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A organização dos Estados Americanos e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos:

complementaridade funcional ou contradição congênita?

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Agenda 09/01/2016 às 13:08

2. O sistema jurisdicional interamericano de proteção dos direitos humanos (sistema da Convenção Americana de Direitos Humanos)

O sistema da Convenção Americana de Direitos Humanos apresenta características diferentes daquele baseado na Carta da OEA. Seus documentos fundamentais são a própria Convenção (também conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica) e o Protocolo de San Salvador, referente a direitos econômicos, sociais e culturais, os quais estão ausentes do texto do Pacto. No que concerne à forma de atuação, pode-se classificá-la de verdadeiramente judicial, uma vez que o sistema é dotado de um órgão competente para prolatar decisões mandatórias para os Estados.

2.1. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Convenção Americana de Direitos Humanos

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no âmbito do sistema vinculado à Convenção, exerce juízo de prelibação no referente às demandas a ela submetidas. Se ela constatar violação de direitos humanos, pode emitir relatório endereçado ao Estado violador. Em caso de não cumprimento, a Comissão pode acionar a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Segundo leciona Carvalho Ramos (2002, pp. 229), a Comissão é acionada por meio de petição escrita da vítima ou de terceiros (inclusive de ONGs, em seu próprio nome). São requisitos para aceitação do pedido: o esgotamento dos recursos internos, o não esgotamento do prazo de seis meses para representação, a inexistência de litispendência internacional e de coisa julgada internacional (pp. 230). O professor explica, além disso, que a Comissão tem restringido, mediante interpretação, a condição de admissibilidade, a fim de proporcionar amplo acesso às instâncias judicantes internacionais.

2.2. A Corte Interamericana de Direitos Humanos

Como informado, após o não acatamento das disposições do primeiro relatório elaborado pela Comissão, esta pode acionar o Estado, caso este tenha reconhecido a jurisdição da Corte. Carvalho Ramos, destacando a natureza judicial do procedimento, informa que “[p]erante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Comissão e o Estado-réu tem a possibilidade de produzir provas e de exercitar todas as faculdades processuais do due process of law” (2000, pp. 239-239). Esse predomínio quase absoluto do direito é mitigado, no entanto, pela possibilidade de soluções conciliatórias entre as partes (2000, pp. 239).

No que concerne ao teor das sentenças, Carvalho Ramos explica que, diferentemente do que se observa no sistema europeu, “o efeito de uma sentença da Corte é o mais amplo possível no âmbito de uma ação de responsabilidade internacional do Estado.” (2000, pp. 239). Em outros termos, isso significa que as decisões emanadas pela Corte de San Jose, diferentemente do que ocorre com sua congênere europeia, pode estipular obrigações não pecuniárias aos Estados. Essa característica do sistema instituído pela Convenção Americana torna suas decisões muito mais intrusivas em relação à soberania dos Estados, aos quais podem ser impostas obrigações de fazer e de não fazer, além das tradicionais reparações econômicas.

2.3. A Convenção Americana e seu momento histórico

Como se procedeu na análise do sistema de direitos humanos da Carta da OEA, as características do sistema da Convenção serão buscadas nas condições históricas de sua gênese. O fim da década de 1960 e início da década de 1970 foram caracterizados pela distensão da guerra fria. Essa mitigação da possibilidade de conflito, por sua vez, diminuiu as preocupações norte-americanas com a segurança do continente e acerca da manutenção da solidariedade americana, a qual, na realidade, estava garantida por meio do alinhamento automático dos regimes militares (que governavam parte considerável dos países) na luta contra o comunismo.

Nesse contexto de arrefecimento da bipolaridade, e em razão da natural relevância que os direitos humanos assumiam no âmbito internacional (como evidenciado na Conferência de Teerã, realizada em 1968), torna-se possível assinatura da Convenção Americana, bem como a instituição de um sistema protetivo de direitos humanos genuinamente jurisdicional. Dessa forma, as preocupações geopolíticas, que, naquele momento excepcional estavam diminuídas, não obstaram o fortalecimento do sistema interamericano de direitos humanos. 


3. Os efeitos para o Brasil da dualidade do sistema americano

3.1. O Brasil e a proteção internacional dos direitos humanos

No curso do processo de redemocratização, o Brasil retoma, de modo inequívoco, “suas posições em prol da proteção internacional de direitos humanos” (Cançado Trindade, 2006, pp. 420 e pp. 224). Pode ser citada, como prova dessa posição participativa do Brasil, a presidência - ocupada pelo embaixador Gilberto Sabóia - do Comitê de Redação da Segunda Conferência Mundial de Direitos Humanos (1993), bem como a ratificação, durante a década de 1990, dos diversos documentos internacionais, globais e regionais, de proteção de direitos humanos (pp. 224). Em 1992, o Brasil ratificou os dois Pactos Internacionais de direitos humanos e aderiu ao Pacto de San Jose da Costa Rica. Em 1996, o Brasil tornou-se parte dos dois Protocolos à Convenção Americana (pp. 239). Dois anos depois, o país tomou sua decisão mais relevante acerca do tema: a aceitação da jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Carvalho Ramos, 2011), ato que submete o Estado brasileiro à jurisdição externa, especializada e compulsória.

