4. As modernas teorias do bem jurídico-penal e sua materialização constitucional.
A busca por uma teoria que melhor explique o bem jurídico penal não se esgotou nos tempos passados, ainda hoje vem surgindo teorias que visam encontrar um substrato para o bem jurídico-penal e que também proporcione um suporte fático para o Direito Penal no Estado Democrático de Direito. Nos tempos atuais coexistem três correntes que estudam este tema: a teoria sociológica, as teorias constitucionalistas e a teoria ético-social.
a) Teorias Sociológicas: Segundo Luiz Regis Prado[19] as correntes sociológicas são: as funcionalistas sistêmicas e internacionalistas simbólicas. Já Juliana Del Carpio[20] prefere nominá-las como teoria social e teoria do conflito.
Bem alerta Yuri Coelho [21] que a falta de um consenso nominativo não possui qualquer efeito com relação ao conteúdo das teorias, nesse caminho, este artigo seguirá a nomenclatura proposta por este Autor, denominando as teorias de: Teoria funcionalista-sistêmica e teoria do conflito.
a¹) Teoria Funcionalista-Sistemica: Esta teoria desenvolve-se a partir das formulações teóricas de Parsons e Luhmann. Para estes autores o sistema social consistia em um sistema regido por funções para sua auto sobrevivência e, portanto estas funções devem ser realizadas da forma adequada.
Havendo o fenômeno da disfuncionalidade, ou seja, a prática de um fato típico para o Direito Penal, é que surge a necessidade de correção desta conduta disfuncional bem como a reorientação para uma condição de funcionalidade sistêmica.
Explica Juarez Tavares[22] que para Parsons a norma jurídica seria um instrumento de estabilização social e, portanto de confiança na legitimação do poder constituído, e o injusto representaria então uma oposição ao controle social institucionalizado – uma disfuncionalidade do sistema.
Outrossim Tavares expõe ainda que Luhmann diferentemente de Parsons não utiliza métodos empíricos e entende o direito como um subsistema componente do sistema social global, que é pré-constituído, com capacidade operativa de auto reprodução.
Segundo informa Yuri Coelho, Amelung foi um dos grandes expoentes desta teoria e na sua ótica o aspecto “danosidade social” era tratado como uma manifestação de uma disfuncionalidade sistêmica.
Costa Andrade[23] esclarece que Amelung teria estabelecido que o direito penal devesse estar aberto a uma teoria da sociedade, de caráter racional e transsistemático e não uma teoria fundada na lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico já que este fundamento faria o direito penal ter um caráter irracional e sem nenhum controle sociológico. Nesse sentido para este autor as condutas socialmente danosas é que devem ser proibidas do direito penal.
Luiz Regis Prado[24] alerta que Amelung retira então do bem jurídico penal o seu traço de independência, eliminando a sua função dogmática crítica e limitadora do jus puniendi estatal já que entende ser a danosidade social o critério da aferição da disfuncionalidade das condutas ocorrentes no âmbito penal.
Diante dos fundamentos desta teoria, Yuri Coelho analisa que o funcionalismo-sistêmico de Amelung retira a pessoa humana da posição central do sistema penal e volta as atenções para priorizar a racionalidade do sistema na solução de conflitos e a regulação de condutas disfuncionais . Mormente, caberia então ao legislador através de um conjunto de opções políticas, eleger o que fosse socialmente danoso.
O Autor baiano[25] pontua ainda que em razão deste pensamento não fornecer nenhum substrato que possa efetivamente limitar a atividade do Estado no processo de criminalização de condutas é que esta teoria funcionalista-sistêmica poderia servir de base legitimadora tanto de um sistema totalitário quanto a um sistema Democrático. Afinal, depende apenas do legislador a livre escolha de quais as condutas danosas para a sociedade.
a²) A teoria do Conflito: Basicamente representada por Ralf Daherendorf, Lewis Coser, e George D. Vold, surgiu como resposta às teorias funcionalistas, tendo por base que os conflitos sociais são regidos pela divisão de classes fundada nas diferenças decorrentes dos modelos socioeconômicos adotados.
Esta teoria entendia ser o direito penal um subsistema essencial para o controle social e manutenção das estruturas sociais calcadas na divisão política e econômica existente na sociedade. Como bem analisa Molina[26] para a teoria do conflito o principal instrumento do controle social seria o direito penal exercido por meio da política criminal que favorecesse os grupos dominantes.
A grande diferença então da teoria do conflito para a teoria estrutural funcionalista seria o fato de que para esta teoria a sociedade seria monolítica e os valores seriam produtos de um consenso social.
