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Argüição de descumprimento de preceito fundamental:

um estudo crítico

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Agenda 01/11/2002 às 00:00

4. HIPÓTESES DE CABIMENTO

De acordo com o art. 1º da Lei n.º 9.882/99, será possível manejar a ADPF em três hipóteses bem distintas, quais sejam:

1.Evitar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do poder público (argüição preventiva);

2.Reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do poder público (argüição repressiva);

3.Quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição.

Devido a essa regulamentação e extensa ampliação das atribuições do STF, muitos doutrinadores já salientam que nossa Corte passará a ocupar a verdadeira posição de guardiã da Constituição pois, além de exercer as diversas funções que já lhe são cabíveis, passará a proteger, digamos assim, também todos os preceitos constitucionais fundamentais decorrentes da Constituição Federal que, para estes estudiosos, ainda não estavam protegidos.

Em alguns países que detém instrumentos semelhantes para proteção de suas Cartas Constitucionais, como a Áustria e Alemanha, há prazo para interposição dos seus recursos, no primeiro o prazo é de 6 meses, a contar da prática do ato inconstitucional do poder público e, na Alemanha, o prazo é de 1 mês, a contar da violação dos direitos fundamentais, exceto quando o recurso foi utilizado para sanar lei ou ato especial do poder público contra o qual não se admita o controle judicial, neste caso o prazo será de 1 ano, a contar da entrada em vigor da lei ou da emissão do ato, é o que determina o art. 93 da Lei do Tribunal Constitucional deste país.

Para interposição da ADPF não, a legislação não previu a existência de nenhum prazo fatal para o seu ajuizamento.

Então, diante dessa delimitação do art. 1º, perguntar-se-ia, a ação direta de inconstitucionalidade não já é um instrumento utilizado para finalidades idênticas? Para o Doutor em Direito do Estado pela PUC/SP, André Ramos Tavares, não. Diz ele que a mera possibilidade de utilização de duas ações diversas, por si só, não têm força para obstar a utilização da argüição porque, defende ele, com a introdução da argüição desviam-se todos os descumprimentos de preceitos fundamentais da Constituição.

Já adiantamos um assunto, que será posteriormente mais bem detalhado, que é a aplicação residual da ADPF. Foi a partir destas elucubrações que se chegou ao entendimento de que se faria necessário encontrar um campo distinto para utilização da argüição e, quanto a isso, diz o professor André Tavares: "Ainda que reconhecidamente incompleto o sistema, nem por isso o instituto que aqui se estuda teria caráter residual, porque a compreensão da Carta Constitucional não oferece qualquer sinal para que assim fosse interpretada. De outra forma, por que não atribuir caráter residual à ação direita de inconstitucionalidade? Afinal, tanto esta quanto a argüição de descumprimento são formulações do mesmo poder constituinte e estão incorporadas a um mesmo documento, do que decorre sua idêntica estatura jurídica" [22] (a não se para aqueles que se filiam ao posicionamento de Otto Bachof e defendem a existência de uma hierarquia entre as normas constitucionais. [23])

Dentro do estudo deste artigo, encontramos doutrinadores, como André Tavares, que defendem a existência de dois tipos de arguição, quais sejam, a autônoma, como forma própria de ação (quando vale recordarmos a clássica noção apresentada por Eduardo Couture, segundo o qual a "ação constitui uma forma típica do direito constitucional de petição. Este é o gênero; a ação é a espécie." [24]) presente no caput do art. 1º, ora comentado, sendo aquela que se dará de forma direta e originariamente perante o Supremo Tribunal Federal, sem qualquer outro processo judicial anterior, pelos mesmos legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade e a argüição incidental, prevista no parágrafo único, inciso I da lei em comento, porque ocorreria paralela a um processo qualquer já instaurado, surgindo em função deste e, ao contrário da ação, o incidente teria um campo mais restrito pois, além de exigir o descumprimento de preceito fundamental, necessita que também haja uma relevante questão apresentada.

