RESUMO: O texto tem como objetivo apresentar a teoria de A. Sen sobre igualdade de capacidade, como meio de materializar a sua visão da igual consideração, e abordar alguns pontos considerados importantes, acerca do liberalismo igualitário. A justificativa para o trabalho reside na importância da discussão da igualdade para as modernas teorias de justiça. De uma maneira nem sempre clara, a maioria das abordagens sobre justiça discute a melhor interpretação ou a melhor maneira de concretizar o princípio igualitário abstrato. Para tanto, utilizou-se uma abordagem de natureza teórica.
Palavras-chave: Igualdade, Amartya Sen, Liberalismo.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1. FUNCIONAMENTOS, CAPACIDADE E LIBERDADE; 2. JUSTIÇA E DESIGUALDADE; 3. CLASSE E CLASSIFICAÇÃO; 4. INCENTIVO E IGUALITARISMO; 5. A IGUALDADE LIBERAL; 5.1. A justiça rawlsiana; CONCLUSÃO; BIBLIOGRAFIA.
INTRODUÇÃO
Neste trabalho o objetivo é apresentar, de forma sucinta, as principais ideias contidas na obra Desigualdade Reexaminada de SEN (2008) e tecer algumas considerações a respeito da igualdade liberal.
Assim, tanto SEN (2008, pp. 43-62) quanto KYMLICKA (2006, pp. 5-7) endossam a noção de que a igualdade é um elemento comum às diversas teorias políticas, pois estas tentam expressar a ideia de “tratar as pessoas como iguais”, cada uma à sua maneira. Isso não significa que toda teoria já inventada é igualitária nesse sentido. Ao revés, a tentativa de interpretar o princípio igualitário abstrato está presente somente nas teses mais plausíveis, pela dificuldade em rejeitá-las razoavelmente ou das demais serem arbitrariamente discriminatórias. Portanto, para estes autores, a questão é como interpretar a igualdade abstrata e não aceitar ou negar a igualdade como valor.
Para SEN (2008, pp. 42-7) existem duas questões centrais para a análise ética da igualdade: “por que a igualdade?” e “igualdade de que?”. Estas são perguntas distintas e interdependentes. Toda teoria que tenha resistido no tempo defende a igualdade em algum espaço considerado central – e acaba admitindo a desigualdade nos demais. Por isso que ser igualitário, como são Nozick, Rawls e Dworkin, pode parecer ser mais um fator que os distancia do que os aproxima, já que são colocados em grupos distintos que criticam a interpretação da igualdade uns dos outros. Mesmo quem rejeita a igualdade, o faz em algum aspecto explicitamente – e termina admitindo, mesmo que implicitamente, em outro. Desta forma, a pergunta “igualdade de que?” é fundamental.
Com efeito, ainda que se admita que todas estas teorias sejam igualitárias, ainda é necessário que se explique e se defenda a razão da igualdade naquele caso ser importante. Isso decorre da possibilidade da avaliação global ser feita para todos os participantes daquele sistema, em que haverá o núcleo da tese, na qual se defende a igualdade, e espaços periféricos, nos quais haverá desigualdade. A exigência de imparcialidade como requisito geral carrega consigo esse traço da igual consideração.
Como os seres humanos diferem uns dos outros de modos distintos – tanto em características externas e circunstâncias, quanto em particularidades pessoais – há uma pluralidade de variáveis (espaços de avaliação) em que é possível focar e que irá conduzir à igualdade num aspecto e desigualdade em outro. Um exemplo é a exigência de igualdade de direitos libertários de Nozick, que se aceitos (como mais importantes), levarão às desigualdades de rendas e de liberdades positivas (considerados menos importantes).
SEN (2008, p. 54) entende que não há um conflito genuíno entre igualdade e liberdade – pode haver uma disputa sobre a questão “igualdade de que?”. Porém, não se deve esquecer que “a liberdade está entre os possíveis campos de aplicação da igualdade, e a igualdade está entre os possíveis padrões de distribuição da liberdade”.
A pluralidade de espaços em que a igualdade pode ser avaliada não a torna uma concepção vazia ou menos importante: quando a variável focal é escolhida, ela se torna uma exigência substantiva e um requisito de avaliação, que traz consigo alguma forma de igual consideração. O problema da concentração da discussão na desigualdade de rendas como foco para examinar a desigualdade consiste em terminar ignorando as variedades de características físicas e sociais que afetam a sua conversão em realizações valorizadas. Além disso, acaba-se esquecendo da existência de outros meios capazes de gerar realizações e das variações interpessoais na relação entre meios e fins. Essa generalização, justificada na retórica da igualdade (“todos são iguais”) ou na facilidade da análise, é um dos alvos do autor em sua obra.
