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O STF, os agravos regimentais e os embargos declaratórios: uma breve reflexão sobre o “faz-de-conta” de alguns julgamentos no Supremo Tribunal Federal

Agenda 22/01/2015 às 08:20

O ministro Marco Aurélio disse que os julgamentos dos agravos regimentais e embargos declaratórios pelas Turmas do Tribunal não devem ser levados a sério, pois a maioria dos ministros não domina o assunto. Reconheceu-se a falência do atual modelo de processo e julgamento.

1. Em recente sessão do Plenário do Supremo Tribunal Federal, no início do julgamento do Recurso Extraordinário n. 723.651[1], que cuida do tema da incidência do IPI sobre a importação de automóvel por pessoa física, o relator do feito, ministro Marco Aurélio, disse que os julgamentos dos agravos regimentais e embargos declaratórios pelas Turmas do Tribunal não devem ser levados a sério, pois a maioria dos ministros não tem pleno domínio do que se está a julgar, ante a quantidade invencível de feitos, de modo que somente a pacificação do tema pelo soberano Plenário serviria de fixação de uma jurisprudência da Corte.  

2. Ou seja, para o segundo magistrado mais antigo da atual composição do Tribunal, as decisões das Turmas, especialmente julgadas em agravos regimentais ou embargos declaratórios, não são dignas de confiança nem de credibilidade. Essa afirmação de Sua Excelência não constituiu novidade para todos quantos acompanhamos o dia-a-dia das sessões de julgamento do STF. Mas não me recordo de uma enunciação tão clara da “falência” do atual modelo de processo e julgamento da Corte, especialmente no tocante aos julgamentos dos agravos regimentais e dos embargos declaratórios.

3. Essa “falência” do atual modelo do STF também tem sido objeto de algumas manifestações do ministro Luís Roberto Barroso>[2], nas quais Sua Excelência tem apontado com precisão algumas “patologias” da Corte e tem oferecido propostas de solução para alguns problemas do nosso sistema processual, especificamente no que concerne ao STF.

4. Como todos sabemos, muitas das soluções dependem de alterações do texto constitucional, outras de alterações legislativas ou regimentais, mas seria possível melhorar a dinâmica da Corte com uma modificação de “costumes” também, como tem insistido o ministro Luís Roberto Barroso.

5. Antes, todavia, é preciso ir aos fatos e números. Segundo informações do próprio STF>[3], no ano de 2014, foram proferidas 17.070 decisões colegiadas (Plenário ou Turmas) e 97.351 decisões monocráticas, perfazendo um total de 114.421 decisões proferidas pela Corte. Se o Tribunal estivesse com a sua composição integral (11 magistrados), daria uma média de 10.402 decisões por ministro. Como o Tribunal está em férias/recesso nos meses de janeiro e julho, sobram 10 meses (não vamos levar em consideração o recesso do final de ano, nem os feriados...), o que dá uma média de 1.040 decisões por mês. Arredondando cada mês para 30 dias (não vamos levar em consideração os fins de semana), dá uma média de 35 decisões por dia. Se o ministro se dedicar 8 horas por dia, todos os dias, a analisar processos e decidir casos, dá uma média de 4,4 decisões por hora. E, arredondando mais um pouco, dá uma média de 1 decisão a cada 15 minutos. Obviamente a estatística é “grosseira” e, paradoxalmente, generosa. A cada 15 minutos um ministro ou órgão do STF emite uma decisão (!!!???). Na esteira das manifestações do ministro Luís Roberto Barroso isso é constrangedor.

6. Como solucionar essa situação? Comecemos pelas alterações constitucionais. É preciso modificar as competências do STF e de todos os demais tribunais, juízes e órgãos judiciários brasileiros. Finalidade dessa modificação de competências? Reduzir ao máximo possível o número de feitos que podem tramitar perante o STF e perante os Tribunais Superiores, mormente STJ e TST. Fortalecer as decisões das instâncias ordinárias, sobretudo da primeira instância.

7. Como fortalecer normativamente essas decisões das instâncias ordinárias? Somente seria cassada ou reformada a decisão judicial que fosse: a) ou manifestamente teratológica ou desarrazoada; b) ou que fosse contrária à letra do preceito normativo (Constituição, Lei, Tratado, Contrato etc.); e c) ou que fosse contrária à jurisprudência predominante nas instâncias superiores.

8. E como aumentar normativamente a responsabilidade do magistrado? O magistrado que decidisse contra as provas nos autos, ou de modo desarrazoado ou teratológico, ou contra a letra dos preceitos normativos, ou contra a jurisprudência predominante das instâncias superiores, deveria responder perante os competentes órgãos de controle de sua atividade judiciária. O magistrado não tem o direito de julgar do modo que lhe aprouver. O magistrado tem o dever de julgar em conformidade com o ordenamento jurídico. Se o magistrado decide em desconformidade com o ordenamento jurídico, ele deve responder por isso.

