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A hipótese de dispensa de licitação para contratação de organizações sociais em face da análise do regime jurídico dos contratos de gestão

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Agenda 03/02/2015 às 08:35

Trata sobre a hipótese de dispensa de licitação para a celebração de contratos de prestação de serviços com organizações sociais para atividades contempladas no contrato de gestão.

O presente texto pretende traçar uma breve análise acerca do inc. XXIV do art. 24 da Lei n. 8.666/93, o qual prevê hipótese de dispensa de licitação “para a celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão”.

Ao que parece, é comum, diante de uma leitura menos atenta, ocorrer equívoco sobre o verdadeiro objeto de dispensa. Demonstrar-se-á que a dispensa não se presta à celebração do contrato de gestão, mas, em verdade, a dos contratos de prestação de serviços dele decorrentes.

Inicialmente, cabe avaliar separadamente alguns institutos citados.

O dispositivo ora analisado se refere à dispensa para celebração de contratos de prestação de serviços.

A avença em questão se conforma como um contrato administrativo, regido preponderantemente pela Lei n. 8.666/93, o qual pode ser definido em linhas gerais como um acordo de vontades em que uma das partes é a Administração Pública, com o objetivo de satisfazer determinado interesse público, para tanto dispondo de poderes que exorbitam a esfera do Direito Comum (cláusulas exorbitantes), tendo sua ação limitada pela cláusula que garante a intangibilidade econômico-financeira do ajuste.

Serviço, segundo a definição do art. 6º da Lei de Licitações, define-se como “toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais”.

Dessa forma, temos que o contrato de prestação de serviços, referido na lei, identifica-se como um contrato administrativo, pelo qual a Administração, por meio de contratação direta ou por licitação, celebra instrumento formal com vistas à realização de um serviço, compreendido na sua forma mais ampla.

Segundo a norma, a contratação poderá ser realizada por meio de dispensa de licitação.

As contratações efetivadas pela Administração Pública, como regra, devem se submeter a um processo de licitação, conforme determina o art. 37, XXI, da Constituição da República.

A dispensa de licitação é forma excepcional de contratação e, segundo a definição de José dos Santos Carvalho Filho, “caracteriza-se pela circunstância de que, em tese, poderia o procedimento ser realizado, mas que, pela particularidade do caso, decidiu o legislador não torná-lo obrigatório”[1].

A dispensa, no caso em tela, se dirige à pessoa jurídica formalmente qualificada como Organização Social.

Segundo lição de José Eduardo Sabo Paes, essas organizações sociais são assim definidas:

As organizações sociais (OS) são um modelo ou uma qualificação de organização pública não estatal criada dentro de um projeto de reforma do Estado, para que associações civis sem fins lucrativos e fundações de direito privado possam absorver atividades publicizáveis mediante qualificação específica de lei.

As organizações sociais objetivam ser um modelo de parceria entre o Estado e a sociedade, mas não constituem uma nova pessoa jurídica; inserem-se no âmbito das pessoas jurídicas já existentes sob a forma de fundações, associações civis e sociedades civis, todas sem fins lucrativos. Portanto, elas estão fora da Administração Pública, pois são pessoas jurídicas de direito privado.

(...)

Qualificada como Organização Social, a entidade-fundação, associação ou sociedade estará habilitada a receber recursos financeiros e a administrar bens e equipamentos, e pessoal do Estado. Em contrapartida, para a formação dessa parceria, a OS se obriga a firmar um contrato de gestão com o Poder Público, por meio do qual serão acordadas metas de desempenho que assegurem a qualidade e a efetividade dos serviços prestados ao público.[2]

As organizações sociais estão normatizadas na Lei n. 9.637/98, segundo a qual serão assim formalmente qualificadas pelo Poder Executivo as pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades se relacionem com as seguintes matérias:

- ensino;

- pesquisa científica;

- desenvolvimento tecnológico;

- proteção e preservação do meio ambiente;

- cultura e;

- saúde.

O art. 2º da referida lei define os requisitos específicos a serem atendidos para a habilitação como uma OS.