1. FUNCIONAMENTOS, CAPACIDADE E LIBERDADE
Para SEN (2008, pp. 69) a posição de uma pessoa num ordenamento social pode ser julgada por duas perspectivas diferentes (e não necessitam coincidir), a saber, a realização de fato conseguida e a liberdade para realizar ou oportunidade real que se tem para fazer aquilo que se valoriza. O utilitarismo, por exemplo, limita as comparações interpessoais para avaliação social às realizações e às identifica como as utilidades realizadas. Outras teorias também focam nas realizações e atribuem à liberdade para realizar importância instrumental.
Ocorre que esse viés foi atacado pela teoria de Rawls e de Dworkin, fazendo com que a avaliação política recaia nos meios para a realização (bens primários ou recursos). Todavia, ainda pode haver variações na conversão de bens primários e recursos em liberdade – devido às variações externas ou pessoais já referidas. O que faz com que seja necessário distinguir a “extensão da liberdade” dos “meios para a liberdade”. Os meios seriam os recursos e bens primários. As opções que a pessoa tem para, de fato, fazer, ser ou levar a vida que desejar, materializam a extensão da liberdade em si (ou seja, a conversão dos bens primários e recursos em liberdade).
A variação entre os indivíduos que existe nessa conversão é o que leva a perceber que duas pessoas com os mesmos bens primários ou recursos podem ter liberdades totalmente diferentes (devido às diferenças externas e pessoais).
Com a finalidade de explicar a relação entre “funcionamentos” e bem-estar, SEN (2008, pp. 79-82) ensina que “viver pode ser visto como consistindo num conjunto de funcionamentos inter-relacionados, que compreendem estados e ações. A realização de uma pessoa pode ser concebida [...] como o vetor de seus funcionamentos”. Os funcionamentos relevantes podem variar de coisas simples até realizações complexas e são constitutivos do estado (de bem-estar) de uma pessoa. Outra noção importante é a capacidade para realizar funcionamentos. Em outras palavras a capacidade é um conjunto de vetores de funcionamentos que uma pessoa pode realizar, refletindo a liberdade da pessoa para escolher dentre estilos de vidas possíveis.
O ponto central é que a capacidade consiste na liberdade da pessoa para ter bem-estar (“as oportunidades reais”), ao mesmo tempo em que ter algumas capacidades contribuem diretamente para ter bem-estar (“a possibilidade de escolha é em si uma parte valiosa do viver”). Há uma distinção da teoria de Rawls e de Dworkin, que tratam os bens primários e recursos como meios ou instrumentos para a liberdade. Enquanto aqui a capacidade reflete a liberdade para buscar os elementos constitutivos do bem-estar (realizar funcionamentos) e também exerce um papel direto no próprio bem-estar (decidir ou escolher a vida que se deseja). A igualdade “envolve a apreciação da vantagem individual por meio da liberdade para realizar, incorporando (mas ultrapassando) as realizações efetivas”.
Para ser possível efetuar uma avaliação é imprescindível identificar o objeto-valor ou espaço de avaliação. Nesse passo, na avaliação do bem-estar, o foco serão os funcionamentos e a capacidade. Todavia, isto não quer dizer que “todos os tipos de capacidades são igualmente valiosos, nem indica que qualquer que seja a capacidade necessita ter algum valor na avaliação do bem-estar dessa pessoa”. Como haverá incompletude, disparidade ou ambivalência nos pesos relativos o excesso de precisão pode descaracterizar a natureza desses conceitos. Por isso, é melhor capturar a ambiguidade que é intrínseca à ideia do que tentar perde-la tendo em vista a perfeição (é a “razão fundamental para a incompletude”). Uma segunda justificativa para o uso de uma ordenação parcial é a possibilidade de haver acordo sobre como lidar com algumas partes, o que permite a colocação em prática desta (é a “razão pragmática para a incompletude”).