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9. Essas medidas draconianas são indispensáveis para a racionalidade e funcionalidade do nosso sistema jurídico. Nenhum magistrado, de nenhuma instância, está acima do Direito e da Justiça (ordenamento jurídico). Não basta a simples cassação ou reforma de decisões judiciais. É preciso responsabilizar o emissor da decisão contrária ao Direito e à Justiça. Ninguém está acima das Leis. Nem mesmo os magistrados. O magistrado há de ser vassalo do Direito, e não o seu suserano. O magistrado é servo da Justiça, e não o seu senhor.

10.  Portanto de um lado é preciso reduzir drasticamente as competências do STF e dos demais Superiores, e fortalecer o poder dos magistrados das instâncias ordinárias. De outro, justamente porque terão mais poder, os magistrados, especialmente do primeiro grau, deverão ter mais responsabilidade, e deverão responder se suas decisões forem contrárias ao ordenamento jurídico. O magistrado só tem liberdade de julgar em conformidade com o Direito e com a Justiça. Ele não é livre para julgar contra o Direito e contra a Justiça, repita-se: ordenamento jurídico.

11. E o que deveria “sobrar” para o STF e demais Superiores? Somente as questões relevantes, tanto no aspecto constitucional quanto no infraconstitucional. A principal função do STF e dos Tribunais Superiores consiste em unificar e pacificar os eventuais entendimentos divergentes entre as instâncias ordinárias, bem como preservar a força normativa da Constituição e das Leis. O STF e os Tribunais Superiores devem traçar as diretivas que deverão ser seguidas pelas outras instâncias.

12. Nessa perspectiva, algumas das propostas do ministro Luís Roberto Barroso merecem chancela. Dentre elas, a que limita o número de reconhecimentos de repercussão geral por ano e por ministro. Com efeito, se cada ministro do STF relatar 10 feitos com repercussão geral, serão pelo menos 100 teses jurídicas estabelecidas na Corte. Em uma década seriam 1.000 teses jurídicas. 1.000 teses constitucionais. Será que há espaço para 1.000 teses constitucionais? E no STJ? E no TST? Quantas teses infraconstitucionais!!!! Será que há tantas questões jurídicas controvertidas?

13. Outra proposta de caráter republicano e democrático consiste na abolição dos “foros privilegiados”. No estágio de desenvolvimento civilizatório que estamos não há espaço para “privilégios” ou “prerrogativas” injustificadas ou desnecessárias. Não há nenhum argumento ou fundamento convincente a justificar o tratamento diferenciado entre o cidadão comum e a autoridade pública. Nada, salvo a nossa tradição patriarcal e patrimonialista, alicerçada na odiosa ideia de superioridade do “poderoso” em face do “comum”.

14. Mas essas desejáveis modificações são praticamente impossíveis de serem realizadas, pois não há força política que seja capaz de quebrar as resistências contra o fim desses injustificáveis e inaceitáveis privilégios. Ademais, em termos de competências jurisdicionais, vige em nosso sistema cultural que quanto maior for a competência, maior será o poder e a importância do órgão ou da autoridade. É o contrário. Há a banalização e vulgarização do poder jurisdicional.

15. Se as modificações constitucionais são quase impossíveis, as alterações legislativas ou regimentais são menos complicadas. E, com efeito, a recente aprovação do novo Código de Processo Civil sinaliza algumas importantes mudanças, sobretudo no fortalecimento normativo dos precedentes judiciais. De toda sorte, deveria competir ao magistrado (juiz, desembargador ou ministro), de qualquer instância ou tribunal, solucionar de vez qualquer demanda com espeque em jurisprudência predominante dos tribunais (ainda que não sumulada), respeitando-se, obviamente, a hierarquia normativa dessa jurisprudência.

16. Se a decisão judicial estiver em conformidade com a jurisprudência predominante dos tribunais, não deveria caber recursos. E se houvesse interposição de recurso manifestamente inadmissível ou infundado, deveria ou a parte ou o advogado ser multado. Seria uma medida drástica, mas profilática. Mas, reitera-se, a decisão deve estar em sintonia com a jurisprudência predominante. E o recurso há de ser manifestamente inadmissível ou infundado para dar ensejo à “sanção processual-pecuniária”.

17. Outra mudança seria na forma dos julgamentos. Atualmente o feito é apregoado na pauta do respectivo órgão do tribunal. Após a leitura do relatório pelo magistrado-relator, naquelas hipóteses regimentalmente permitidas, oportunizam-se as sustentações orais dos advogados. Após as sustentações orais, o magistrado-relator lê o seu voto. Após são colhidos os votos dos demais magistrados. Isso poderia mudar. E nem haveria necessidade de alterações regimentais. Basta alterar a prática cultural dos magistrados nos julgamentos.

18. Eis algumas sugestões.

19. Antes da confecção do relatório e da inclusão do feito em pauta, sempre que possível e conveniente deveria haver audiências públicas, ouvindo-se além das partes e de seus respectivos advogados, eventuais “terceiros interessados” ou “amici curiae”. Nessas audiências, poderiam os magistrados formular indagações e tirar dúvidas em relação aos temas controvertidos. Seria um amplo debate entre o Tribunal, as partes e a sociedade.

