I - INTRODUÇÃO
Elevada ao patamar Constitucional pelo art. 5º, XXXVI[1], a coisa julgada, como qualidade de imutabilidade conferida à decisão judicial[2], age em atendimento ao princípio da segurança jurídica que deve ser conferida aos atos emanados do Poder Judiciário.
No entanto, excepcionalmente, pode haver rescisão da decisão transitada em julgado nas hipóteses taxativamente elencadas no art. 485 do Código de Processo Civil. Além disso, deve ser observado o prazo de dois anos após o trânsito em julgado da decisão, nos termos do art. 495 do mesmo diploma legal, que assim prevê:
Art. 495. O direito de propor ação rescisória se extingue em 2 (dois) anos, contados do trânsito em julgado da decisão.
Conforme se observa, este dispositivo traz em seu conteúdo o termo inicial para o ajuizamento da ação rescisória, a ser proposta dois anos após o “trânsito em julgado da decisão”.
A palavra decisão constante do art. 495 do CPC pode ser entendida como i) os julgamentos de mérito proferidos ao longo da marcha processual; ou ii) somente o decisum final, que encerra a fase de conhecimento, incluído aqui as emanadas por Tribunais em fases recursais. A depender da opção feita, o impacto será diretamente no termo inicial do prazo para ajuizamento da ação rescisória.
Existe um grande impasse jurisprudencial vivenciado atualmente entre a Suprema Corte e o Superior Tribunal de Justiça: o início do prazo para propor ação rescisória, em que, de um lado, tem-se o Pretório Excelso, por meio de sua Primeira Turma, tendo adotado o primeiro entendimento, enquanto que a Corte Superior de Justiça optou pelo segundo.
II – TERMO INICIAL PARA PROPOR AÇÃO RESCISÓRIA: ENTENDIMENTO SUMULADO DO STJ X POSIÇÃO DA PRIMEIRA TURMA DO STF
A começar pelo STJ, o tema em debate encontra-se pacificado nesta Corte Superior em virtude de sua Súmula de número 401, publicada no DJe de 13/10/2009, cuja redação é:
Súmula 401 – O prazo decadencial da ação rescisória só se inicia quando não for cabível qualquer recurso do último pronunciamento judicial.
Esta Súmula encontra-se plenamente em vigor, conforme se observa no seguinte aresto proferido pela Segunda Seção desta Corte Superior datado de junho de 2014:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NA AÇÃO RESCISÓRIA. RECURSO ESPECIAL PROVIDO MONOCRATICAMENTE. DESERÇÃO DA APELAÇÃO AFASTADA. DECADÊNCIA. ENUNCIADO N. 401 DA SÚMULA DO STJ. AUSÊNCIA DE DECISÃO SOBRE O MÉRITO DA CAUSA.
1. A decisão rescindenda cuidou apenas da validade do preparo do recurso da apelação, afastando a deserção. Revela-se incabível, portanto, a presente ação rescisória, própria para enfrentar julgado que analisa o mérito da demanda. Precedentes.
2. O ajuizamento da rescisória e o início do respectivo prazo decadencial possuem como requisito o trânsito em julgado, uno e indivisível, da decisão final sobre o mérito da demanda, repelindo-se a decadência por capítulos (enunciado n. 401 da Súmula do STJ). Com isso, a presente ação nem mesmo poderia ter sido proposta, sendo inviável a tramitação simultânea do processo principal e da rescisória. Precedentes.
3. Agravo regimental improvido.
(AgRg na AR 4.939/AL, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 11/06/2014, DJe 17/06/2014)
Neste julgado, a Corte Superior de Justiça expressamente afastou a possibilidade de se considerar a presença da coisa julgada parcial ou progressiva[3], o que autorizaria, em tese, o ajuizamento da ação rescisória contra decisão de mérito transitada em julgado ao longo da marcha processual.
Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal, por meio de sua Primeira Turma, ao apreciar o Recurso Extraordinário de número 666.589/DF em 25/03/2014, DJe 02/06/214, Relatoria do Ministro Marco Aurélio, entendeu pela existência de capítulos autônomos da sentença, de modo a autorizar a ocorrência da coisa julgada parcial e, diante disso, a possibilidade da proposição do feito rescisório antes da última decisão do feito. A ementa deste julgado restou assim redigida:
COISA JULGADA – ENVERGADURA. A coisa julgada possui envergadura constitucional. COISA JULGADA – PRONUNCIAMENTO JUDICIAL – CAPÍTULOS AUTÔNOMOS. Os capítulos autônomos do pronunciamento judicial precluem no que não atacados por meio de recurso, surgindo, ante o fenômeno, o termo inicial do biênio decadencial para a propositura da rescisória. (RE 666589, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 25/03/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-106 DIVULG 02-06-2014 PUBLIC 03-06-2014)
Nas palavras do eminente Relator, veja-se o seguinte trecho no qual se resumiu a inaplicabilidade do entendimento do STJ ao caso:
Considerada a implicação apontada pelos mestres de ontem e de hoje, deve ser recusada qualquer tese versando unidade absoluta de termo inicial do biênio previsto no artigo 495 do Código de Processo Civil. O prazo para formalização da rescisória, em homenagem à natureza fundamental da coisa julgada, só pode iniciar-se de modo independente, relativo a cada decisão autônoma, a partir da preclusão maior progressiva.
Imperioso registrar que este julgamento ocorreu por conta de recurso extraordinário interposto contra acórdão do STJ que, aplicando sua jurisprudência consolidada por meio da Súmula 401, reconheceu o termo inicial para contagem do prazo recursal o trânsito em julgado da última decisão proferida.
Conforme se observa, o julgado proferido pelo STF foi publicado em 02/06/2014, ao passo que o acórdão anteriormente transcrito oriundo da Segunda Seção do STJ restou proferido em 11/06/2014. Ou seja, neste o Superior Tribunal de Justiça aplicou normalmente seu entendimento previsto na Súmula 401, desconsiderando a decisão da Suprema Corte em sentido contrário.
Ocorre que, posteriormente, em 20 de agosto de 2014, o assunto foi novamente apreciado pelo STJ, desta vez por meio de sua Corte Especial, órgão máximo deste Tribunal Superior, a qual, no julgamento do REsp 736.650/MT, Relator Ministro Antônio Carlos Ferreira, manteve o entendimento previsto na Súmula 401/STJ, não obstante o precedente do Pretório Excelso.
Em razão da importância da questão, transcreve-se o trecho do voto do Eminente Relator sobre a dissonância de entendimento entre o STJ e o STF:
O entendimento adotado pelo STJ ao unificar o termo inicial para a propositura da ação rescisória, qual seja, o último pronunciamento judicial sobre algum dos capítulos da sentença ou do acórdão rescindendo, independentemente do suposto trânsito em julgado de outros pontos, leva em consideração que o trânsito em julgado, como requisito para a ação rescisória (art. 485, caput, do CPC), somente se opera no momento em que a decisão proferida no processo não seja suscetível de nenhum recurso (art. 467 do CPC), além da circunstância de o desmembramento da sentença ou do acórdão em capítulos para fins de ajuizamento da ação rescisória gerar indesejável insegurança jurídica para as partes.
Nesse ponto, no entanto, não se desconhece que o projeto do novo Código de Processo Civil que tramita no Senado Federal propõe a coisa julgada progressiva. Também a Primeira Turma do egrégio Supremo Tribunal Federal vem de adotar, em recente julgado de relatoria do Ministro MARCO AURÉLIO, entendimento segundo o qual o prazo decadencial de ação rescisória, nos casos de existência de capítulos autônomos, deve ser contado do trânsito em julgado de cada decisão (RE n. 666.589⁄DF, DJe de 3.6.2014). Em tais condições, caso mantida a proposta do novo Código de Processo Civil e eventual alteração da jurisprudência do egrégio Supremo Tribunal Federal, no tempo oportuno, a Corte deverá promover novo exame do enunciado n. 401 da Súmula deste Tribunal. (negrito não constante do original).
O Eminente Relator ainda considerou em seu voto a existência de previsão no projeto do Novo Código de Processo Civil da coisa julgada progressiva, que, em suma, representa a positivação do entendimento do STF acima mencionado. No entanto, até que seja promulgado o Novo CPC, bem como a confirmação do entendimento do STF, a Súmula 401 continuará vigente, como restou destacado.
III – CONCLUSÃO
Conforme observado, o STJ entendeu por permanecer com sua orientação e manter a vigência do enunciado 401 de sua Súmula.