Nesta discussão é relevante observar que é comum um individuo ter objetivos e valores que não coincidem com a busca pelo seu próprio bem-estar. SEN (2008, pp. 103-4) aborda o “aspecto da condição de agente”, cuja realização refere-se à realização de objetivos e valores que uma pessoa tem razão para buscar, independentemente de estarem conectados com o seu bem-estar. Este aspecto mantém conexão com a “liberdade da condição de agente”, que é a liberdade para realizar o que se valoriza. Esses conceitos são introduzidos para diferenciá-los do “aspecto do bem-estar”, que está ligado à “liberdade de bem-estar” – é a liberdade para realizar os elementos constitutivos do seu bem-estar e melhor reflete o seu “conjunto capacitário”. Os dois aspectos são distinguíveis e separados, porém, interdependentes: o aumento de um pode aumentar ou até diminuir o outro.
A liberdade da condição de agente pode crescer, enquanto a liberdade de bem-estar ou a realização do bem-estar diminuem. Entretanto, quando se trata da liberdade de bem-estar, “então nenhum conflito entre liberdade e bem-estar realizado pode surgir, é claro, da redução das oportunidades de realização do bem-estar com o aumento da liberdade (do bem-estar)”. O que não impede que a escolha de uma pessoa seja guiada por outros interesses diferentes da busca pelo seu bem-estar – fazendo com que o aumento da liberdade de bem-estar seja acompanhado da deterioração do bem-estar escolhido para ser realizado, sem que haja nenhum paradoxo, mesmo que pareça “um pouco estranho” (SEN, 2008, p. 109). Ainda que a liberdade e a realização do bem-estar possam andar em direções opostas, sendo indiferente a forma como se interpreta a liberdade (da condição do agente ou do bem-estar), a frequência do conflito é diferenciada. Isso porque maiores oportunidades para buscar bem-estar são geralmente aproveitadas. Desta forma, SEN (2008, pp. 111-2) afirma que:
A liberdade é um conceito complexo. Deparar-se com mais alternativas não necessita ser invariavelmente considerado como uma expansão da liberdade de uma pessoa para fazer coisas que gostaria de fazer. Se for dado valor a uma vida sem complicações, a liberdade para realizar a forma preferida de vida não necessariamente aumentará com a multiplicação de escolhas triviais. [...] A questão realmente depende da necessidade de julgar quais opções são importantes e quais não são. A expansão das escolhas a serem feitas é tanto uma oportunidade e um ônus. É fácil conceber circunstâncias em que, apresentada a escolha de ter que fazer estas escolhas particulares, se teriam boas razões para dizer não. Isso não significa que a expansão destas obrigações e escolhas específicas não necessita ser considerada como uma expansão valiosa da liberdade.
Mas SEN (2008, pp. 118-22) rejeita a argumentação de que a pessoa seja considerada o melhor juiz sobre aquilo que deve ser considerado importante e que a condição de agente diga tudo o que é necessário para os demais saberem. Pois não é o fato de uma pessoa admirar alguém que a sociedade deva “erigir uma estátua em honra de algum herói”. Não é porque uma pessoa escolheu algo importante para si e deixou outras metas e valores de fora, que estes seriam destituídos de importância. Acontece que “dependendo do contexto, o aspecto da condição de agente ou o aspecto do bem-estar podem assumir proeminência”, pois ao lado da pluralidade de espaços existe a pluralidade de propósitos. Um exemplo pode ajudar a esclarecer estas afirmações. Quando a questão for sobre justiça social, qual dos dois aspectos deve ser utilizado? Como o aspecto de bem-estar é importante para avaliar questões de seguridade social e busca da justiça social, dentre outros, o foco de avaliação recairá sobre este, sem ignorar que existem outras variáveis possíveis.
Outra questão relacionada é a leitura da “liberdade como controle”, pois muitas liberdades “assumem a forma de nosso potencial para conseguir o que valorizamos e queremos, sem que os instrumentos de controle sejam diretamente operados por nós”. Então os controles são usados de acordo com o que uma pessoa valoriza ou deseja, aumentando a liberdade para viver a vida que se almeja. No entanto, a consequência clara desta explicação é que controle e liberdade não são sinônimos. A concepção “liberdade como controle” foca no aspecto instrumental, em que a pessoa é a parte ativa na ação que produz a realização – pode ser chamada de “êxito instrumental da condição de agente”. A “liberdade efetiva” está relacionada ao acontecimento dos objetivos da pessoa, não importando o seu papel na produção deste – pode ser chamada de “êxito acabado da condição de agente”.
