implica restabelecer a antiga pauta fiscal, há muito repelida pelo STF”. E complementa:

E, já que o STF reformou a Constituição e implantou o ICMS monofásico, resta ao contribuinte lutar para que se estabeleça um critério legal objetivo de definição de sua base de cálculo, para não ficar submetido ao arbítrio das autoridades fazendárias nessa definição.[80]

Embora a Suprema Corte tenha se pronunciado nos dois julgados em favor da constitucionalidade do instituto da substituição tributária, o tema ainda não se esgotou e carece de análise pelos ministros integrantes. Isto porque Estados não signatários do Convênio ICMS 13/97 editaram leis dispondo sobre substituição tributária que previam a restituição do imposto caso o fato imponível ocorresse em valor menor do que o presumido. Após a manifestação do STF, os Governadores dos Estados de Pernambuco e São Paulo moveram as Adins 2675/PE, então de relatoria do ministro Carlos Veloso, hoje tendo como relator o ministro Ricardo Lewandowski, e 2777/SP buscando a declaração da inconstitucionalidade destas leis estaduais.

A argumentação destas ações se fixou na inteligência de que a decisão do Supremo Tribunal Federal na Adin 1851/AL produziu efeitos vinculantes, impedindo que normas que interpretassem a substituição tributária em sentido contrário tivessem validade, posto que ofensivas à Constituição Federal. Baseou-se, além disso, no entendimento de que, por não ser permitida pela Lei Maior, a restituição teria natureza de benefício fiscal, devendo ser concedida apenas por acordo entre Estados no Confaz.

Quanto à Adin 2675/PE, o então relator ministro Carlos Velloso se manifestou no sentido de que “na hipótese de a operação realizar-se em valor inferior àquele presumido, deve ser devolvida ao contribuinte a quantia recolhida a maior, sob pena de enriquecimento ilícito do Estado”[81]. Nesse mesmo diapasão, Cezar Peluso, então relator da Adin 2777/SP, processo hoje sob relatoria do ilustre ministro Gilmar Mendes, compreendeu que o Estado deveria restituir o imposto pago a maior, sob pena de violação ao princípio que impede a instituição de tributo com efeito de confisco.

Poder-se-ia discutir o motivo de o STF vir a se pronunciar sobre os contornos da substituição tributária já o tendo feito em sede de controle concentrado de constitucionalidade. Ocorre que, como evidenciado no voto do ilustre ministro Peluso, o objeto da Adin 1851/AL era diferente dos objetos das Adins 2675/PE e 2777/SP. A diferença básica é que a Corte havia entendido que o primeiro versava sobre regime facultativo de substituição tributária, enquanto que, no segundo e no terceiro casos, os regimes eram cogentes. Em miúdos, o Supremo havia se manifestado no sentido de que o artigo 150, § 7º, da CF, não obrigava os Estados a restituírem o imposto pago a maior, mas também não vedava que dispositivos legais o fizessem.  Asseverou o nobre ministro Peluso em seu voto:

[...]21. A cláusula de devolução prevista no art. 150, § 7º (“assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido”), [...], postula e supõe a provisoriedade do recolhimento antecipado.

Afirmar que o fato gerador presumido seria definitivo e admitir a devolução quando não se realize o fato gerador presumido, como se sustentou na ADI 1851, é coisa, além de inconciliável com todo o sistema constitucional tributário, contraditória em termos lógicos.

E a contradição reside na incompatibilidade entre as duas proposições daquela afirmação, porque, se o fato gerador presumido é definitivo, não se pode admitir devolução, quando o fato legitimante não se realize; se haverá obrigação de devolver, quando não vier a realizar-se o fato gerador presumido, então é forçoso reconhecer que a presunção não é absoluta, ou seja, que o fator gerador presumido não é definitivo. Se a Constituição Federal contempla e espera, no art. 150, § 7º, que o fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurando a “imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador  presumido”, é porque tomou a presunção como probabilidade, que pode, ou não, atualizar-se, e, em não se atualizando, importará a obrigação de restituição do indevido. Está aí a prova ad rem do caráter relativo da presunção e, pois, da provisoriedade do fato gerador presumido.

22. Mas, no raciocínio contrário, há outro vício lógico-jurídico, de não menor clareza. É que, a ter como irrecusável que o art. 150, § 7º, obrigou expressamente o sujeito ativo a restituir ao passivo a quantia recolhida a maior, mas apenas caso não ocorra, em sua totalidade, o fato gerador presumido, por não ter fundamento legítimo para se apropriar do que é como tal indevido, é irrecusável admitir que, de maneira implícita, também o obriga à mesma devolução, quando o fato gerador definitivo sobrevenha com valor menor do que o preestabelecido.

