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A boa morte:

a eleição da jovem Maynard

Agenda 19/11/2014 às 14:15

A garantia da liberdade para controlar os cursos de ação possíveis relativas à morte (boa ou má) incrementa a formação da própria individualidade e, consequentemente, da própria ideia de dignidade. A moral não é monopólio da religião.

“La mayor tragedia en toda la historia de la humanidad puede haber sido el secuestro de la moralidad por parte de la religión”. ARTHUR C. CLARKE

No dia 1º de novembro de 2014, Brittany Maynard acabou com sua vida, tal como havia decidido quando se lhe diagnosticou um agressivo tipo de câncer no cérebro e os médicos lhe deram seis meses de vida. Brittany era jovem, 29 anos, sabia que tinha uma enfermidade terminal e quis decidir como morrer. E fez sua eleição: considerou que ela podia escolher como morrer, que podia decidir o dia, e também julgava que era livre de cambiar de opinião e que essa decisão lhe pertencia. Expressou com total claridade que não era uma pessoa suicida e que, apesar de não desejar morrer, estava morrendo, e, ante essa realidade, preferia fazê-lo em seus próprios termos.

Não tardou muito para a Igreja Católica atacar a Maynard por decidir sobre sua vida e seu corpo. O diretor da Academia Pontifícia para a Vida, monsenhor Ignacio Carrasco de Paula, julgou o fato como um "absurdo indigno" e qualificou  suicidio da jovem de "repreensível". O prelado, máxima autoridade em bioética no Vaticano, disse que "a dignidade não é pôr fim à própria vida" e advertiu que não julgava indivíduos, "senão que o gesto em si deve ser condenado"[1].

É verdade que para o cristianismo a «vida é um vale de lágrimas», que viemos ao mundo para sofrer e passar misérias, e que esse é o preço da «caída», a dívida que devemos satisfazer por causa do pecado original. Daí a inevitável algofilia dos cristianismos protestante, ortodoxo e católico, esta inquietude real dos desgraçados que vai acompanhada pela glutonaria da desdita: “Fazer o bem com o sofrimento e fazer o bem a quem sofre” (Papa Francisco, recordando as palavras de João Paulo II). Por isso há uma necessidade compulsiva de apoderar-se da desgraça dos demais, como se a própria não bastasse (P. Bruckner). Quer dizer, não basta com suportar o sofrimento, há que amá-lo: cada desgraçado tem que carregar com sua própria cruz e encontrar em Jesus um guia e um amigo que lhe ajude; e com esta condição, seu sofrimento deixará de ser um inimigo mortal para converter-se em um aliado com um grande poder de purificação, de “renovação da energia espiritual” (João Paulo II).

O problema está em que é um colossal e soberano equívoco conceder essa petição de princípio: que a moral é monopólio da religião. A Igreja não é o juiz moral de ninguém e não há nada que deva ser condenado no gesto de Maynard, porque a fé ou a moral cristã não são os fundamentos da proibição da eutanasia. O imoral, indigno e lamentável é que isto não seja evidente para todos, é deixar que o outro sofra ou causar sofrimento podendo evitá-lo. O moral — e a razão de ser de uma sociedade que não ameaça sistematicamente as normas da moral a que chamamos civilizada  — é o contrário: ninguém deve viver indignamente. Claro que o Vaticano pode impregnar os cérebros teologicamente condicionados de suas ovelhas com preconceitos e valores infundados e anacrônicos; o que não pode (e não deve) é intentar impor essa moral fundada no «sadismo do sofrimento» como norma obrigatória a todo mundo, principalmente para quem sofre uma dolorosa, incurável e terrível enfermidade que lhe impossibilita uma qualidade de vida medianamente decente.

 Nem sequer aqueles que creem na existência de um Deus onipresente e providente, que vela pelo bem estar de todos e cada um de nós, seriam capazes de afiançar que os poderes mais altos da Igreja vagam pelo mundo com ideias que desafiam a inteligência de uma criança de dez anos ou menos, tão insensíveis às pretensões de uma pessoa por ver aliviada suas particulares desgraças pessoais, e condenando «à tort et à travers» aqueles que exercem o direito de morrer com dignidade sem entrar em matizes acerca da qualidade de suas vidas e o que estão pagando, em termos de sofrimento, por ela.