A complexidade presente nas sociedades contemporâneas torna impossível ter um sistema que confira a cada individuo todos os instrumentos de controle sobre a sua vida. Por essa razão, a base informacional da avaliação das liberdades desfrutadas e da desigualdade neste aspecto deve levar em conta as escolhas contrafactuais (o que seria escolhido se fosse possível escolher). A tentativa de se concentrar somente sobre os instrumentos de controle é inadequada para avaliar liberdades.
Existem, pelo menos, dois argumentos que poderiam levar a conclusão contrária. O primeiro é que a falta de controle sobre o acontecimento impede que haja um aumento de liberdade e o segundo corresponde a entender que a liberdade implica na verificação de quais alternativas ou opções existem – e se não há controle não há opção a ser feita. Para SEN (2008, pp. 116-7) ambas são leituras erradas da liberdade. Inicialmente, a ausência de controle por parte de uma pessoa não compromete a importância do acréscimo de liberdade efetiva – o que a torna mais livre de qualquer maneira – para viver da maneira que escolheria se fosse possível decidir. Em seguida, a escolha contrafactual deve ser melhor compreendida: quando uma pessoa deseja uma vida e a teria escolhido, se tivesse escolha, é o mesmo que dizer que ser capaz de viver do modo ao qual se atribui valor é uma contribuição para a liberdade de alguém – “a liberdade para escolher viver do modo que se desejaria”.
O que justifica, ao menos em parte, entender essa ideia geral de liberdade é a sua relevância para a análise da igualdade e da justiça. Ao se avaliar as desigualdades na capacidade de escapar de doenças que não são inevitáveis ou da fome que pode ser evitada, está se avaliando diferenças no bem-estar e nas liberdades básicas que são valorizadas e apreciadas.
2. JUSTIÇA E DESIGUALDADE
A maioria das teorias da justiça traz consigo uma base informacional que consideram importante para efetuar juízos avaliatórios, que são a seleção de traços pessoais relevantes e escolhas de características combinatórias. A escolha de uma exigência particular de igualdade basal influenciará a escolha da variável focal para avaliar a desigualdade.
Rawls formula sua teoria da justiça e seus dois princípios de justiça, de modo a incluir no segundo o Princípio da Diferença, “no qual o foco está sobre a produção do ‘maior benefício dos que têm menos vantagens’, onde a vantagem é estimada pela parcela de ‘bens primários’” (como direitos, liberdades, oportunidades, renda e autoestima). Assim, por conceber sua teoria como uma concepção política, seu objeto são as instituições políticas, sociais e econômicas, tendo por fio condutor a tolerância das “doutrinas abrangentes possivelmente divergentes” (que enseja a proteção até dos intolerantes, até o limite em que não se cause dano a terceiros). Para SEN (2008, p. 131), mesmo que estes dois traços sejam apresentados como inseparavelmente juntos, uma abordagem “política”, no sentido especificado, pode ser concebida sem endossar a tolerância, como condição qualificativa da justiça.
A separação é justificada para que se perceba que mesmo sem que haja a tolerância da forma esboçada (na hipótese em que todos são intolerantes), é possível que existam questões de justiça a serem avaliadas (como desigualdade, privação e injustiça nas disputas entre os grupos opositores). Por conseguinte, a finalidade é adotar uma abordagem menos restritiva.
O mérito da perspectiva rawlsiana é que concentrar a atenção nos bens primários (que seriam meios para a implementação dos projetos de vida ou concepção de bem de cada individuo), caminha-se na direção das liberdades disfrutadas e não se restringe aos resultados alcançados. A igualdade de recursos de Dworkin também segue o mesmo percurso. Porém, dois pontos não podem ser olvidados: os bens primários e recursos são meios para a liberdade (não se confundindo com a liberdade em si) e é difícil valorar os meios sem saber a quem fins se destinam (os meios são importantes pelo resultado que produzem).
Com vistas ao que poderia ser considerado um refinamento na teoria de justiça de Rawls – não se quer dizer que este seja o objetivo de SEN (2008, pp. 135-7) e sim que este demonstra uma insuficiência na concepção de justiça daquele autor – a introdução do conceito de capacidade consegue captar melhor a diversidade humana. Isso decorre da constatação de que uma pessoa, portadora de alguma necessidade especial, pode ter mais bens primários ou recursos e menos capacidade de conversão destes meios em liberdade efetiva para realizar funcionamentos (devido às limitações pessoais ou circunstanciais). A igualdade de bens primários ou recursos não é sinônimo de igualdade de liberdade. Por isso, a concepção de justiça baseada na capacidade seria mais justa, pois representa a liberdade real das pessoas, sem importar a concepção de bem de cada um.