São os seguintes:

I - comprovar o registro de seu ato constitutivo, dispondo sobre:

a) natureza social de seus objetivos relativos à respectiva área de atuação;

b) finalidade não-lucrativa, com a obrigatoriedade de investimento de seus excedentes financeiros no desenvolvimento das próprias atividades;

c) previsão expressa de a entidade ter, como órgãos de deliberação superior e de direção, um conselho de administração e uma diretoria definidos nos termos do estatuto, asseguradas àquele composição e atribuições normativas e de controle básicas previstas nesta Lei;

d) previsão de participação, no órgão colegiado de deliberação superior, de representantes do Poder Público e de membros da comunidade, de notória capacidade profissional e idoneidade moral;

e) composição e atribuições da diretoria;

f) obrigatoriedade de publicação anual, no Diário Oficial da União, dos relatórios financeiros e do relatório de execução do contrato de gestão;

g) no caso de associação civil, a aceitação de novos associados, na forma do estatuto;

h) proibição de distribuição de bens ou de parcela do patrimônio líquido em qualquer hipótese, inclusive em razão de desligamento, retirada ou falecimento de associado ou membro da entidade;

i) previsão de incorporação integral do patrimônio, dos legados ou das doações que lhe foram destinados, bem como dos excedentes financeiros decorrentes de suas atividades, em caso de extinção ou desqualificação, ao patrimônio de outra organização social qualificada no âmbito da União, da mesma área de atuação, ou ao patrimônio da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, na proporção dos recursos e bens por estes alocados;

II - haver aprovação, quanto à conveniência e oportunidade de sua qualificação como organização social, do Ministro ou titular de órgão supervisor ou regulador da área de atividade correspondente ao seu objeto social e do Ministro de Estado da Administração Federal e Reforma do Estado.

Outro elemento essencial para a compreensão do tema é o contrato de gestão, o qual também possui previsão na Lei n. 9.637/98, entre os arts. 5º e 7º.

Segundo essa lei, o contrato de gestão é o instrumento firmado entre o Poder Público e a OS “com vistas à formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades relativas às áreas” de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde.

Nesse instrumento serão discriminadas as atribuições, responsabilidades e obrigações das partes envolvidas, ou seja, Administração e OS (art. 6º).

Voltando à lição de José Eduardo Sabo Paes:

Por parte do Poder Público contratante, o contrato de gestão é um instrumento de implementação, supervisão e avaliação de políticas públicas, de forma descentralizada, racionalizada e autonomizada, na medida em que vincula recursos ao atingimento de finalidades públicas.

Por outro lado, no âmbito interno das organizações (estatais ou não estatais) contratadas, o contrato de gestão se coloca como um instrumento de gestão estratégica, na medida em que direciona a ação organizacional, assim como a melhoria da gestão, aos cidadãos/clientes beneficiários de determinadas políticas públicas.[3]

Logo, o contrato de gestão objetiva implementar determinada ação, que integre uma política pública, a ser executada pela OS com recursos repassados pelo Poder Público.

Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a “intenção do Governo é a de transferir para entidade qualificadas como organizações sociais atividades antes desempenhadas por órgão públicos ou entidades da administração indireta”.[4]

Assim, antes de adentrar à questão da hipótese de contratação de prestação de serviços via dispensa de licitação, necessário avaliar como serão celebrados os contratos de gestão entre Administração e Organização Social.

Como serão celebrados os contratos de gestão?

Como já referido, quando a Administração pretende firmar um contrato, esse deve ser precedido de processo licitatório, conforme determinação constante no inc. XXI do art. 37 da Constituição da República.

Antes de questionar se há o dever de licitar a celebração do contrato de gestão entre Administração e OS, vale perquirir quanto à natureza dessa avença.

Tarso Cabral Violin, em seu livro “Terceiro Setor e as parcerias com a Administração Pública: uma análise crítica”, após trazer o entendimento de diversos autores[5] acerca da natureza dos contratos de gestão, conclui no sentido de que esses são contratos administrativos:

Entendemos que os contratos de gestão firmados entre a Administração Pública e as organizações sociais tem a mesma natureza jurídica dos contratos administrativos, e não convênios, pois neles há interesses contraditórios, onde a Administração pretende que determinado serviço seja realizado e pagará para que as organizações sociais o realize. Nos contratos de gestão também há as prerrogativas da Administração Pública existentes nos contratos administrativos. É claro que os contratos de gestão têm algumas peculiaridades, e às vezes até são semelhantes aos convênios, mas não há como, pela importância dos serviços realizados pelas organizações sociais, que estas tenham apenas vínculo de convênio com a Administração Pública, onde elas possam denunciar a qualquer momento, sem penalidades.[6]

Maria Sylvia Zanella Di Pietro, leciona que as Organizações Sociais, ao receberem patrimônio e outros aparatos de órgão público cujas atividades foram publicizadas, justamente, repassadas a determinada OS, passam, ou deveriam passar, segundo a doutrinadora, a se submeter ao regime de Direito Público.