Fundamentando esta linha de raciocínio, André Tavares diz, opondo-se, portanto, ao entendimento de Bustamante (como veremos mais adiante) que a argüição incidental não realiza supressão das demais instâncias senão quanto a questão constitucional fundamental, fazendo-a "da mesma forma que seria realizada acaso fosse proposta uma argüição autônoma em relação aos demais processos em curso nos quais se estivesse discutindo a mesma questão levantada naquela ação.60 A solução do litígio individualmente apresentado seguirá o percurso processual comum, sem qualquer alteração. Apenas a questão constitucional que, lembre-se, é secundária nesses processos, será levantada em caráter principal perante o Supremo Tribunal Federal." [25]

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Já, em sentido oposto, Thomas da Rosa de Bustamante, contrapondo-se a este entendimento suso mencionado e fazendo ponderações acerca do posicionamento de Gilmar Ferreira Mendes, quando este último defende a argüição também como forma de incidente de inconstitucionalidade, diz " não se pode aceitar acriticamente todas as conclusões do eminente constitucionalista, uma vez que para transplantarmos um instituto processual alienígena é necessário enquadrá-lo corretamente dentro do ordenamento em que será inserido. Devemos cogitar, assim, dos riscos de rejeição.

É preciso esclarecer que a argüição de descumprimento de preceito fundamental não é um novo recurso constitucional, mas uma ação impugnativa de atos violadores da Constituição Federal, de cabimento subsidiário. Não faz as vezes de um recurso extraordinário admissível em primeira instância. Em conseqüência, a ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental não pode ser ajuizada no curso de um processo, para simplesmente "antecipar" o seu resultado final, suprimindo todas as instâncias que o legislador constituinte teve o cuidado de traçar." [26]

Assim, filiando-se ao posicionamento que admite a arguição como verdadeiro incidente de inconstitucionalidade teríamos ainda, dentre outros, Clèmerson Merlin Clève, Juliano Taveira Bernardes e Zeno Veloso.

Para os que defendem a existência da modalidade incidental de argüição, o parágrafo único que dispõe a esse respeito estaria completamente despido de significado porque não teria sentido a lei tratar da mesma hipótese em momentos distintos, podendo ser utilizada, a argüição incidental, toda vez que uma controvérsia com "relevante fundamento" se apresentasse em Juízo, corroborando com este entendimento o disposto no inciso V, do art. 3º da Lei em estudo porque utiliza a expressão "se for o caso", indicando que a comprovação da existência de controvérsia judicial impõe-se apenas para a argüição incidental, daí a eventualidade presente neste dispositivo.

Noutro sentido, Sylvio Motta, a esse respeito, posiciona-se de forma absolutamente diversa entendendo que "Ora, "se for o caso" quer significar que a comprovação da existência de controvérsia judicial relevante não é um requisito fundamental para a inépcia da petição inicial. Trata-se, antes, de mero coadjuvante de procedibilidade." [27]

O Juiz Federal Juliano Bernardes também se filia ao entendimento de André Tavares, encarando a argüição como instituto bivalente, ora revestindo-se de caráter processual autônomo, funcionando como verdadeira ação sumária e tendo por objeto "evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público" (caput do art. 1º da Lei 9.882/99), ora equivalendo-se a um incidente processual de inconstitucionalidade, cabível "quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição" (art. 1º, par. único, inciso I, da Lei 9.882/99).

Diz Juliano que com o veto ao inciso II do art. 2º da Lei 9.882/99, que permitia o ajuizamento da argüição a qualquer pessoa, sua propositura ficou reservada, exclusivamente, aos co-legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade (art. 2º, I, da Lei 9.882/99, c/c art. 103 da CF) e, no entanto, foi mantido o §1º do mesmo artigo que faculta a qualquer interessado, "mediante representação, solicitar a propositura de argüição de descumprimento de preceito fundamental ao Procurador-Geral da República, que, examinando os fundamentos jurídicos do pedido, decidirá do cabimento do seu ingresso em juízo.".

Completando esse raciocínio, Arnoldo Wald entende que o ajuizamento da argüição incidental promove uma verdadeira "cisão entre a questão constitucional e as demais suscitadas pelas partes" [28], cuja decisão final do STF vai culminar em implicações, uma de natureza endoprocessual, fazendo com que o deslinde da questão constitua antecedente lógico do julgamento da própria causa da qual surgiu o incidente e vinculando as partes e também o juízo ordinário e a outra com caráter extraprocessual, porque os efeitos da decisão do STF, por serem erga omnes, atingem inclusive aqueles que sequer participaram da relação processual.

Continuando com o estudo do cabimento da argüição e para finalizarmos este tópico, vejamos o que pensa Gilmar Ferreira Mendes acerca da utilização deste instituto.