De forma oposta, a teoria do conflito pressupõe a existência de uma sociedade politicamente plural em que as pautas valorativas não são frutos de consenso, mas sim resultado de uma dominação de um grupo sob os outros. O direito penal, para esta teoria não seria então a ultima ratio mas sim instrumento de garantia da sua posição privilegiada na sociedade e, por esta razão pela a sua utilização para apenas defender os interesses das classes sociais dominantes seria legítima.
a³) Teorias Constitucionais:O surgimento das teorias constitucionais aconteceu por meio da preocupação de que sejam determinados critérios mais precisos para a determinação de bens jurídicos penalmente relevantes. Preocupava-se ainda que esta escolha fosse um reflexo dos valores constitucionalmente assegurados e pudesse servir como concreto limitador ao legislador penal ordinário.
Como se vê o grande desafio para estas teorias consiste na dificuldade de se apontar qual o instrumento capaz de proceder à construção de uma teoria do bem jurídico penal que fosse alinhada aos ideais e necessidades do Estado Democrático de Direito. Ademais, é certo que esta ferramenta deve ser capaz de vincular o legislador e o intérprete.
É consenso da maioria doutrinária estrangeira: Roxin, Navarrete, Bricola e em nosso país doutrinadores como: Luiz Regis Prado, Figueiredo Dias, Bittencourt, Luis Flávio Gomes e Maria Auxiliadora Minahin, que apenas a Constituição reúne todos estes atributos sendo, portanto um instrumento normativo capaz de oferecer um suporte fático e legitimador para a teoria do bem jurídico-penal.
Na apurada ótica de Luiz Regis Prado[27] o “conceito de bem jurídico deve ser inferido na Constituição, operando-se uma espécie de normatização de diretivas político-criminais”. Nesse passo as teorias constitucionais se subdividem em as de caráter geral e as de fundamento constitucional estrito.
b)Teorias Constitucionais de Caráter Geral: Estas teorias tomam por guia a Constituição Federal como um todo e a partir dela é que se norteia todo processo de criminalização de condutas, conferindo ao legislador plena liberdade para o desempenho desta função, devendo somente ficar atento os princípios gerais constitucionais.
Neste passo, a Constituição desempenha a função apenas de um marco referencial sob o qual deve ser programada a política-criminal.
Afirma Luiz Regis Prado[28] que os adeptos mais famosos desta teoria são: Roxin, Rudolphi e Pulitanó. Observa também que para Roxin o direito penal possuiria duas funções: uma que se consistia na proteção de bens jurídicos e a outra no cumprimento das prestações de caráter público. Somente com a realização destas funções é que seria permitido ao cidadão o livre desenvolvimento de sua personalidade, configurando assim o elemento imprescindível para a efetivação de uma condição digna – valor máximo da nossa Constituição.
Outrossim afirma Luiz Regis Prado que Rudolph defende que os valores fundamentais devem ter referencia constitucional e que o legislador ordinário a eles se vincula, obrigando-se a proteção de bens jurídicos prévios ao ordenamento penal e cujo conteúdo seja determinado pelos valores da Lei Maior.
Bem acertada as críticas feita por Yuri Coelho[29] quando assevera que a Teoria Constitucional de caráter geral apresenta uma fundamentação vaga por entender que o legislador tem apenas a tarefa de não infringir os princípios essenciais do Estado Democrático de Direito sem se preocupar com a tutela destes valores ou de outros implícitos de forma mais precisa.
b²) Teoria de Fundamento Constitucional Estrito: Esta teoria tem por substrato o estreitamento do amplo grau de discricionariedade dado ao legislador com a teoria de caráter geral. O decote traçado por esta teoria consiste no entendimento de que ao legislador só é disponível a criminalização de condutas que representem uma efetiva violação dos valores constitucionais essenciais para a sociedade.
Nesse passo, em razão dos conflitos valorativos existentes na comunidade, deve o legislador pautar-se nos valores eleitos pela Constituição para tutelar os bens jurídicos que necessitam da tutela penal. A limitação imposta por esta teoria ao legislador penal impõe que se a norma gerada for confrontante com esta pauta de valores, será eivada de inconstitucionalidade material.
F. Bricola, E. Musco, F. Angioni são alguns dos nomes que sustentam este pensamento. Sob esta teoria, há que se aplaudir também o equilíbrio estabelecido entre o valor tutelado e o valor que sofre a violação já que segundo afirma Yuri Coelho, Angioni e Moccia[30] entendem que apenas há legitimidade no processo de criminalização quando houver uma proporção da dignidade constitucional existente entre o valor liberdade e o bem afetado pelo injusto penal.
Esta afirmação tem plena guarida do constitucional princípio da proporcionalidade, que embora não expressamente exposto no texto da Lei Maior ganha vida por meio de diversos dispositivos e deve especialmente nortear a atividade legislativa.