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Embora não expressa essa intenção na lei, ela decorre implicitamente de todo o esquema montado e, principalmente, do fato de ter-se deixado ao inteiro arbítrio do poder público a escolha da entidade que vai ser qualificada como organização social. Se a intenção é extinguir um ente público[7] e deixar que sua atividade seja absorvida por entidade privada, a escolha desta não poderia prescindir de licitação ou de outro procedimento adequado para assegurar o princípio da isonomia entre os possíveis interessados.

(...)

Por isso mesmo, para que a organização social se enquadrasse adequadamente nos princípios constitucionais que regem a gestão do patrimônio público e que existem exatamente para proteger esse patrimônio, seria necessário, no mínimo:

a. exigência de licitação para escolha da entidade.

b. comprovação de que a entidade já existe, tem sede própria, patrimônio, capital, entre outros requisitos exigidos para que uma pessoa jurídica se constitua validamente;

c. demonstração de qualificação técnica e idoneidade financeira para administrar o patrimônio público;

d. submissão aos princípios da licitação;

e. imposição de limitações salariais quando dependam de recursos orçamentários do Estado para pagar seus empregados;

f. prestação de garantia tal como exigida nos contratos administrativos em geral, exigência essa mais aguda na organização social, pelo fato dela administrar patrimônio público[8]. (Destacou-se.)

Sobre o assunto, Gustavo Alexandre Magalhães:

Como a Lei n. 9.637/98 prevê que a qualificação das entidades como organizações sociais decorre do exercício de competência conferida ao Ministério da Justiça, em hipótese alguma poder-se-ia substituir um processo de seleção com critérios objetivos por um julgamento discricionário.

(...)

A doutrina especializada e a jurisprudência dos tribunais superiores devem mudar o foco do controle das relações entre o Estado e o terceiro setor. Discutem-se, à exaustão, os critérios para a qualificação de associações e fundações como organizações sociais e organizações da sociedade civil de interesse público, como também o respeito ao devido processo legal nas hipóteses em que o Estado pretende descredenciar as entidades infratoras.

Importa perceber que, muito pior do que analisar discricionariamente a qualificação das entidades é decidir discricionariamente qual o montante financeiro a ser repassado e qual entidade será a beneficiária de tais transferências.

É nesse sentido, portanto, que se afirma que o status de OS ou OSCIP poderia ser utilizado, no máximo, como requisito de habilitação para a celebração de convênios, termos de parceria ou contratos de gestão.

Como observa Sílvio Luís Ferreira da Rocha, o contrato de gestão celebrado entre a Administração e a Organização Social submete-se ao regime de direito público.”[9]

Prosseguindo com a questão da celebração do contrato de gestão, Marçal Justen Filho entende que havendo possibilidade de competição e, portanto, mais de um interessado em firmar negócio com a Administração é necessária a instauração de processo seletivo:

Deve partir-se do ponto de que, havendo possibilidade de competição, será exigível a licitação. A inexigibilidade poderá derivar da ausência de pluralidade de potenciais interessados em participar da contratação. Mas, para tanto, será imperioso que o Estado divulgue sua intenção de promover contratos de gestão com determinado objeto. Não é possível que as contratações de gestão façam-se às ocultas, sem cumprimento do requisito da publicidade. Para tanto, o Estado terá o dever de estabelecer as condições básicas previstas para o contrato de gestão. Em última análise, a existência de um único interessado somente poderá ser apurada mediante a realização de procedimento de natureza seletiva, ao qual todos os possíveis interessados tenham acesso.

(...)

Não sendo hipótese de inexigibilidade, a licitação deverá obedecer ao modelo básico da Lei n. 8.987. É que a apuração das vantagens auferidas pelo contrato de gestão e concessão são similares, já que em ambos o particular se obriga a desenvolver certos esforços em relação a terceiros.

(...)

Ainda quando se supusesse inaplicável a licitação prevista na Lei n. 8.987, a contratação direta do contrato de gestão teria de ser antecedida de procedimento específico. Teria de promover-se oportunidade de disputa, ainda que não subordinada às modalidades específicas de algum dos diplomas pertinentes ao tema. Essa disputa seria norteada por ato convocatório simplificado, no qual estariam contidas as vantagens que o Estado dispõe-se a conceder. Os particulares teriam de apresentar projetos de atuação, com previsão minuciosa de seus deveres e responsabilidades. O critério de seleção terá de ser objetivo, tendo em vista as propostas apresentadas.[10]  (Destacou-se.)