A argüição, diz ele, além de permitir a antecipação de decisões sobre controvérsias constitucionais relevantes, evitando que elas venham a ter um desfecho definitivo após muitos anos, quando muitas situações já restaram consolidadas, para ele é um instrumento que poderá ser utilizado para solver qualquer controvérsia relevante acerca da legitimidade do direito ordinário pré-constitucional em face da nova Constituição que, até o presente momento, somente poderia ser veiculada a partir da utilização do recurso extraordinário e, ainda, pelo fato de que as decisões proferidas pelo STF nesses processos têm eficácia erga omnes e o efeito vinculante, fornecer-se-á, segundo o respeitado doutrinador, uma diretriz segura para o juízo sobre a legitimidade ou a ilegitimidade de atos de igual teor, editados pelas diversas entidades municipais, pelo visto, ele desconsidera o risco de total engessamento de nosso judiciário.

E ainda, concluindo o pensamento deste estudioso, a solução oferecida pela Lei n.º 9.882/99 é superior a outras alternativas como, por exemplo, a que consistiria no reconhecimento da competência dos Tribunais de Justiça para apreciar, em ação direta de inconstitucionalidade, a legitimidade de leis ou atos normativos municipais em face da Constituição Federal pois, para ele, esta alternativa ensejaria múltiplas e variadas interpretações, o que acabaria por agravar ainda mais a crise do Supremo Tribunal Federal, com a multiplicação de recursos extraordinários interpostos contra as decisões proferidas pelas diferentes Cortes estaduais.

Neste aspecto, nos filiamos ao entendimento de André Ramos Tavares que, acertadamente, posiciona os dois tipos de argüição, a autônoma e a paralela, fazendo a interpretação mais plausível do instituto.


5. DA SUBSIDIARIEDADE DA ADPF

No que tange a utilização subsidiária da ADPF, conforme previsto no art. 4º, § 1º da Lei 9.882/99, ou seja, a admissão da argüição somente quando não houver outro meio eficaz de sanar a lesividade, é importante que fique clara a interpretação deste artigo sob pena de tornar a argüição um instituto absolutamente inútil, mesmo naqueles aspectos em que parte da doutrina parece convergir em considerar como pontos positivos, que são: a possibilidade de controle de constitucionalidade de lei municipal, e o controle de normas pré-contitucionais, apesar de, do mesmo modo, parte da doutrina também considerar como aspectos inconstitucionais da lei, tendo em vista que são disposições que dependeriam de expressa disposição da Carta Maior.

Pois bem, o nosso posicionamento converge para o entendimento que traga maior ou, alguma, efetividade a Lei 9.882/99.

A princípio, poderia parecer que somente na hipótese de absoluta inexistência de qualquer outro meio eficaz para afastar a eventual lesão poder-se-ia manejar, efetivamente, a argüição de descumprimento de preceito fundamental. Não é difícil percebermos que essa disposição legal tenta introduzir o princípio da subsidiariedade vigente no direito alemão e no direito espanhol para, respectivamente, o recurso constitucional e o recurso de amparo. Contudo, considerar essa subsidiariedade, sem maiores cautelas, acabará por tornar instituto completamente inócuo.

Para os que assim consideram, a ação poderá ser proposta somente quando já exauridos todos os meios eficazes de afastar a lesão no âmbito judicial, todavia, entendemos que essa consideração não prosperará se considerarmos, nas palavras de Gilmar Mendes, um contexto de ordem constitucional global.

Nesse sentido, considerando-se o caráter objetivo do instituto, meio eficaz de sanar a lesão será aquele apto a solver a controvérsia constitucional relevante de forma eficaz e, isto implica dizer, em nosso sentir, que a argüição poderá ser utilizada mesmo quando da possibilidade de utilização de outros instrumentos, desde que estes não tragam uma imediata conseqüência, seja pela falta de celeridade processual, seja pela ineficiência "individual" do instrumento.