Deve-se ainda fazer uma observação sobre a crítica de SEN (2008, p. 142) sobre a teoria de Rawls: a preocupação com a liberdade não deve ser confundida com a atribuição da prioridade total recomendada pelos princípios de justiça na ordem lexicográfica rawlsiana – em que há prioridade da liberdade sobre a igualdade.
Mas então fica a indagação de como avaliar a desigualdade da liberdade. Por isso SEN (2008, p. 149-50) afirma que:
A igualdade entre as pessoas pode ser definida em termos de aproveitamentos ou em termos de insuficiências com relação aos valores máximos que cada uma pode respectivamente realizar. Para a igualdade de aproveitamento de realizações, nós comparamos os níveis de realização. Para a igualdade de insuficiência, comparam-se as insuficiências das realizações efetivas com relação às respectivas realizações máximas. [...] Se a diversidade humana tem tanta força que torna impossível igualar o que é potencialmente realizável, então existe uma ambiguidade básica na apreciação da realização e na avaliação da igualdade de realização e da liberdade para realizar.
A opção pela utilização de uma abordagem em detrimento da outra não pode ser basear na inexequibilidade ou insuficiência da outra. O argumento da equidade usado por Rawls demonstra o porquê de focalizar os menos favorecidos, em especial no campo das incapacidades para realizar funcionamentos (que é uma extensão para além dos bens primários para alcançar as capacidades e que o autor rejeitaria). A sua proposta, de melhorar tanto quanto possível os que estão na pior situação (em relação aos bens primários), é apresentada na forma de tentar maximizar o menor potencial para realizar funcionamentos. Logo, o argumento para “manter o interesse em mover-se na direção da igualdade de aproveitamento pode sobreviver às dificuldades em realiza-la completamente”.
A literatura sobre a economia do bem-estar que avalia a desigualdade tende a ignorar as diversidades humanas ao considerar todas as pessoas como exatamente similares. Modelos que não deixam espaço para variações interpessoais substanciais na conversão de rendas individuais e que não atribuem a adequada importância à liberdade como elemento constitutivo da boa sociedade têm a sua utilidade limitada. “As operações terão de movimentar-se desde o espaço de rendas para o espaço dos elementos constitutivos do bem-estar e também da liberdade”. A análise assumiria uma forma diferente e a avaliação da desigualdade teria de refletir essa transformação.
Trilhando o mesmo caminho, a abordagem, outrora dominante, de identificação da pobreza especifica uma linha divisória, geralmente definida em torno da renda: os que estão abaixo desta linha são classificados como pobres. O índice de pobreza de um determinado local (cidade, país, continente) é comumente calculado com base na proporção da população que está abaixo dessa linha. A informação ou distinção que não é captada nesse sistema é que existem pessoas que estão um pouco abaixo da linha e outras que estão muito abaixo – o que faz com que a distribuição de renda entre pobres seja passível de grandes desigualdades.
Um governo poderia, por exemplo, estar tentado em investir nos “mais ricos” dentre os “pobres” para reduzir mais facilmente a proporção de pobres dentre de seu território. Isso motivou SEN (2008, pp. 167-8) a construir um axioma sensível às variações entre os chamados pobres, em que os mais pobres dentre os pobres tenham maior peso ponderado, e os mais ricos, o menor. Contudo, ainda que hoje haja mais sensibilidade à distribuição na medição da pobreza, persiste a relevância da renda para a avaliação. Daí a necessidade de primeiro proceder à análise descritiva da pobreza, para depois escolher políticas adequadas. A “objetividade na descrição não requer invariância social, como é suposto algumas vezes”, de forma que a análise seja elaborada de modo dependente da sociedade na qual a pobreza é avaliada – porque aquilo que é considerado valioso num lugar pode não ser em outro.
Não se nega que haverá maior densidade no exame, todavia, isso não implica que não existam acordos sobre o que é uma privação grave. Por essa razão, a pobreza pode ser compreendida de forma mais adequada em termos de deficiência de capacidade (de evitar a fome ou subnutrição severa) do que em falhas na satisfação das necessidades básicas de mercadorias especificadas (como tipos específicos de carne ou de legumes).
Com isso se redefine o conceito de pobreza, que passa a ser o da incapacidade de buscar bem-estar pela falta de meios econômicos. O critério relevante é o da inadequação (“para gerar capacidades minimamente aceitáveis”) e deixa de ser o baixo nível (“independente das características pessoais”).