Terroristas atacaram hoje em París a sede da revista Charlie Hebdo fazendo várias vítimas. O incidente foi filmado e as cenas rapidamente chegaram ao Brasil [1].
Charlie Hebdo se tornou mundialmente famosa por divulgar charges que foram consideradas ofensivas pelos seguidores da religião criada pelo profeta Maomé [2]. Sua irreverência e altivez em defesa da liberdade de imprensa foram amplamente reconhecidas. Mas isto lhe custou ameaças e, sem dúvida alguma, a tragédia que se tornou espetáculo.
A reação do governo francês foi imediata. O episódio revela, porém, que os jornalistas franceses tem tanta segurança quanto seus colegas brasileiros, ou seja, nenhuma. O nivelamento entre França e Brasil no que se refere à insegurança jornalística é evidente. Mas não deixará ninguém contente.
No Brasil um jornalista tomou tiro no olho e não foi indenizado porque o TJSP considerou que o policial estava trabalhando e que ele havia se colocado indevidamente na linha de tiro. Na França os terroristas não usaram balas de borracha. Os brasileiros sempre citavam a França como um exemplo de garantia da liberdade de imprensa. Ficar cego sem indenização é melhor do que ser morto e não ver a família indenizada. Mesmo assim, duvido muito que os jornalistas franceses venham a citar o Brasil como um exemplo a ser seguido pela França.
O espetáculo da violência contra jornalistas é notícia. E como toda notícia está sujeita a se tornar velha e descartável. A tragédia dos jornalistas da Charlie Hebdo não será esquecida tão rapidamente quanto a do jornalista brasileiro cegado pela PM/SP. Novas tragédias renovarão, porém, renovarão o interesse do público por sangue, fazendo todos os quase todos os leitores e telespectadores se esquecerem daqueles que sangraram e foram esquecidos.
A luta pelo direito do esquecimento tem uma contrapartida. O esquecimento que foi indesejado, mas que se tornou realidade porque o espetáculo deve continuar e o respeitável público perde o interesse na notícia com a mesma rapidez com que se interessou por ela.
“O que o espetáculo oferece como perpétuo é fundado na mudança, e deve mudar com sua base. O espetáculo é absolutamente dogmático e, ao mesmo tempo, não pode chegar a nenhum dogma sólido. Para ele, nada pára; este é seu estado natural e, no entanto, o mais contrário à sua propensão.” (A Sociedade do Espetáculo, Guy Debord, Contraponto, 10ª reimpressão, 2008, p. 47)
A revista Charlie Hebdo alimentou a sociedade do espetáculo provocando deliberadamente a ira dos radicais islâmicos. Alguns deles atacaram os jornalistas da revista e o fato se tornou um novo espetáculo. Há diferença axiológica e ontológica entre os jornalistas da revista e os terroristas fizeram. No plano espetacular referido por Debord, onde tudo se resume à imagem da realidade criada pela sociedade e seu desfrute temporário, todas as barreiras e diferenças deixam de existir. Aqueles que se sentiram ofendidos com as charges da Charlie Hebdo ficarão tentados a sorrir com as gravações do atentado que foram divulgadas, muito embora tenham chorado os mortos em Gaza.
O que dirão os jornalistas franceses se alguém começar a divulgar charges irônicas sobre o ataque terrorista que ocorreu hoje em Paris? A liberdade de imprensa deve ser absoluta ou os jornalistas precisam agir com cautela? O respeito à diversidade pode coexistir com o absolutismo da liberdade jornalística? Nenhum jornalista da Charlie Hebdo morto hoje poderá responder estas questões. Os que sobreviveram provavelmente darão hoje respostas diferentes das que davam há dois dias.
O espetáculo se nutrirá da discussão sobre o espetáculo e seguirá em frente qualquer que seja a reação do Estado francês. Mas uma coisa é certa: a direita francesa usará o episódio para chegar ao poder nas próximas eleições com a finalidade de aterrorizar os imigrantes.