Pois bem, há duas maneiras de marchetar o espectro da morte. A primeira, a boa morte ou eutanásia (em grego, «eu-thánatos»): o digno fim de uma boa vida. Qualquer vida é um processo efêmero, e todos teremos um fim. Mas também em uma vida efêmera (aliás, a única que há) cabe a consciência e a felicidade pessoal. Quando alguém se põe a redigir o guião de sua vida, se encontra com que o primeiro e decisivo capítulo já está escrito e não se pode borrar. A esse alguém somente lhe resta continuar a obra, coisa que fazemos enquanto vivemos. Ainda que não nos seja dado redatar o primeiro capítulo, às vezes podemos escrever o último. Já que não podemos eleger como nascer, ao menos podemos eleger como viver (e inclusive morrer), a não ser que a morte se nos adiante e desbarate nossos planos.

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A segunda, a má morte ou cacotanásia (em grego, «kako-thánatos»), ao contrário da primeira, frustra muitas vidas humanas (colocando-as em uma situação de perda ao final) e acrescenta um capítulo de inferno e indignidade a uma biografia que poderia haver sido satisfatória (por exemplo, o intento desesperado de alargar uma vida que já chegou a seu fim). Não há nenhuma dignidade no fato de negar o direito de resistir à interferência arbitrária dos demais que pretenda infligir qualquer extensão de uma vida sem sentido; são os demais os que devem reconhecer cada ser humano como última instância para julgar se a vida que lhe sugerem vale à pena ser vivida ou não.

E não trato aqui de fugazes devaneios, nem de crises de desânimos ante dificuldades superáveis, nem de decisões precipitadas tomadas sob o efeito de uma depressão passageira, senão de pessoas conscientes em estado (ou processo) de deterioro físico tremendo e irreversível, com a liberdade e a capacidade de eleger  intactas, e que ainda conservam seu bom juízo (como a jovem Maynard). Esses indivíduos devem de ser tratados com respeito, como agentes detentores de uma dignidade, autônomos e independentes que são: como donos de sua própria vida. Se consideram que, a partir de certo momento, o balanço de satisfações e sofrimentos vai resultar em um saldo intolerantemente negativo (uma prolongação de sua agonia ou de sua má vida), são eles e somente eles os que devem decidir entre a eutanásia e a cacotanásia, porque la muerte más deseable de un humano es la que él decide (J. Mosterín).

Quem ousaria opor-se a sua eleição? Quem teria a insensatez de arrogar-se uma autoridade sobre a vida do próximo quando sua carga de viver se faz insuportável? Por acaso Jesus, com sua ética escatológica, também não se entregou de forma ativa, prematura e «voluntariamente» ao seu «dever» de padecer uma «má morte» pela humanidade? Por que, ao invés de condenar, não atribuir à jovem Maynard o valor de haver levantado o «véu da ignorância» com que cobrimos nossos temores e fabulações sobre o sofrimento e a morte ou eludimos uma reflexão profunda acerca do suicídio e da eutanasia para pacientes com enfermidades terminais?  

Como a maioria das verdades amargas, falar ou praticar a morte nos dias atuais aterroriza a todos. Não gostamos que nos recordem a fragilidade e a finitude da vida. O hedonismo demencial, a esquizofrênica implicação mundana sem freios, a compulsão quase enfermiça pela felicidade, a aparência e a saúde a qualquer preço leva-nos a distorcer ou negar constantemente a evidência da vulnerabilidade ou efemeridade da vida e a vivermos como se fôramos imortais. Por não poder suportar demasiada realidade, quase não recordamos de que a morte é inevitável. Não é a minha eleição, mas reconheço que há pessoas que decidem percorrer este caminho de delírio da perpetuidade.