20. Finalizadas as audiências, o magistrado-relator confeccionaria o relatório da demanda. Os relatórios deveriam ser exaustivos. Neles deveriam constar, de modo analítico, todas as questões fáticas e jurídicas relativas à controvérsia. Neles deveriam estar presentes informações sobre a tradição jurisprudencial na solução de casos similares, inclusive na experiência de outras Nações. Neles devem estar expostas as mais relevantes manifestações doutrinárias sobre o tema, inclusive de direito estrangeiro ou comparado. Em suma, o relatório deve esgotar ao máximo possível a questão e apontar os diversos caminhos e soluções que o tema reclama. O relatório há de ser distribuído com razoável antecedência para os demais magistrados da Corte, e deve ser disponibilizado para o público em geral, salvo se o feito correr em segredo de justiça.

21. Na sessão de julgamentos, o magistrado-relator faria uma breve suma do relatório e passaria a palavra para os advogados formularem as suas sustentações orais. Após as sustentações orais, seria aberto o debate entre os magistrados para que deliberassem, a partir do relatório e das sustentações orais, no sentido de qual deve ser a melhor e mais adequada solução para o caso. Após a prévia deliberação, quando todos os magistrados se sentissem aptos e confortáveis para votar, seriam tomados os votos, a começar do magistrado-relator. Ou seja, antes da votação, haveria deliberação.>[4]

22. Eis o grande problema dos julgamentos dos tribunais, e do STF em particular. Há muita votação, mas pouca deliberação. Pouco debate. Cada magistrado já chega com o seu voto pronto e o seu “ponto-de-vista” consolidado. Não há formação “colegiada” da decisão. Há um somatório de “votos”. Isso está errado. Isso precisa mudar.

23. Para que o Tribunal refine a sua qualidade argumentativa não há necessidade de modificações normativas, basta mudar a cultura dos magistrados e a prática dos julgamentos. Primeiro esgotar a deliberação. Debater o máximo possível. Finalizado o diálogo, o debate, a deliberação, que se colham os votos. Antes de votar, deliberar, discutir, dialogar. Esgotar as dúvidas. Insisto: só votar após deliberar. O “relatório” (a fala) seria analítico e exaustivo. O “voto” (a decisão) seria conciso e preciso.

24. Creio que essa singela mudança comportamental faria uma enorme diferença na dinâmica dos julgamentos das Cortes, mormente a “Constitucional”. Talvez assim, as decisões dos Tribunais seriam levadas a sério, pois a fundamentação seria melhor conhecida e os magistrados esgotariam as várias alternativas possíveis para o tema, sinalizando para os outros magistrados e para a sociedade como um todo, como efetivamente decidem os tribunais.

25. Evidentemente que além dos magistrados, os demais profissionais do Direito (advogados, promotores, procuradores, defensores e professores) também temos compromissos éticos com a Justiça, pois a falência do sistema judicial implicará na “morte” do sistema jurídico como um todo. E todos perderemos juntos. Ou podemos nos salvar juntos. A decisão é nossa. São nossas breves reflexões.


Notas

>[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 723.651. Plenário. Relator ministro Marco Aurélio. Brasília, 2012. Acessar www.tvjustica.jus.br ou www.youtube.com

>[2] Acessar www.luisrobertobarroso.com.br – “Reflexões sobre as competências e o funcionamento do Supremo Tribunal Federal”; “Estado, Sociedade e Direito – Diagnósticos e Propostas para o Brasil”; e “Retrospectiva 2014 – Ano trouxe mudanças e amadurecimento do Supremo Tribunal Federal”.

>[3] Acessar www.stf.jus.br. Clicar em Estatísticas do STF/Decisões

>[4] A questão da “deliberação” tem sido objeto de reflexões importantes como as de Virgílio Afonso da Silva (O STF e o controle de constitucionalidade: deliberação, diálogo e razão pública), Conrado Hübner Mendes (O Projeto de uma Corte Deliberativa), Carlos Bastide Horbach (É preciso mais deliberação no Supremo Tribunal Federal?), José Rodrigo Rodriguez (Como decidem as Cortes? Para uma crítica ao Direito brasileiro), dentre outros acadêmicos preocupados com uma prestação jurisdicional capaz de realizar a Justiça e o Direito. 

Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

LUIS CARLOS é piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; orador da Turma "Sexagenária" - Prof. Antônio Martins Filho; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA, do Centro Universitário de Brasília - CEUB e do Centro Universitário do Distrito Federal - UDF. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; e "Lições de Direito Constitucional".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. O STF, os agravos regimentais e os embargos declaratórios: uma breve reflexão sobre o “faz-de-conta” de alguns julgamentos no Supremo Tribunal Federal . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4222, 22 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35726. Acesso em: 21 nov. 2024.

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