Nesse passo, deve existir proporcionalidade não só entre a gravidade do delito e da pena, mas também entre o grau de importância do bem jurídico penalmente tutelável e o bem jurídico ferido pela sanção penal. É por toda coerência desta teoria que este artigo também se filia ao seu arcabouço teórico.
5. O bem jurídico penal transindividual e seu conceito.
Embora o estudo e o fervor dos debates sobre o conceito e as conseqüências da tutela de bens jurídicos transindividuais sejam recentes, o reconhecimento da existência de bens de natureza é coletiva já existe desde Birbaum. Em sua classificação os crimes eram etiquetados em naturais (violadores dos bens que pela natureza já são dados aos homens) e os crimes sociais (crimes que ameaçam a vivencia em comunidade).
Com o passar do tempo, em virtude das experiências vivenciadas pela sociedade na busca da garantia de direitos individuais face aos arbítrios do Estado nota-se que os estudiosos foram impulsionados a se dedicarem em maior medida ao estudo do bem jurídico individual.
Esta situação se perdurou por longos anos, até que a publicação da marcante obra “sociedade de risco” de Ulrich Beck promoveu uma grande revolução do pensamento de todas as ciências, sobretudo, nas ciências jurídicas. É nesse contexto que foco da tutela penal passou a mudar seu alvo voltando suas baterias para o bem jurídico transindividual.
Isso porque o acidente de Chernobyl em 1986 (ano da publicação da obra) provocou a análise de Beck no sentido de que o desenvolvimento da sociedade e a produção de riquezas têm por sistemática conseqüência a produção de riscos sociais infindáveis, vez que os riscos da civilização são um “barril de necessidades sin fundo¸ inacabáveis, infinito” [31].
A transição para a sociedade industrial-capitalista impulsionou o desenvolvimento da tecnologia e a corrida desenfreada em busca do lucro. Tal situação somada ao aumento populacional e conseqüente massificação do consumo passaram a gerar situações de “risco social” que nunca antes experimentada, gerando assim constantes ameaça a bens jurídicos socialmente relevantes como o meio ambiente, a saúde pública dentre outros imprescindíveis para a vida em comunidade.
Em face deste cenário, o Direito Penal da modernidade não poderia se furtar de prestar tutela a bens que de tão essenciais são elencados pela Constituição como sendo imprescindíveis para a existência digna. Ademais, já que sendo a ultima ratio, o instrumento de maior força do Estado deverá sim empenhar esforços na proteção de bens tão grandiosos.
Como bem vislumbra a professora Minahim[32] a guinada tecnológica provocou, assim, profunda transformação da criminalidade que aparece cada vez mais imbricada com atividades lícitas e, por isso, de difícil visibilidade. É diante desta observação é que não se pode concordar com os pensamentos desenvolvidos pela Escola de Frankfurt, os quais entendem que o Direito Penal deve cuidar apenas do seu âmbito clássico de tutela – os direitos individuais, sendo que os direitos metaindividuais deveriam então ser legados a outros ramos do Direito, como o Direito Administrativo Sancionatório e até mesmo ao Direito Civil.
Roxin[33] afirma que em cada situação histórica e social de um grupo humano existem elementos imprescindíveis para a existência em comunidade, estes elementos se traduzem numa série de condições valiosas que devem ser abarcadas pela concepção de “bem jurídico” e, portanto deve também ser tutelado pelo Direito Penal.
Sustenta ainda que no Estado Moderno além da missão de guarida dos bens jurídicos surge para o Direito Penal outra missão: a de garantia, se necessário, de prestações públicas imprescindíveis para o livre desenvolvimento do cidadão e para sua vida digna.
É nesse compasso que o conceito de bens transindividuais pode ser entendido como um grande conjunto que abarca dois outros subconjuntos: os interesses difusos e os coletivos, lato sensu. Este último ainda se divide em interesses individuais homogêneos e interesses coletivos stricto sensu.
Conforme ensina Miguel Nascimento[34] em breves palavras se pode dizer que os direitos individuais homogêneos são aqueles que se vinculam a uma pessoa, contudo possuem titularidade plúrima e natureza divisível já que várias pessoas possuem direitos idênticos e estes decorrem de uma origem comum.
Já os direitos coletivos são aqueles interesses comuns a uma coletividade de pessoas e somente a elas, tais direitos se estruturam sobre o vínculo associativo do grupo (sindicato, família, associação...).
Quanto aos interesses difusos pode-se afirmar que são direitos de coletividade indeterminados, titularizados por uma cadeia abstrata de pessoas que compõe um grupo em que não há um vínculo jurídico determinado. Por essa razão tais interesses são indivisíveis e indeterminados não podendo ser quantificado e nem distribuído pelos seus titulares.