O critério econômico foi eleito pela legislação regulamentadora dos benefícios previdenciários e assistenciais, com amparo na Constituição Federal, para definir, objetivamente, os beneficiários que fariam jus ao recebimento de tais benefícios.
No caso do benefício de prestação continuada (LOAS), a Lei 8.742/93, em seu art. 20, § 3º, elegeu como fundamento único a comprovação da miserabilidade, considerando esta a incapacidade de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa, da família cuja renda mensal per capita for inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.
No que diz respeito ao benefício previdenciário de auxílio-reclusão, este foi disciplinado pela Lei 8.213/91 e pode ser pago aos dependentes de segurado da Previdência Social enquanto ele estiver preso, em regime fechado ou semiaberto. Atualmente, para ter direito ao benefício, o último salário-de-contribuição do segurado deve ser igual ou inferior a R$ 1.025,81, conforme estabelece a portaria interministerial MPS/MF nº 19, do dia 10 de janeiro de 2014, regulamentando o que dispõe a Emenda Constitucional 20/1998:
“Art. 13. Até que a lei discipline o acesso ao salário-família e auxílio-reclusão para os servidores, segurados e seus dependentes, esses benefícios serão concedidos apenas àqueles que tenham renda bruta mensal igual ou inferior a R$ 360,00 (trezentos e sessenta reais), que, até a publicação da lei, serão corrigidos pelos mesmos índices aplicados aos benefícios do regime geral de previdência social.”
Nessa toada, o que se tinha até recentemente era a previsão do artigo 80 da Lei 8.213/91 determinando como pressupostos à obtenção do benefício de auxílio-reclusão: a) o recolhimento do segurado à prisão; b) o não-recebimento de remuneração da empresa ou de benefício previdenciário; c) a qualidade de dependente do requerente; d) a prova de que o presidiário era, ao tempo de sua prisão, segurado junto ao INSS. Além desses requisitos, a Emenda Constitucional nº 20/98 alterou a redação do art. 201, IV, exigindo ser o segurado oriundo de família de baixa renda.
A questão é que, desde 2009, quando foi julgado pelo STJ o recurso especial representativo da controvérsia nº 1.112.557/MG, estabeleceu-se no seio da jurisprudência a relativização do critério econômico para concessão do benefício assistencial, passando-se a aceitar outros meios de prova da miserabilidade, além daquele previsto no § 3º do art. 20 da Lei 8.742/93, conforme pode ser verificado pela ementa do acórdão, abaixo transcrito:
RECURSO ESPECIAL Nº 1.112.557 - MG (2009/0040999-9)
RELATOR : MINISTRO NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO
ÓRGÃO JULGADOR: TERCEIRA SEÇÃO
DATA DO JULGAMENTO: 28/10/2009
EMENTA:
RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. ART. 105, III, ALÍNEA C DA CF. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. POSSIBILIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DA CONDIÇÃO DE MISERABILIDADE DO BENEFICIÁRIO POR OUTROS MEIOS DE PROVA, QUANDO A RENDA PER CAPITA DO NÚCLEO FAMILIAR FOR SUPERIOR A 1/4 DO SALÁRIO MÍNIMO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. A CF/88 prevê em seu art. 203, caput e inciso V a garantia de um salário mínimo de benefício mensal, independente de contribuição à Seguridade Social, à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.
2. Regulamentando o comando constitucional, a Lei 8.742/93, alterada pela Lei 9.720/98, dispõe que será devida a concessão de benefício assistencial aos idosos e às pessoas portadoras de deficiência que não possuam meios de prover à própria manutenção, ou cuja família possua renda mensal per capita inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo.
3. O egrégio Supremo Tribunal Federal, já declarou, por maioria de votos, a constitucionalidade dessa limitação legal relativa ao requisito econômico, no julgamento da ADI 1.232/DF (Rel. para o acórdão Min. NELSON JOBIM, DJU 1.6.2001).