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No que concerne especificamente a este trabalho, é importante averiguar como a duplicidade do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos reflete-se sobre o Brasil. Analisar-se-á, dessa forma, decisões emanadas da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (na qualidade de órgão da OEA) e da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

3.2. A recomendação da Comissão no caso dos índios Yanomami e a condenação pela Corte no caso Gomes Lund

O cotejo do desfecho desses dois casos torna evidente a diferença no funcionamento dos dois órgãos de direitos humanos. Conforme explica Carvalho Ramos, no caso dos índios Yanomami, mediante elaboração da Resolução 12/85, a Comissão verificou a violação dos seguintes direitos do mencionado povo indígena: direito à vida, direito à liberdade, direito á segurança, direito de residência e de trânsito, direito à preservação da saúde e direito ao bem-estar (Carvalho Ramos, 2002, p. 221). Mesmo diante desse grande rol de violações, a Comissão recomendou apenas o prosseguimento dos trâmites de demarcação de reservas e o fornecimento de amparo material (mediante programas sociais) aos indígenas. A brandura da recomendação (se comparada à gravidade das violações) e a ausência de contestação por parte do governo brasileiro podem indiciar que o caso foi solucionado mediante composição (velada) entre as partes. Portanto, em razão da importância política e econômica do Brasil (o qual vivia sensível período de transição democrática), a Comissão optou por proferir recomendação mais suave e genérica, mesmo que inadequada sob o ponto de vista jurídico. De qualquer forma, a decisão da Comissão evidenciou sua vulnerabilidade a influências políticas, mesmo que originárias de país não hegemônico no continente.

Diferentemente, no caso Gomes Lund, a Corte prolatou sentença condenatória rigorosa e detalhada contra o Estado brasileiro. No que concerne às reparações, a Corte determinou ao Estado: a) a obrigação de investigar, de processar e de punir os violadores de direitos humanos no período de exceção; b) dever de averiguação e de determinação do paradeiro das vítimas; c) atendimento gratuito aos sofrimentos físicos e psicológicos suportados pelas vítimas; d) publicação da sentença por diversos meios de comunicação; e) prática de ato de reconhecimento das violações; f) como garantia de não repetição, a tipificação do crime de desaparecimento forçado e a criação de cursos de direitos humanos no âmbito das Forças Armadas, bem como a publicação dos documentos referentes aos fatos julgados; g) o pagamento de indenizações, de custas e de ouros gastos incorridos pelos familiares das vítimas (Carvalho Ramos, 2011). A variedade de obrigações impostas ao Brasil indicam que o órgão - mesmo em tema sensível como ditadura militar, luta armada e lei da anistia – não recuou diante das pressões políticas que, muito provavelmente, caracterizaram todo o julgamento do caso.

Na análise das diferenças entre as duas decisões, podem-se vislumbrar dois aspectos relevantes: 1) sistema interamericano de direitos humanos é composto de dois órgãos dotados de naturezas distintas, as quais se evidenciam no grau de suscetibilidade á influência política e, por consequência, no compromisso com a defesa dos direitos humanos; 2) essa diversidade congênita decorre das diferentes situações históricas em que foram institucionalizados. 


Considerações finais

Como explicado no início do texto, a proposta do autor não é a de comprovar, deterministicamente, que o momento histórico e a circunstância política determinam a essência das instituições internacionais. O objetivo também não é, igualmente, a despeito da provocação do título, denunciar uma incompatibilidade de nascença entre os dois importantes órgãos decisórios que compõem o sistema interamericano de direitos humanos. A proposta, evidentemente muito mais modesta, é apenas lembrar que as instituições, sejam elas formalmente constituídas ou apenas existentes de fato, não se originam no vácuo histórico, mas, sim, em um ambiente que as influencia e que, até certo, ponto as molda conforme as circunstâncias.

Subjacente às características e aos propósitos públicos de quaisquer instituições, existem interesses e objetivos ocultos que, no caso do direito internacional, podem ser mais bem compreendidos pelo entendimento dos fatos políticos que caracterizaram o período de formação das normas em questão. No caso da concepção da OEA e da Convenção de Direitos Humanos, as situações políticas eram diversas, o que gerou o ainda remanescente sistema jurídico dual de direitos humanos. Em razão da progressiva judicialização dos direitos humanos, processo que é demandado pelos diversos atores constituintes da sociedade internacional, vislumbra-se que a solução oferecida pela Convenção tende a prevalecer. A OEA, por sua vez, manterá sua natureza de organismo de concertação política, e a Comissão poderá ser extinta (como ocorrido no sistema europeu) ou readaptada a uma função estritamente judicial, a qual seria, por consequência, mais imune ao ambiente político. Para o questionamento proposto, provocativamente, no título, o menos temerário, portanto, seria responder: a contradição congênita, de fato existente, entre o sistema da Carta de Bogotá e o sistema do Pacto de San Jose não impede que, no decorrer do tempo, ambos não convirjam para um modelo de atuação complementar ou mesmo para um sistema unificado. A origem não explica a trajetória histórica e o desfecho de tudo.


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Sobre o autor
Mauro Kiithi Arima Junior

Bacharel em Direito e Relações Internacionais pela USP. Especialista em Direito Político, Administrativo e Financeiro pela FD USP. Especialista em Política Internacional pela FESPSP. Mestre em Direito Internacional pela USP. Doutor em Direito Internacional pela USP. Advogado, professor e consultor jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KIITHI, Mauro Arima Junior. A organização dos Estados Americanos e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos:: complementaridade funcional ou contradição congênita?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4574, 9 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34169. Acesso em: 22 dez. 2024.

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