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Brasil, crise econômica e crise democrática:

entre a tirania da estupidez e a arte de perder-se

Agenda 07/06/2015 às 13:38

Não há um problema de crise econômica distinto do problema de crise moral e política, distinto do problema de crise administrativa e judicial.

Dime... ¿sangras?... Sangrarás.” Batman

                                                              

A convicção de que, em grande medida, a crise econômica tem um substrato mental não é nem uma mera intuição, nem uma hipótese sem qualquer contrastação empírica. O prêmio Nobel de Economia de 2002 foi atribuído a Daniel Kahneman e as razões de ser distinguido desde Estocolmo descansam em que o professor Kahneman dedicou sua vida profissional à análise dos componentes psicológicos que intervêm nas eleições e decisões econômicas. Em todas elas.

Sendo assim, parece que não estaria nada mal (recomendável, inclusive) que as autoridades que regem, com acanhada diligência e escassa competência, os destinos monetários, financeiros e/ou econômicos do Brasil (que bem poderia ser renomeado como “Absurdistão”) optassem ao menos por estar caladas – ou, como diria Wittgenstein, deveriam aprender a “guardar silêncio”. Cada vez que abrem a boca é para augurar desgraças e dificuldades, predizer catástrofes, advertir que correrá sangue, aventurar misérias e contribuir de tal sorte a que se acentue o medo, aumente a paranóia e se generalize cada vez mais a histeria coletiva diante da “grave crise” econômica que assola o país - outrora “limitada” ao resto do mundo.

Mas o pior de tudo é que não são os únicos em suas catastrofizadas apreciações pessimistas. Seja qual for o especialista ou analista de plantão ao que se consulta, não param de sair sapos ou infaustos discursos de seus lábios. Bem curioso é que, há não muito tempo atrás, esses mesmos gurus ou “profetas do dia depois” - por malícia, deliberada ignorância ou ingênuo otimismo - chamassem irresponsável a quem aventurara a possibilidade de uma “grave crise” próxima, cujo incomplacente resultado seria a falta de investimentos, a desconfiança no mercado financeiro e o recorte dos direitos sociais, isto para dizer o mínimo.

E embora se tratasse de um prognóstico deveras fácil de fazer depois de tantos anos de excessos e descalabros crescentes na quitanda político-administrativa, o certo é que todos pareciam viver “en el mejor de todos los mundos posibles” (Leibniz). Mas a “súbita”, “inesperada” e “imprevista” crise se fez ato «e habitou entre nós», gerando e dando lugar a um sobressalto em grande escala.

Ninguém põe em dúvida a crise brutal que está destruindo a economia de todo planeta, mas insistir com desproporcional veemência nas desgraças presentes e nas que estão por vir não constitui, por si só, razão necessária e suficiente para continuar dando-lhes tanta credibilidade. De fato, parece até mais sensato inferir que se erraram tão estupidamente no prognóstico da crise, com mais razão encontram-se suscetíveis de maiores equívocos na previsão de seus efeitos. Sair agora com o terror como guião, igual a um filme de psicopatas, não só não tem mérito algum, senão que nem sequer é o papel que se supõe deve ter qualquer político ou entendido que povoam os gabinetes do governo e a mídia.

O que deveriam fazer não é um diagnóstico - ao alcance, dito seja de passagem, do mais iletrado dos mortais que vai ao supermercado -, senão a prescrição das medicinas oportunas, de fundo e não meramente sintomáticas. O que se espera deles (do governo e dos especialistas) é que nos digam onde encontrar as soluções, ainda que cada vez pareça mais evidente que eles mesmos não sabem. E a maior ironia desta indesejada e memorável confissão de incompetência procede dos mesmos organismos e analistas com visão apocalíptica. A melhor profecia até o momento é a de que, compartindo a dor e os danos, sairemos desta crise, embora não se saiba exatamente quando.