Em que pese, para parte da doutrina, o contrato de gestão possuir natureza de contrato administrativo, de outra parte, não é possível afastar tal instituto de uma aproximação com o regime jurídico dos convênios. Isso porque, em última análise, trata-se de uma parceria entre a Administração e OS com vistas à prestação de um serviço público, “fomentado” com recursos públicos, nas áreas de interesse previstas na Lei n. 9.637/98. Sendo assim, é válido trazer a análise de Luciano Elias Reis sobre o dever de se instaurar procedimento licitatório para celebrar convênio entre Administração Pública e entidade privada, argumentos que servirão ao presente estudo:

De acordo com a definição proposta neste trabalho, que impõe distinções entre a natureza convenial e a contratual, poder-se-ia chegar à rápida e equivocada conclusão que não haveria a necessidade de respeitar o devido processo licitatório, haja vista que o dispositivo, constitucional preceitua a sua imperiosidade para os casos de contratos. Todavia, é valioso recorrer às justificativas da norma constitucional sobre o dever de licitar, e não ficar adstrito à norma conjecturando que a sua exigência se dá com base no enunciado isolado do art. 37, inc. XXI.

A imprescindibilidade de a Administração Pública recorrer a um procedimento lídimo para legitimar a escolha sobre os seus contratados exsurge do princípio republicano, o qual serve de esteio para a prescrição do inc. XXI do art. 37, ou seja, a determinação para deflagrar licitação pública à Administração não decorre simplesmente da dicção deste preceito constitucional.

(...)

Ao mesmo tempo que não se pode concordar com a realização de uma licitação pública, também não se pode assentir com a liberdade sem critério ao agente público na escolha do conveniado. Diante desta notável problemática, defende-se que a Administração Pública, por intermédio de uma interpretação sistemática das normas constitucionais, inclusive o princípio republicano, realize um procedimento administrativo para selecionar o particular que será seu conveniado.

(...)

Quando se fala na feitura de um procedimento administrativo seletivo não se está a dizer que se deva imitar ou copiar um processo licitatório e utilizar outro nomen juris, mas sim que a Administração Pública pode instaurar um procedimento seletivo mais simplificado, no qual sejam assegurados o respeito aos princípios republicano, da isonomia, publicidade e moralidade.[11]

Cabe avaliar, então, a existência dos pressupostos fático-jurídicos que exigem a escolha daquele que irá firmar ajuste com a Administração, entre todos os interessados, de forma isonômica.

Portanto, independentemente da natureza jurídica que se atribua ao contrato de gestão, em respeito aos princípios da impessoalidade, moralidade, economicidade e publicidade, defende-se a instauração de um processo objetivo de seleção da organização privada sem fins lucrativos para celebrar o contrato de gestão com a Administração. Explica-se, ainda que parte da doutrina afaste a natureza do contrato administrativo, defendendo que os contratos de gestão se assemelham a convênios, com base nos preceitos anteriormente referidos, a conclusão é que se deve instaurar um procedimento isonômico de seleção da entidade sem fins lucrativos visando a sua qualificação como OS.

Nesse sentido, necessário destacar o entendimento de Gustavo Alexandre Magalhães, para quem o contrato de gestão efetivamente possui natureza de convênio, o que, todavia, não exime a Administração do dever de licitar pois o convênio em si possui natureza contratual.

Veja nas palavras do autor:

Considera-se que o contrato de gestão, celebrado com as organizações sociais, bem como o termo de parceria, celebrados com as OSCIPs, possuem natureza jurídica de convênio, uma vez que o particular atua desinteressadamente em parceria com a Administração, no intuito de concretizar algum interesse público.

(...)

Conforme já exposto nos itens anteriores, os convênios constituem espécies de contratos administrativos. E como os contratos de gestão e os termos de parceria são espécies de convênios, todas essas formas de acordo possuem natureza contratual, devendo prevalecer a regra da realização prévia da licitação, nos termos do art. 37, XXI, da Constituição.[12]

Assim, diante desse imbróglio jurídico, pode-se afirmar que a celebração do contrato de gestão entre Administração Pública e organizações sociais exige, no mínimo, um processo objetivo de seleção, respeitando-se os princípios da moralidade e impessoalidade.