Apesar do mágico encanto da infância e da turbulenta emoção da puberdade, é maravilhoso crescer, fazer-se adulto, viver em sua plenitude, pensar com lucidez, sentir-se bem na própria pele, usar a razão ou deixar-se levar pela emoção, exercer a autonomia e tomar em nossas mãos as rendas de nossa própria vida. Ninguém nos perguntou como gostaríamos de haver nascido, e nada nos impede que possamos decidir sobre «como» morrer. Podemos ser os autores do último capítulo de nossa biografia; podemos, em determinadas circunstâncias, fazer com que nossa vida acabe bem, ao nosso gosto. Não há necessidade de rodear a experiência da morte de terrores, superstições e tabus. Também a morte pode abordar-se com equilíbrio, sensatez, serenidade e racionalidade. (J. Mosterín)

E embora se possa ver um agressivo câncer no cérebro como só outro caminho misterioso de Deus para demonstrar-nos que nos ama, o certo é que o ideal do humano livre, dono e senhor de si mesmo, consiste em tomar o mando e assumir a autoria de sua vida e de sua morte[2]. Como sabia Sêneca, “o que importa é a boa que seja tua vida, não quão longa seja. E, muitas vezes, que seja boa é que não seja longa”. Sêneca, aliás, tinha uma postura lúcida ante o final de sua vida: “Não renunciarei a minha idade adiantada enquanto deixe intacto o melhor de mim mesmo. Mas se começa a debilitar minha mente, se destrói minhas faculdades uma após outra, se não me deixa mais vida que o alento, eu abandonarei o edifício ruinoso. Se sei que vou sofrer sem esperança de alívio, deixarei a vida não por temor à dor, senão porque tal situação impede tudo aquilo pelo qual vale à pena viver”.

A liberdade de governar a própria vida é condição necessária da individualidade, de um existir separado e autônomo. Por dizê-lo de alguma maneira, parece-se razoável supor que podemos dispor conscientemente sobre nossas vidas. Ao menos em alguns aspectos, a garantia da liberdade para controlar os cursos de ação possíveis relativas à morte (boa ou má) incrementa a formação da própria individualidade e, consequentemente, da própria ideia de dignidade. E a dignidade da vida humana estriba em não aceitar qualquer tipo de vida, senão somente aquela que, em opinião do sujeito, vale a pena de ser vivida.

Se, ao contrário, permitimos que sejam os demais que controlem tudo, não somente dilapidamos a maravilhosa arte de sermos nós mesmos e de atuar com  segundo nossas melhores preferências, crenças e desejos, senão que também corrompemos a ideia mais bela que existe: a possibilidade concedida a cada qual de ser dono de seu destino e de melhorar sua existência. O sentido e o valor de defender o direito à vida pressupõem, antes de tudo, a incondicional necessidade de compreender que o humano, como valor primeiro, somente se afirma a partir de sua liberdade e autonomia: não somente da pessoa como expressão da capacidade moral e de raciocínio, mas também com plena aptidão para  sentir, amar, eleger, cooperar, dialogar e de ser, em última instância, capaz de autodeterminar-se no âmbito de sua peculiar existência. Esta é a maneira mais poderosa para lograr a «autonomia do espírito» a que se referia Kant e para fazer com que a vida adquira um sentido verdadeiramente transcendente.

A importância de postular o direito a escolher um digno final de vida, de decidir com serenidade como serão os últimos momentos de nossa finita existência, decorre da evidência de que com a morte termina o ciclo natural da vida. Nossa liberdade e autonomia, aqui, estão em jogo. O inimigo não é a morte, senão a enfermidade, o sofrimento e a dor. Quando a enfermidade é incurável e a dor irremediável, tratar de condenar ou combater a morte somente serve para alargar inutilmente o sofrimento humano. Por isso a aceitação da boa morte conduz à contenção do sofrimento, que é um elemento da justiça: a única forma de justiça que pode garantir a concreção do imperativo ético segundo o qual há que atuar sempre de tal maneira que as consequências de nossas ações sejam compatíveis com a maior possibilidade de evitar, eliminar ou diminuir a miséria, a infelicidade e o sofrimento humano. Evitar, eliminar ou mitigar o sofrimento, esta é a máxima, a norma moral absoluta, o imperativo categórico supremo.

Portanto, desconfiemos daqueles cujas crenças, por definição, são ou podem ser constitutivas da verdade ou prova axiomática da existência objetiva do afirmado (ou de uma «única moral correta»). Desconfiemos das pessoas cujo sistema de crenças é o único que se interpõe entre elas e um comportamento repulsivo. Desconfiemos daqueles que idolatram a desgraça, que se irritam com nossa liberdade e que avocam o direito ou a autoridade moral de julgar nossos infortúnios. Desconfiemos de todos aqueles que professam adorar ou preocupar-se pelo sofrimento alheio. Em sua solicitude se oculta uma espécie de desprezo disfarçado, uma maneira de reduzir aos miseráveis a sua angústia, de não considerá-los nunca como iguais. E então, baixo a máscara da caridade, triunfa o ressentimento: amor pela desgraça, ódio pelo ser humano (P. Bruckner). Somente se lhes perdoa a vida se sofrem, ainda que ideia de que a dor e o sofrimento santificam jamais se demonstrou cientificamente.    