4. Entretanto, diante do compromisso constitucional com a dignidade da pessoa humana, especialmente no que se refere à garantia das condições básicas de subsistência física, esse dispositivo deve ser interpretado de modo a amparar irrestritamente a o cidadão social e economicamente vulnerável.
5. A limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, pois é apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade, ou seja, presume-se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo.
6. Além disso, em âmbito judicial vige o princípio do livre convencimento motivado do Juiz (art. 131 do CPC) e não o sistema de tarifação legal de provas, motivo pelo qual essa delimitação do valor da renda familiar per capita não deve ser tida como único meio de prova da condição de miserabilidade do beneficiado. De fato, não se pode admitir a vinculação do Magistrado a determinado elemento probatório, sob pena de cercear o seu direito de julgar.
7. Recurso Especial provido.
Posteriormente, já em 2014, o STF, a despeito de já ter tratado da matéria na ADI 1.232/DF, alterou seu entendimento e também se manifestou favoravelmnete à referida flexibilização, declarando a inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993, conforme se demonstra pela trancrição da ementa proferida no recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO - RE 567985 / MTRelator(a): Min. MARCO AURÉLIORelator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDESJulgamento: 18/04/2013 Órgão Julgador: Tribunal Pleno
Ementa:Benefício assistencial de prestação continuada ao idoso e ao deficiente. Art. 203, V, da Constituição. A Lei de Organização da Assistência Social (LOAS), ao regulamentar o art. 203, V, da Constituição da República, estabeleceu os critérios para que o benefício mensal de um salário mínimo seja concedido aos portadores de deficiência e aos idosos que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. 2. Art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993 e a declaração de constitucionalidade da norma pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 1.232. Dispõe o art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93 que “considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo”. O requisito financeiro estabelecido pela lei teve sua constitucionalidade contestada, ao fundamento de que permitiria que situações de patente miserabilidade social fossem consideradas fora do alcance do benefício assistencial previsto constitucionalmente. Ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.232-1/DF, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do art. 20, § 3º, da LOAS. 3. Decisões judiciais contrárias aos critérios objetivos preestabelecidos e Processo de inconstitucionalização dos critérios definidos pela Lei 8.742/1993. A decisão do Supremo Tribunal Federal, entretanto, não pôs termo à controvérsia quanto à aplicação em concreto do critério da renda familiar per capita estabelecido pela LOAS. Como a lei permaneceu inalterada, elaboraram-se maneiras de se contornar o critério objetivo e único estipulado pela LOAS e de se avaliar o real estado de miserabilidade social das famílias com entes idosos ou deficientes. Paralelamente, foram editadas leis que estabeleceram critérios mais elásticos para a concessão de outros benefícios assistenciais, tais como: a Lei 10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei 10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; a Lei 10.219/01, que criou o Bolsa Escola; a Lei 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a Municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas. O Supremo Tribunal Federal, em decisões monocráticas, passou a rever anteriores posicionamentos acerca da intransponibilidade do critérios objetivos. Verificou-se a ocorrência do processo de inconstitucionalização decorrente de notórias mudanças fáticas (políticas, econômicas e sociais) e jurídicas (sucessivas modificações legislativas dos patamares econômicos utilizados como critérios de concessão de outros benefícios assistenciais por parte do Estado brasileiro). 4. Declaração de inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993. 5. Recurso extraordinário a que se nega provimento.
Pois bem, ao que parece, o mesmo raciocínio vai prevalecer, no âmbito do Judiciário, em relação aos demais benefícios cujo critério econômico foi eleito pela legislação pertinente como requisito para seu recebimento.
Nesse sentido, o STJ, a exemplo do que decidiu em relação ao benefício de Prestação Continuada, já admitiu a flexibilização do critério econômico para concessão do Benefício de auxílio-reclusão, ainda que o salário de contribuição do segurado supere o valor legalmente fixado para configurar baixa renda.