Veja-se, mesmo no direito espanhol, diz Gilmar Ferrreira Mendes, tem-se atenuado o significado literal do principio da subsidiariedade, "até porque, em muitos casos, o prosseguimento nas vias ordinárias não teria efeitos úteis para afastar a lesão a direitos fundamentais" [29]

Assim, sabendo-se do caráter objetivo da argüição de descumprimento de preceito fundamental, pode-se concluir que, evidentemente, se cabíveis a ação direta de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade e a ação direta por omissão, não será admissível a argüição de descumprimento, no entanto, não sendo admitida a utilização de ações diretas de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, ou seja, não se verificando a existência de meios passíveis de solucionar as controvérsias constitucionais relevantes, de maneira "ampla geral e imediata, há de se entender possível a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental." [30]

É o que se verifica nos casos relativos ao controle de legitimidade do direito pré-constitucional, do direito municipal em face da Constituição Federal e nas controvérsias sobre direito pós-constitucional já revogado ou cujos efeitos já se exauriram, pois nestes casos, em face do não-cabimento da ação direta de inconstitucionalidade, não há como deixarmos de reconhecer a admissibilidade da argüição de descumprimento.

Para Gilmar Ferreira Mendes é também possível que se apresente argüição de descumprimento "com pretensão de ver declarada a constitucionalidade de lei estadual ou municipal que tenha sua legitimidade questionada nas instâncias inferiores.

Tendo em vista em vista o objeto restrito da ação declaratória de constitucionalidade, não há cogitar aqui de meio eficaz para solver, de forma ampla, geral e imediata, eventual controvérsia instaurada.

Afigura-se igualmente legítimo cogitar de utilização da argüição de descumprimento nas controvérsias relacionadas com o princípio da legalidade (lei e regulamento), uma vez que, assim como assente na jurisprudência, tal hipótese não pode ser veiculada em sede de controle direto de constitucionalidade.

A própria aplicação do princípio da subsidiariedade está a indicar que a argüição de descumprimento há de ser aceita nos casos que envolvam a aplicação direta da Constituição – alegação de contrariedade à Constituição decorrente de decisão judicial ou controvérsia sobre interpretação adotada pelo Judiciário que não envolva a aplicação de lei ou normativo infraconstitucional." [31]

Como se vê, independentemente da análise acerca da constitucionalidade ou não dos dispositivos da Lei da argüição, faz-se mister que haja a devida cautela quando da aplicação do principio da subsidiariedade, sob pena de tornar a ADPF mais um instrumento inútil no ordenamento jurídico brasileiro, inútil não porque eivado de total inconstitucionalidade, mas em virtude de interpretações equivocadas tornando sua aplicação absolutamente virtual.

Questão mais complexa, porém, é saber se é admissível ou não a argüição de descumprimento de preceito fundamental contra ato jurisdicional. Assim como Bustamante, pensamos que, neste aspecto, vai depender de em que circunstância se encontre a parte, com legitimidade ativa, para figurar na relação jurídica processual em que tenha sido proferido o ato reputado inconstitucional.

Se autor da argüição de descumprimento de preceito fundamental foi parte no processo, não será a ação constitucional do artigo 102, § 1º o meio processual correto para a anulação do ato, pelo fato de que a argüição não tem caráter recursal, nem poderia vir a substituir o recurso eventualmente cabível contra a decisão que tenha violado um preceito constitucional.

Não podemos negar, cabendo recurso para a decisão judicial atacada, há um meio eficaz para se "sanar a lesividade", de modo que independentemente de qual tenha sido, exatamente, o sentido atribuído pelo legislador à expressão "eficácia", e apesar da morosidade que bem conhecemos, temos que presumir que o recurso para um outro órgão julgador, ou mesmo para o Supremo Tribunal Federal, nos casos contemplados pela Carta Magna, é (Ou, pelo menos, deveria ser) um mecanismo eficiente para a proteção da norma constitucional supostamente violada.

Agora, nos processos em que o autor da argüição não figurou como parte, será viável a propositura da argüição, porquanto, somente quando a parte sucumbente não tenha interposto o recurso cabível.

Neste caso, entendemos que será necessário haver passado o prazo para o recurso, sem que o prejudicado o tenha interposto, ou então que não tenha abordado acerca da matéria constitucional.

Tal posicionamento é defendido pelo advogado Thomas da Rosa de Bustamante que, quando se refere a recurso, "tem em mente tanto os recursos ordinários como o recurso extraordinário." [32]

Sobre a autora
Érika da Rocha von Sohsten

acadêmica de Direito na UNIPÊ, João Pessoa (PB)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VON SOHSTEN, Érika Rocha. Argüição de descumprimento de preceito fundamental:: um estudo crítico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3370. Acesso em: 23 dez. 2024.

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