É postulado básico da lógica de continência que “quem deve o mais, deve o menos”, pela razão óbvia de que este está incluído naquele.[82]

As referidas ações, porém, tiveram seus julgamentos sobrestados pelo plenário da Corte Máxima após o reconhecimento da repercussão geral do Recurso Extraordinário 593.849, de relatoria do ministro Ricardo Lewandowski, a fim de aguardar a análise deste processo. O debate, portanto, segue.

7.CONCLUSÃO

Este trabalho procurou estabelecer um confronto entre o instituto da substituição tributária “para frente” com os princípios constitucionais do Direito Tributário da legalidade e da vedação aos tributos com efeito de confisco. De início, procedemos à delimitação dos postulados que informam este ramo do Direito, de modo a evidenciar ao leitor que a atividade fiscal deve ser balizada pelas garantias dadas pela Carta Magna ao contribuinte.

Em seguida, exploramos as noções de “tributo”, “obrigação tributária” e “fato gerador”, no sentido de expor o que diz o preceito legal e as definições trazidas pela doutrina. Tratamos dos sujeitos da obrigação tributária, com destaque para os contornos da sujeição passiva, sua acepção legal e embates doutrinários acerca do tema.

Demos início à discussão mais específica sobre o fenômeno da substituição tributária: em que consiste, seu alcance, as razões de sua adoção e suas modalidades.

Chegamos, enfim, ao tema da substituição tributária com responsabilidade por “fato futuro”. Procedemos a uma breve exposição histórica a respeito do assunto, tratando, a seguir, do chamado “fato gerador presumido”. Embora tenhamos buscado na doutrina e na jurisprudência conceitos que amparassem nosso estudo, nos pareceu patente que o termo ainda carece de um olhar mais detido por parte de autores sobre seu significado. Necessário que afastemos a já estudada confusão entre o que seja o fato gerador “in concreto”, o fato imponível, que tem base no plano fenomênico, e o fato gerador “in abstrato”, a descrição legal, a hipótese de incidência. O “fato gerador presumido” mencionado no dispositivo constitucional refere-se, pelo que entendemos – com o perdão da aparente incoerência – a um “fato imponível antecipado”, a um fato gerador “in concreto” que ainda não se concretizou, e não à descrição abstrata do fato de provável ocorrência passível de vincular os sujeitos da relação jurídica tributária. Esta última, por suas características, não é presumida, mas resultado da atividade do legislador, sendo, portanto, norma posta e, por assim dizer, definitiva.

Entende parte importante da doutrina se tratar a substituição tributária “para frente” de instituto contrário à melhor interpretação do texto constitucional por violar direito e garantia fundamental do contribuinte de ser tributado apenas quanto a fatos imponíveis que efetivamente ocorreram no campo fenomênico. Já a interpretação da Corte Superior, pelo menos até o presente momento, privilegia o entendimento de que, tendo sido opção legislativa do constituinte derivado, a substituição tributária com a antecipação do tributo beneficia o Estado e, por consequência, a coletividade, com a redução dos custos da fiscalização –  dispendiosos que são –  e o combate à sonegação fiscal, elevando a arrecadação.

Quanto à questão da legalidade e, mais precisamente, da tipicidade tributária, em face da substituição tributária “para frente”, em que pese o registro de que tal instituto vem sendo adotado há tempos pelo Estado e que, hoje, esteja insculpido na Constituição Federal, o fato de ainda ser objeto de ações em tramitação na Justiça mostra que a discussão não terminou e o entendimento em torno de sua legalidade está longe de ser unânime. O mesmo ocorre no que tange à eventual ofensa ao princípio da vedação à instituição de tributos com efeito de confisco. As dúvidas haverão de ser dirimidas, pelo menos em termos práticos, com o julgamento dos feitos atualmente sobrestados pelo Pretório Excelso. Alinhamo-nos no sentido de que o mecanismo da substituição tributária “para frente” fere os ditames constitucionais. Ressaltamos, porém, que o aparato fiscal montado com base neste instituo se encontra, atualmente, em pleno funcionamento, tendo se tornado instrumento imprescindível de arrecadação para os Fiscos estaduais, notadamente.

Sobre o autor
Hugo Vítor Vecchiato

Advogado pós-graduando em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas. Bacharel em Direito pela FMU em São Paulo. Jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero. Repórter da Rádio Bandeirantes de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VECCHIATO, Hugo Vítor. Substituição tributária "para frente":: uma análise do fato gerador presumido à luz dos princípios da legalidade e da vedação ao confisco. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4293, 3 abr. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33136. Acesso em: 5 nov. 2024.

Mais informações

Monografia elaborada como trabalho de conclusão do curso de Direito do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas de São Paulo.

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