Agora: A fé e a intolerância rechaçam este tipo de argumento? Então só nos resta dobrar nossa razão e nosso bom senso e aceitar de uma vez por todas que tudo o que diga a Igreja Católica é certo. Resignemo-nos aos estranhos «mistérios» católicos que permitem, graças à ausência de respostas, que tenhamos respostas para tudo sem necessidade de recorrer às leis da verificação e da persuasão racional. Abracemos de uma vez por todas o irracional, o injustificável, o transcendente, o inadmissível, o inverossímil e o indemonstrável, precisamente pela «inutilidade da prova» do indemonstrável. Adotemos de forma definitiva e incondicional as categorias e postulados católicos e pastemos nos prados que propõe a Igreja Católica como obedientes ovelhas do Senhor. São os dogmas da «única» e legítima religião. Nada menos! E com a Igreja Católica não se brinca (e nem se deve usar preservativos).

Para terminar, não posso deixar de recordar outra ironia muito inquietante: para os que creem no cálculo cristão da «aposta da eternidade», a morte (independentemente da causa) não deveria representar nenhum dilema. Como escreve S. Bossuet, citando a Santo Antônio, o maravilhoso da morte “es que, para el cristiano, no pone punto final a la vida, sino a los pecados y peligros a los que ha estado expuesto. Al abreviar nuestros días Dios abrevia nuestras tentaciones, es decir, todas las ocasiones de perder la verdadera vida, la vida eterna, puesto que el mundo tan sólo es nuestro común  exilio”.

Mas, se para alguns devotos comprometidos com a causa, a «fé» não é suficiente para eliminar ou diminuir nem o «temor» nem a «dor» da morte, sugiro que tenham sempre em conta esta sensata reflexão Richard Dawkins a respeito: “Si uno cree de veras en la vida después de la muerte, cómo es que no reacciona como el abad de Ampleforth que, cuando Basil Hume le dijo que estaba moribundo, le repuso: «¡Felicidades, hombre! Es una noticia maravillosa. Me encantaría poder acompañarte»”. Quanto aos ateus, os agnósticos, os ignósticos, os hipercríticos e os indivíduos de pouca fé, nenhum problema; estes, parafraseando um antigo provérbio, «nunca mueren, solo van al infierno y se reagrupan».     


Notas

[1] Tomando sem ônus as palavras de Carlos Gabetta: “Los antiguos, desde los galos, celtas, vikingos y nórdicos, pasando por los chinos hasta Grecia y el Imperio Romano, aceptaban o no condenaban el suicidio. Lo justificaban en diversas circunstancias, como vejez, viudez, desamparo o mala salud. También por cuestiones de honor, lealtad, una muerte vergonzosa y, en la India, por razones litúrgicas o religiosas. Despreciaban en cambio el suicidio sin una causa aparente o por cobardía. Con los matices del caso, los filósofos estoicos, pitagóricos, epicúreos, platónicos y aristotélicos lo consideraron justificable. Hasta que se impusieron las religiones monoteístas y la idea de que, si hay un Dios que decide sobre la vida y la muerte, quitarse la vida resulta un pecado mortal. Un absurdo para la razón dado que, si Dios todo lo decide, por qué no considerar que los seres que por diversas razones se quitan la vida lo hacen por Su decisión, ya que si así no fuese, no podrían ejecutar el acto”.

[2] Como explica Susana Sommer, “el respeto a la autonomía personal implica el derecho a tomar decisiones respecto de planes de vida, el derecho de los pacientes a rechazar tratamientos que prolonguen el sufrimiento, y la posibilidad de acceder a una muerte digna, con posibilidad de tomar decisiones respecto del cuerpo y la propia vida y respetando sus propias convicciones y valores.”

Sobre o autor
Atahualpa Fernandez

Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDEZ, Atahualpa. A boa morte:: a eleição da jovem Maynard. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4158, 19 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33719. Acesso em: 17 nov. 2024.

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