Acompanhando o voto do relator, ministro Napoleão Nunes Maia Filho, a Primeira Turma do STJ entendeu que a semelhança do caso com a jurisprudência firmada pelo Superior Tribunal em relação ao Benefício de Prestação Continuada permite ao julgador flexibilizar também o critério econômico para deferimento do auxílio-reclusão.
O ministro relator argumentou, em seu voto, que a análise de questões previdenciárias requer "uma compreensão mais ampla, ancorada nas raízes axiológicas dos direitos fundamentais, a fim de que a aplicação da norma alcance a proteção social almejada".
O Recurso especial relativo à flexibilização do critério de concessão do auxílio-reclusão foi assim ementado:
RECURSO ESPECIAL 1.479.564/SP
RELATOR : MINISTRO NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO
ÓRGÃO JULGADOR: PRIMEIRA TURMA
DATA DO JULGAMENTO 06/11/2014
EMENTA:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. AUXÍLIO-RECLUSÃO. POSSIBILIDADE DE FLEXIBILIZAÇÃO DO CRITÉRIO ECONÔMICO ABSOLUTO PREVISTO NA LEGISLAÇÃO PREVIDENCIÁRIA. PREVALÊNCIA DA FINALIDADE DE PROTEÇÃO SOCIAL DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. RECURSO ESPECIAL DO INSS A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
1. O benefício de auxílio-reclusão destina-se diretamente aos dependentes de segurado que contribuía para a Previdência Social no momento de sua reclusão, equiparável à pensão por morte; visa a prover o sustento dos dependentes, protegendo-os nesse estado de necessidade.
2. À semelhança do entendimento firmado por esta Corte, no julgamento do Recurso Especial 1.112.557/MG, Representativo da Controvérsia, onde se reconheceu a possibilidade de flexibilização do critério econômico definido legalmente para a concessão do Benefício Assistencial de Prestação Continuada, previsto na LOAS, é possível a concessão do auxílio-reclusão quando o caso concreto revela a necessidade de proteção social, permitindo ao Julgador a flexiblização do critério econômico para deferimento do benefício, ainda que o salário de contribuição do segurado supere o valor legalmente fixado como critério de baixa renda.
3. No caso dos autos, o limite de renda fixado pela Portaria Interministerial, vigente no momento de reclusão da segurada, para definir o Segurado de baixa-renda era de R$ 710,08, ao passo que, de acordo com os registros do CNIS, a renda mensal da segurada era de R$ 720,90, superior aquele limite
4. Nestas condições, é possível a flexibilização da análise do requisito de renda do instituidor do benefício, devendo ser mantida a procedência do pedido, reconhecida nas instâncias ordinárias.
5. Recurso Especial do INSS a que se nega provimento.
No que tange ao entendimento do STF acerca da questão do auxílio-reclusão, conquanto este tenha decidido anteriormente que a baixa renda do detento deve ser o parâmetro usado para a concessão do benefício, mormente após a EC 20/98, este ainda não se pronunciou especificamente sobre o tema após o novo julgamento do STJ no REsp 1.479.564/SP.
Diante da explanação acima, é fácil perceber que a tendência atual é a unificação da jurisprudência do STJ e do STF, no sentido de permitir a concessão de benefícios, sejam assistenciais ou previdenciários, com a base em outros meios de prova e não mais considerando unicamente o critério objetivo do poder econômico do requerente, como está previsto na legislação.
Esse novo posicionamento jurisprudencial, entretanto, pode gerar uma flexibilização que não encontrará um limite visível, haja vista o afastamento da legalidade em prol de uma discricionariedade permitida ao Poder Judiciário que, imperceptivelmente, pode se aproximar de arbitrariedade, vulnerando assim, a segurança jurídica, uma vez que retira-se o que a lei determina sem que haja outros parâmetros preestabelecidos a serem seguidos.