O único inconveniente é que para anunciar semelhante profecia não são necessários nem títulos de especialistas nem cargos públicos que resistem a qualquer crise. Qualquer um pode apontar-se a ela, sem olvidar a mais importante das verdades: suceda o que suceda, serão os cidadãos honestos os que pagarão o pato. Por quê? Pois pelo simples fato de que aqueles que continuam a beneficiar-se da permissibilidade, da desmesurada estupidez e da inércia do governo não entendem de crise.

Por que nunca se falou em crise econômica quando o salário mensal de milhões de brasileiros não é sequer suficiente para garantir-lhes o direito mais essencial de existência material tolerável? Por que a preocupação pela crise econômica ocorre precisamente no momento em que os maiores afetados são os grandes empresários, os investidores e os especuladores profissionais? Por que parece não haver tanta preocupação com a crise econômica quando o tema são os gastos em campanha eleitoral? O certo é que nunca na história do País houve tão poucos ricos  e nem tantos pobres tão pobres. Bem pensado, já faz algum tempo – para não dizer demasiado - que alcançamos sobre a situação econômica, política, institucional e social do País uma situação de stress, reprovável e feia.

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Daí que qualquer discurso ou episódicas manifestações “uterinas” que use imagens ou argumentos de “grave crise econômica” como camuflagem para dissimular ou manipular os problemas de fundo que atravessa o País é parte do problema, e não parte da solução. Já não há mais tempo e nem motivos para este tipo de comportamento medíocre: as evasivas retóricas da atração, o populismo cosmético, a inação parasitária e a desídia como modelos de funcionamento já constituem um problema crônico e longevo que deveria fazer-nos reflexionar vivamente sobre o corrompido ponto de estancamento a que chegou o Estado.

O pesado fardo de desditas, mentiras, corrupções e misérias que os brasileiros vêm suportando, já seja como indivíduos ou como membros da sociedade organizada, é o resultado do modo extremadamente estúpido de como vem sendo governado o país. Já não tem nenhum sentido evadir-se da responsabilidade política por meio de um esquizofrênico evangelho de desesperação, de negação da relevância dos fatos ou de qualquer agenda de mais diálogo”. Nada, exceto a mais sombria e lúgubre desfaçatez, justifica este tipo de aporte ao infinito catálogo das loucuras do governo de turno.

Tampouco representa qualquer benefício social repetir continuamente os lamentos e as críticas sem solução, posto que a repetição só serve para estorvar a criatividade e impedir uma verdadeira compreensão dos problemas. Quando nos limitamos à repetição não há reflexão, e sem esta o único que fazemos é assumir acriticamente e com gesto bovino o credo de um governo que parece tolerar, incentivar e respaldar o descontrole e o desbarate egoísta e malicioso da usurpação dos recursos públicos.

A pouca preparação, a incapacidade, a má gestão, a corrupção e as mentiras dos políticos de plantão chegaram a conseguir que nos acostumemos as suas imposturas e incumprimentos sistemáticos. Todo um conjunto kafkaniano de disparates, de deploráveis engodos e de promessas vazias que nos faz indiferentes ao cinismo político que trata de defender estratégias de irresponsabilidade sobre a mesma negação do dever, sobre a mesma certeza de dispor de um crédito infinito sobre os cidadãos.

Não há um problema de crise econômica distinto do problema de crise moral e política, distinto do problema de crise administrativa e judicial. O que de fato existe, “mais além” de uma crise econômica, é uma crise maior da qual não saímos e nem parece que vamos sair. Crise que se incrustou em nossa forma de vida e que não somente não apresenta melhoria, senão que, como um câncer, se estende e se generaliza. Crise mais preocupante que a econômica e que não para de pedir a gritos a afirmação da confiança, da virtude, da honradez, da liberdade e da segurança pública, sob pena de vermos completamente dilapidado nosso capital moral tanto como o financeiro.