Em uma linha mais restrita e que, a nosso ver, tende a ser aceita por parcela crescente da doutrina, tanto convênios, no sentido estrito da expressão quanto contratos de gestão e outros instrumentos assemelhados, possuem natureza contratual, devendo ser precedidos de licitação na forma da Lei n. 8.666/93.

Confirmando a necessidade de licitação, já se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. INEXISTÊNCIA DE OMISSÃO, OBSCURIDADE, CONTRADIÇÃO, DÚVIDA OU FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO NO ACÓRDÃO RECORRIDO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. CONTRATO DE GESTÃO. BENEFÍCIOS PATRIMONIAIS. NECESSIDADE DE LICITAÇÃO. DANO PRESUMIDO.

1. [...]

2. “O Ministério Público tem legitimidade para propor ação civil pública, fundamentada em inconstitucionalidade de lei, na qual opera-se apenas o controle difuso ou incidenter tantum de constitucionalidade. Precedente do STF.” (Resp nº 493270/DF, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 24/11/2003) 3. O ato discutido nos autos evidencia-se como viciado, flagrantemente, pela ilegalidade. O contrato de gestão, por resultar benefícios patrimoniais, deve, obrigatoriamente, ser precedido de licitação. O fato de já ter sido celebrado e consumado não afasta a possibilidade da decretação de sua nulidade, com efeitos ex-tunc. A Administração Pública tem compromisso maior com os princípios da legalidade, moralidade, publicidade, impessoalidade, eficiência e transparência. O procedimento licitatório só pode ser dispensado ou inexigível nas situações previstas na Lei nº 8.666/93. Impossível ampliar as situações nela previstas. O descumprimento ou inobservância de princípios legais e constitucionais que norteiam a atuação estatal presume o risco do dano.

4. Recurso não provido. (REsp 623197/RS, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 28/09/2004, DJ 08/11/2004. Destacou-se.)

Desnudado o instituto do contrato de gestão e o necessário processo objetivo de seleção das OS, cabe analisar a hipótese de dispensa objeto desse estudo.

Acerca da dispensa prevista no inc. XXIV do art. 24 da Lei n. 8.666/93

Inicialmente, vale transcrever o dispositivo em questão:

Art. 24.  É dispensável a licitação:

[...]

XXIV - para a celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão.

Cabe frisar que a interpretação deste dispositivo deu margem a controvérsias doutrinárias. Para alguns, o que se dispensa de licitação é a celebração do contrato de gestão, quando na verdade, como anteriormente referido, o objeto da dispensa é a contratação da prestação de serviços por determinada OS.

Acerca da interpretação do dispositivo, mostra-se adequada a transcrição de trecho do Acórdão n. 421/2004 – Plenário do Tribunal de Contas União:

13. Decorre da norma que, para que uma entidade seja considerada uma Organização Social, não basta que ela seja pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, dedicada às atividades ali especificadas, porque a conformação de uma Organização Social não depende apenas das características intrínsecas apresentadas pela entidade. De acordo com o mandamento legal, além da natureza jurídica e das finalidades indicadas, também faz parte da condição jurídica de Organização Social que a entidade seja formalmente qualificada como tal pelo Poder Público segundo exigências previstas no art. 2º da referida lei.

14. Nesse contexto, também não se deve esquecer que o inciso XXIV do art. 24 da Lei de Licitações menciona um outro requisito concernente à pessoa do contratado: a dispensa de licitação somente se aplica à organização social qualificada pela mesma esfera de governo do órgão ou entidade contratante.

(...)

20. Com base nas considerações supra, conclui-se que o inciso XXIV do art. 24 da Lei nº 8.666/93 deve ser interpretado restritivamente, significando que, se a lei estabelece como requisito para contratação que a pessoa jurídica seja Organização Social, o contratado deve atender essa condição de maneira estrita. Resulta que, sob o mencionado fundamento legal, não é admissível a contratação de pessoa jurídica não detentora do título, ainda que seu regime jurídico ou seus objetivos sejam assemelhados aos das Organizações Sociais. Por conseguinte, o dispositivo somente poderá ser aplicado nos casos em que a pessoa jurídica a ser contratada tenha sido qualificada como Organização Social, nos termos da Lei nº 9.637/98, pela esfera de governo contratante, não se admitindo a ulterior subcontratação do objeto em face do caráter personalíssimo da avença.