Isto porque, quanto ao precedente da Suprema Corte, verificou-se que foi oriundo da Primeira Turma que, embora decidido de forma unânime, contou apenas com três julgadores na ocasião (Ministro Marco Aurélio, Relator e Presidente, Ministra Rosa Weber e Ministro Roberto Barroso), pois os dois outros integrantes (Ministro Luiz Fux e Ministro Dias Toffoli) estavam impedidos. Como se trata de tema passível de discussão, visto que ainda há oito ministros que podem influenciar no resultado, pode ser que esse entendimento seja superado ou confirmado em futura afetação da temática ao Plenário.
Este é o sentido conferido pela Corte Especial do STJ, ao manter o teor da Súmula 401, postura adotada até para transmitir uma segurança maior aos jurisdicionados sobre a necessidade de aguardar a pacificação do tema junto ao STF, e, assim, harmonizar seu entendimento com a da Suprema Corte. Justamente por isso o Eminente Relator consignou em seu douto voto que havendo “eventual alteração da jurisprudência do egrégio Supremo Tribunal Federal, no tempo oportuno, a Corte deverá promover novo exame do enunciado n. 401 da Súmula deste Tribunal.”.
Ainda analisando o voto do Relator, Ministro Antônio Carlos Ferreira, no referido REsp 736.650/MT, da Corte Especial, verificou-se também a menção ao projeto do novo Código de Processo Civil. De fato, o projeto prevê em seu art. 978, § 3º, o seguinte texto:
CAPÍTULO VI
DA AÇÃO RESCISÓRIA
Art. 978. (...)
§ 3º A ação rescisória pode ter por objeto apenas um capítulo da decisão.
Claro que, uma vez promulgado o texto, passa a ser o novo balizador do termo inicial para ajuizamento da ação rescisória. No entanto, como ainda se trata de apenas um projeto, podendo ser alterado em virtude das discussões naturais do Parlamento, deve-se deixar, a princípio, de lado este ponto para se focar nas discussões de ordem prática como o embate jurisprudencial aqui indicado.
Demais disso, em que pese o entendimento do Pretório Excelso e do próprio projeto do novo CPC, a posição defendida pelo STJ parece ser a mais consentânea com evolução que vem sendo implementada no âmbito do sistema processual brasileiro, notadamente no que toca a redução de procedimentos e recursos incidentais[4]para fins de primar pela observância dos princípios da celeridade e da razoável duração do processo, sem esquecer do devido processo legal, de modo a concentrar as alegações recursais contra decisão de mérito proferida ao final[5].
Nesta esteira, consoante o próprio STJ reconheceu no julgamento do já mencionado REsp 736.650/MT, “também figura-se como incabível o trânsito em julgado de capítulos da sentença ou do acórdão em momentos distintos para evitar tumulto processual decorrente de inúmeras questões de mérito julgadas em um mesmo feito”.
Todavia, o desfecho deste impasse somente será sabido ou com a pacificação da matéria pelo Supremo Tribunal Federal, especialmente em havendo julgamento proferido por seu Plenário, ou pela promulgação do novo Código de Processo Civil, caso mantido o texto do parágrafo 3º do art. 978 do projeto. O que vier primeiro para harmonizar a assunto, o jurisdicionado agradece, em nome da segurança jurídica.
BIBILIOGRAFIA:
ASSUMPÇÃO NEVES, Daniel Amorim. Manual de Direito Processual Civil - Volume Único. Ed. Método. 5ª Edição: São Paulo, 2013.
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 – disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm
Lei n. 5.869/1973: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5869compilada.htm
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – www.stf.jus.br
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – www.stj.jus.br
Notas
[1] Art. 5º (...).XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;
[2] ASSUMPÇÃO NEVES, Daniel Amorim. Manual de Direito Processual Civil - Volume Único. Ed. Método. 5ª Edição: São Paulo, 2013. Pg. 535.
[3] Existindo capítulos autônomos e independentes na decisão judicial e tendo o eventual recurso impugnado apenas alguns deles, os capítulos não impugnados são considerados transitados em julgado. Neste sentido: ASSUMPÇÃO NEVES, Daniel Amorim. Manual de Direito Processual Civil - Volume Único. Ed. Método. 5ª Edição: São Paulo, 2013. Pg. 535.
[4] Exemplo claro é a da Lei 11.187/2005, que alterou a sistemática do agravo de instrumento, passando a ser este excepcional e retido a regra.
[5] No mesmo sentido há o sistema do Direito Processual do Trabalho, o qual, fundado na célere prestação jurisdicional, concentra na sentença ou acórdão as decisões passíveis de recurso.