Como deixa em evidência o corrente frenesi social, o que efetivamente está em jogo é a confiança, mas não a confiança puramente econômica. A confiança que necessita o cidadão brasileiro é, em última instância, democrática, porque nem as instituições nem as pessoas que ostentam os cargos de maior responsabilidade sabem mais como ganhar-se a reputação e o prestígio imprescindíveis para merecer a confiabilidade e a credibilidade por parte da cidadania. Um tipo de confiança que constitui a principal forma de capital social, um reconhecimento do terreno comum no qual nos movemos como cidadãos. E nenhuma lei, medida provisória, ajuste fiscal, acordo parlamentar ou medida de cunho estritamente política pode suprir esta escassez dos recursos morais que surgem das boas práticas. 

Por dizê-lo de alguma maneira, a falta de liquidez é uma carência político-democrática; o déficit creditício é um déficit moral. Porque o segredo da mão invisível não é somente o capital econômico, senão também o capital ético e social. Adam Smith sabia que os sentimentos morais não são menos importantes para assegurar a riqueza das nações que os mercados de capital. Ademais, se a democracia significa algo moralmente, os protagonistas visíveis da vida pública têm um dever de exemplaridade, coerente com os valores que dão sentido às sociedades democráticas. A corrupção desenfreada, a delirante malversação de bens públicos, o desgoverno, o desinteresse pelo sofrimento dos que realmente padecem as desmesuradas consequências destas crises (econômica e, sobretudo, democrática), produzem indignação em ocasiões, mas também modelos que se vão copiando com resultados desastrosos para o bem comum. Enquanto olvidemos estas verdades, o fracasso do Estado brasileiro continuará garantido e a pergunta sobre “o que fazer com nossa falta de confiança” será pura metáfora.

É esta, pois, a verdadeira crise, crise que não apenas do presente, mas que desde há muito tempo nos atinge: um profundo e crônico problema de falta de confiança, um tipo de prática que debilita tanto as bases da vida social comunitária como a eficácia mesma dos valores compartidos e da cidadania. Crise das mais graves que se vive como um autêntico fracasso do país em seu conjunto e que põe de manifesto as deficiências e debilidades do espírito cívico: o Estado a correr o risco de ser negado como Estado, que a si mesmo se anula e se dilui em intencionalidades (substratos mentais, componentes psicológicos) caprichosas e medidas políticas ilegítimas.

Vou rematar com uma anedota de Slavoj Žižek (o “filósofo mais polêmico do mundo”) para ilustrar a forma como o governo tem tratado as “crises” e como a guerra contra estas tem sido uma farsa e uma tragédia: “La noche antes de que lo arresten y lo crucifiquen, sus seguidores comienzan a preocuparse: Cristo todavía es virgen; ¿no sería bonito que tuviera una experiencia un poco agradable antes de murrir? Así que le piden a María Magdalena que vaya a la tienda donde Cristo está descansando y lo seduzca; María dice que lo hará encantada y entra, pero cinco minutos después sale chillando, aterrada y furiosa. Los seguidores de Cristo le preguntan qué ha pasado, y ella les contesta: «Me he desvestido poco a poco, he abierto las piernas y le he enseñado el coño a Cristo; él se lo ha quedado mirando y ha dicho: “¡Qué herida tan terrible! ¡Deberíamos curarla!”, y suavemente ha colocado encima la palma de la mano.»”

Assim que, para evitar proferir o mesmo grito aterrado de Maria Madalena, há que andar com muito cuidado com a gente demasiada empenhada em curar as feridas, principalmente quando demonstram não ter a menor consciência do mundo em que vivem e são manifestamente ineptas para lograr plenamente qualquer coisa que creiamos que podem fazer. Pensar sobre a atual crise econômica e democrática que atravessa o país só confirma esta incômoda verdade.  

Sobre o autor
Atahualpa Fernandez

Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDEZ, Atahualpa. Brasil, crise econômica e crise democrática:: entre a tirania da estupidez e a arte de perder-se . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4358, 7 jun. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/39734. Acesso em: 16 nov. 2024.

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