(...)

21. No que tange ao objeto da contratação, a legislação também traz restrições. A primeira delas se refere à natureza desse objeto, que é limitada pela lei à prestação de serviços. Conseqüentemente, não há amparo legal para que a Administração se valha da contratação direta de Organizações Sociais para a execução de obra ou a realização de compras, tomadas na acepção do art. 6º, incisos I e III, da Lei nº 8.666/93. A segunda restrição trata da espécie de serviços a serem objeto da contratação. Neste caso, não é todo e qualquer serviço que pode ser contratado, visto que a norma autoriza expressamente apenas a contratação daqueles serviços inseridos no âmbito das atividades constantes do contrato de gestão firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada na forma dos arts. 5º a 7º da Lei nº 9.637/98.

(...)

23. Nessa linha de raciocínio, conclui-se que os Serviços Sociais Autônomos somente poderiam ser contratados por dispensa de licitação com base no art. 24, inciso XXIV, da Lei nº 8.666/93, caso atendam sobretudo aos requisitos contidos nos arts. 2º, 3º e 4º da Lei 9.637/98 e venham a ser formalmente qualificados, por ato do Poder Executivo, como Organizações Sociais nos termos do art. 1º da mesma Lei e, ainda, caso o objeto da contratação seja relacionado às atividades incluídas em contrato de gestão celebrado com a esfera de governo à qual pertence o órgão ou entidade contratante. (Destacou-se.)

De acordo com a interpretação conferida pelo TCU, a dispensa será permitida quando atendidos os seguintes requisitos:

- tratar-se de organização social formalmente qualificada na esfera da Administração contratante, segundo exigências previstas no art. 2º da Lei n. 9.637/98;

- tratar-se de prestação de serviços;

- tais serviços estejam inseridos no âmbito das atividades constantes do contrato de gestão.

No mesmo sentido, segue ementa de decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça:

ADMINISTRATIVO. CONTRATO DE GESTÃO. LICITAÇÃO. DISPENSA.

1. O contrato de gestão administrativo constitui negócio jurídico criado pela Reforma Administrativa Pública de 1990.

2. A Lei n. 8.666, em seu art. 24, inciso XXIV, dispensa licitação para a celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão.

3. Instituto Candango de Solidariedade (organização social) versus Distrito Federal. Legalidade de contrato de gestão celebrado entre partes.

4. Ausência de comprovação de prejuízo para a Administração em razão do contrato de gestão firmado.

5. A Ação Popular exige, para sua procedência, o binômio ilicitude e lesividade.

6. Recurso especial improvido. (REsp 952899/DF, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 03/06/2008, DJe 23/06/2008, destacou-se.)

Importante ressaltar que é dispensável a licitação para contratação de organizações sociais para a prestação de serviços previstos em determinado contrato de gestão, pré-existente ao contrato que se pretende celebrar com fundamento no art. 24, XXIV, da Lei de Licitações.

Sobre o assunto, mais uma vez, Gustavo Alexandre Magalhães:

Deve-se observar, no entanto, que a hipótese de dispensa de licitação incluída no art. 24, XXIV, da Lei n. 8.666/93 vem sendo interpretada como autorização de contratação direta para a celebração dos contratos de gestão entre a Administração Pública e as organizações sociais, e não como hipótese de contratação direta para os futuros contratos de prestação de serviço.

(...)

Trata-se de equívoco quanto à determinação da abrangência da dispensa de licitação incluída no art. 24, XXIV, da Lei de Licitações. Ora, a redação do citado dispositivo legal não criou hipótese de contratação direta para celebrar contratos de gestão, mas hipótese dispensa [sic] para contratação de prestação de serviços, o que pressupõe a celebração prévia de um contrato de gestão.[13]

Ou seja, o art. 24, XXIV, da Lei n. 8.666/93 não se destina a celebração de um contrato de gestão, mas a um contrato de prestação de serviço cujo objeto esteja inserido no âmbito de um contrato de gestão já existente.

Quem está dispensada de licitação para a contratação da OS?

Cabe perquirir qual o real alcance dessa dispensa. A Administração que contratará diretamente tais serviços (sem prévio procedimento licitatório) deve ser a mesma que celebrou contrato de gestão, ou outras entidades públicas poderão utilizar-se desse recurso?

Como primeiro marco teórico para responder a tal indagação, utiliza-se, mais uma vez, o Acórdão n. 421/2004 – Plenário do TCU:

22. Esse nosso posicionamento encontra eco na doutrina em geral, conforme trechos que transcrevo abaixo:

"O objeto é necessariamente prestação de serviços referente a uma atividade que consta do contrato de gestão.(...) Importa assinalar que o objeto não é o contrato de gestão, mas um serviço, uma atividade, um trabalho. Esse guarda pertinência com o contrato de gestão e com a finalidade da Organização Social". (FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Contratação Direta sem Licitação. 5ª ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 522/523)

"Tal condição implica que a Organização Social contratada possa ter capacidade de vir a prestar um serviço para algum órgão governamental - diverso daquele com quem mantenha o contrato de gestão - mas que seja um serviço que faça parte das atividades contidas no referido contrato. Parece só poder ser assim, pois, com o próprio órgão com o qual celebrou o contrato de gestão pressupõe-se que os serviços contidos no referido contrato não venham ser objeto de nova contratação". (CITADINI, Antonio Roque. Comentários e Jurisprudência sobre a Lei de Licitações Públicas. 3ª ed. São Paulo: Ed. Max Limonad, 1999, p. 215)

23. Nessa linha de raciocínio, conclui-se que os Serviços Sociais Autônomos somente poderiam ser contratados por dispensa de licitação com base no art. 24, inciso XXIV, da Lei nº 8.666/93, caso atendam sobretudo aos requisitos contidos nos arts. 2º, 3º e 4º da Lei 9.637/98 e venham a ser formalmente qualificados, por ato do Poder Executivo, como Organizações Sociais nos termos do art. 1º da mesma Lei e, ainda, caso o objeto da contratação seja relacionado às atividades incluídas em contrato de gestão celebrado com a esfera de governo à qual pertence o órgão ou entidade contratante.[14] (Destacou-se.)

De acordo com essa passagem, a dispensa prevista no inc. XXIV se destina à contratação de serviços prestados pela OS, por entidades administrativas da respectiva esfera de governo. Ainda, segundo a manifestação do TCU a dispensa não se destina à contratação, pela Administração que celebrou o contrato de gestão, dos serviços prestados pela OS, pois, segundo consta, não haveria que se perquirir de nova contratação dos serviços já previstos no referido instrumento (contrato de gestão).

Ao que parece, Tarso Cabral Violin segue na mesma linha:

O dispositivo permite que as organizações sociais qualificadas e que tenham firmado contrato de gestão sejam contratadas diretamente pelo próprio ente qualificador. Assim, exemplificativamente, uma organização social qualificada pela União, e que tenha firmado contrato de gestão com a Administração Pública federal, pode ser contratada por dispensa de licitação pelo art. 24, XXIV, apenas pela própria União.[15]

No entanto, é de difícil definição a extensão das contratações mencionadas no dispositivo em uma situação prática. Até pelo pouco aprofundamento teórico sobre o instituto.

Mais difícil ainda é cogitar situação em que a próprio ente da Administração que é parte no contrato de gestão contrate a prestação dos serviços da OS. Em que pese essa dificuldade, não se descarta tal hipótese.

Lembre que o contrato de gestão formaliza espécie de privatização/publicização efetivado por determinado órgão ou ente administrativo, repassando à OS além da competência para desenvolver aquela atividade, recursos materiais e financeiros.

Assim, o contrato de gestão determinará, entre outras coisas, os objetivos a serem cumpridos pela OS, com vistas à adequada realização de determinado interesse público. Tudo isso, subsidiado pelo ente público que é parte do contrato de gestão.

Isso fica claro pela leitura dos seguintes dispositivos da Lei n. 9.637/98:

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, entende-se por contrato de gestão o instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como organização social, com vistas à formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades relativas às áreas relacionadas no art. 1º.

(...)

Art. 7º Na elaboração do contrato de gestão, devem ser observados os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, economicidade e, também, os seguintes preceitos:

I - especificação do programa de trabalho proposto pela organização social, a estipulação das metas a serem atingidas e os respectivos prazos de execução, bem como previsão expressa dos critérios objetivos de avaliação de desempenho a serem utilizados, mediante indicadores de qualidade e produtividade;

Veja que a OS efetivamente faz as vezes do órgão com o qual celebrou o contrato de gestão para desenvolvimento de atividades em prol de terceiros. O que se pretende demonstrar é que os serviços previstos no contrato de gestão não se destinam propriamente a uma necessidade do órgão em questão. Assim, seria possível cogitar a celebração de um contrato administrativo de prestação de serviços, externo ao ajuste inicial, entre a entidade pública e a OS, ambos partes daquele contrato de gestão.

Pode-se, a nosso ver, aproximar-se o regime jurídico envolvido na celebração do contrato de gestão, em diversos aspectos, ao da concessão de serviço público, regido pela Lei n. 8.987/95. Nessa toada, o contrato de concessão deverá conter objetivos e metas a serem cumpridas como forma de viabilizar a adequada prestação de serviço. É o que se retira das regras da lei anteriormente referida, no que segue:

Art. 6º Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.

(...)

Art. 18. O edital de licitação será elaborado pelo poder concedente, observados, no que couber, os critérios e as normas gerais da legislação própria sobre licitações e contratos e conterá, especialmente:

I - o objeto, metas e prazo da concessão;

II - a descrição das condições necessárias à prestação adequada do serviço;

Ora, ninguém questiona que o órgão concedente possa travar relação negocial/contratual com a concessionária para utilização do serviço público que ela mesma concedeu.

É o caso, por exemplo, da utilização de energia elétrica pela União concedente, ou a passagem de carros oficiais que utilizam estradas pedagiadas por concessionárias. Todas essas são relações contratuais, ainda que caracterizadas como contratos de adesão.

Logo, porque não se admitir que em determinas situações o órgão que celebrou o contrato de gestão com determinada OS, possa também ajustar a prestação de um serviço com essa mesma organização sem fins lucrativos por meio de um contrato administrativo?

Lembre que, na hipótese do inc. XXIV do art. 24, apesar de se tratar de um serviço já contemplado no contrato de gestão, sua realização necessita do devido delineamento acerca de sua adequada prestação, levando-se em conta quantitativos, valores unitários, local de execução, entre outros requisitos legais, além do destaque de recursos orçamentários específicos.

Em suma, de todo esse contexto, verifica-se por parte da doutrina o entendimento equivocado de que a dispensa prevista no inc. XXIV do art. 24 tem por objeto a celebração do contrato de gestão, o que está longe de ser verdadeiro.

Deve-se pontuar que os contratos de gestão, formalizam ajuste entre a Administração e uma instituição privada sem fins lucrativos que passa a ser qualificada como uma Organização Social (OS). O contrato prevê o repasse para a OS da prestação de determinados serviços públicos não exclusivos, sendo que a seleção dessa entidade deve ser precedida de processo seletivo objetivo, a nosso ver, devendo ocorrer nos moldes da Lei n. 8.666/93.

Então, o objeto da dispensa referida anteriormente visa a contratação direta da OS para prestação de serviços contemplados no contrato de gestão.

Em especial, o TCU defende que a dispensa se dirige à contratação por entidades estranhas ao contrato de gestão, já que aquela que firmou o ajuste com a OS, presume-se, não teria que realizar nova contratação para os serviços já contidos no contrato de gestão.

A nosso ver, tal entendimento não se sustenta. O contrato de gestão é uma forma de fomento que deve prever metas e objetivos para a consecução de interesses públicos nas áreas expressamente previstas na Lei n. 9.637/98. Os contratos de gestão formalizam o repasse à determinada OS da prestação de certos serviços públicos voltados ao atendimento da população, que antes eram executados diretamente pela Administração

Portanto, o órgão ou entidade pública não está contratando a OS, por meio do contrato de gestão, para prestar-lhe um serviço na acepção estrita do termo. Está, em verdade, repassando uma função pública a esse ente privado.

Logo, tendo em vista a real finalidade do contrato de gestão, não é difícil imaginar hipótese em que o próprio órgão, parte do contrato de gestão, em algum momento pretenda contratar determinada prestação de serviço da OS, agora no âmbito de um contrato administrativo, da mesma forma que o fará qualquer outra entidade pública da mesma esfera de governo que fundamente sua contratação no art. 24, XXIV, da Lei de Licitações.

Sobre o autor
Adriano Biancolini

Advogado em Curitiba (PR) no escritório Biancolini D'Ambrosio e Menzel Vieira Advogados, com experiência em atuação consultiva em licitações e contratos administrativos e funcionalismo público. Graduado pela Faculdade de Direito de Curitiba. Administrador do site Convir - A sua consultoria jurídica virtual (http://convir-adv.blogspot.com.br/)

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