4. A TRANSEXUALIDADE E A VISÃO PATOLOGIZANTE
Se “normalmente” gênero e sexo são harmônicos no indivíduo, o que ocorre na transexualidade é justamente um desacordo perturbador para o sujeito entre o seu gênero e o seu sexo. Esse desacordo promove problemas de diversas ordens para a vida desse sujeito.
O sexo psicológico, que é o sentimento de masculinidade ou feminilidade que o indivíduo possui, no caso dos transexuais, não coincide com o sexo biológico, pautado na genitália. Há uma incongruência entre o sexo atribuído na certidão de nascimento e a identidade psíquica de gênero do indivíduo e um desacordo com o que tido como normal, ou seja: o indivíduo identifica-se com o gênero oposto, gerando, inclusive, a rejeição do próprio corpo e o entendimento de que fora vítima de um “erro biológico”.
Segundo Maranhão Filho (2011), as pessoas 'trans', em maioria, podem ser consideradas sujeitos que vivenciam experiências entre gêneros. Por terem um gênero atribuído na gestação e/ou nascimento que não as contemplam (feminino/masculino) e pelo fato de se identificarem com o gênero distinto deste, vivenciam experiências entre gêneros. Estão entre o gênero de atribuição e o de identificação.
A concepção patologizante da identidade ‘trans’ é absurdamente inquietante. Desde a década de 70, do século passado, reivindica-se a despatologização da transexualidade e se busca a ratificação da ideia de que a identidade sexual é, em si, um preconceito limitador da liberdade individual.
Na atual classificação, qual seja, a CID[8] - 10 (1990), em que se elaborou uma lista na seção dos "Transtornos de Comportamento e Personalidade em Adultos” e uma nova categoria de transtornos de identidade de gênero (F64), que inclui cinco diagnósticos: transexualismo (F64.0), travestismo de duplopapel (F64.1), transtorno de identidade de gênero na infância (F64.2), outros transtornos de identidade de gênero (F64.3) e transtorno de identidade de gênero não especificada (F64.4), o transexualismo (F64.0) é tido como “um desejo de viver e ser aceito como um membro do sexo oposto, usualmente acompanhado por uma sensação de desconforto com, ou inadequação, do próprio sexo anatômico e um desejo de fazer um tratamento hormonal e cirurgia para conseguir o corpo de alguém tão congruente quanto possível com o sexo preferido”.
Ressalte-se que o sufixo ‘ismo’, da palavra transexualismo, como atribui, erroneamente, a Organização Mundial de Saúde, refere-se à doença, à patologia. Não é transexualismo, haja vista não ser doença. Sobre transexualidade, dispõe Maria Helena Diniz, conforme exposto a seguir:
Transexualidade é a condição sexual da pessoa que rejeita sua identidade genética e a própria anatomia do seu gênero, identificando-se psicologicamente com o gênero oposto. Trata-se de um drama jurídico-existencial, por haver uma cisão entre a identidade sexual física e psíquica [...] Sente que nasceu com o corpo errado, por isso, recusa totalmente o seu sexo, identificando-se psicologicamente com o oposto ao que lhe foi imputado na certidão de nascimento, apesar de biologicamente não ser portador de qualquer anomalia. [...] Por tal razão, é preciso respeitá-lo como ser humano, não considerando a aparência física que provoca ou sua preferência sexual. Urge que se respeite sua dignidade, já que não foi favorecido pela sorte, sofrendo de perturbação de identidade sexual (DINIZ, 2011, p. 316).
A transexualidade é entendida, pela classe médica e por parte da doutrina jurídica, como um distúrbio de identidade de gênero ou disforia de gênero ou, ainda, perturbação de identidade de gênero (PIG), ou seja, como um transtorno psíquico, uma doença genética e incurável, provocada por defeito cromossômico ou fatores hormonais. E, ainda, acreditam que o mais acertado seria mudar a mente do transexual através da psicoterapia ou psicanálise, adequando-a aos seus atributos físicos.
Cabe suscitar que a Organização Mundial de Saúde (OMS) encontra-se, atualmente, em processo de revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10, 1992), sendo que a publicação da CID-11 está prevista para 2015 e espera-se que haja uma uniformização entre a classificação da OMS e a classificação da DSM (Associação Americana de Psiquiatria), despatologizando a transexualidade.
5. AS TRANSEXUAIS E O RESPEITO À SUA IDENTIDADE DE GÊNERO
Como é cediço, as transexuais possuem uma identidade distinta da sua aparência anatômica. A partir da divergência entre a aparência e a identidade, passam à rejeição dos papéis que lhes foram atribuídos e a constituir uma história social e cultural em um corpo construído, tendo como referência uma identidade própria que, obviamente, independe de uma identificação civil. E partindo do pressuposto de que expõem o que não deveriam, tornam-se violadores de uma ordem pré-estabelecida regada a falsos moralismos e fincada em bases vis.
Quando passam a vivenciar uma identidade distinta de sua constituição anatômica, as transexuais angariam, de certa forma, o desinteresse da norma e o incômodo da sociedade, porque passam a subverter a lógica machista, base da construção societária patriarcal.
Logo, são tomados por atos que segregam e violentam. Os “inadaptados”, os “desviantes” são colocados à margem dos espaços coletivos ocupados, à margem dos mercados formais de trabalho e de formação acadêmica. A binariedade socialmente construída e amarrada e do que é masculino/feminino, o sujeitará, imediatamente, à rejeição, ao descaso, à discriminação e estarão as transexuais relegadas à infindável exclusão social e legal.
Carregam consigo um sentimento individual de identidade, por tê-la coerente com o gênero oposto. Clarividente que conviver com a incoerência entre o corpo e a mente deve ser doloroso e não se pode permitir que a dignidade da pessoa humana seja afrontada dessa forma, tendo em vista as frequentes aparições de mutilações genitais, autoextermínio, o ‘voltar-se contra o próprio corpo’ por não entendê-lo como seu.
As transexuais não têm a alternativa de se fazerem “invisíveis” por muito tempo, haja vista, experimentarem a identidade que possuem e serem, através do próprio corpo, a materialização da sua causa. Ela, diferentemente da própria orientação sexual, não pode ser escondida, ocultada. Não se guarda no armário! Eles trazem o estigma, o “desvio” no corpo, como uma marca.
Esse estigma faz com que elas passem, de certa forma, a confundir a própria percepção de si mesmos quando deglutem a reprodução dos padrões daqueles que os discriminam. Nesse sentido, Goffman discorre o seguinte:
Ainda pode perceber de maneira bastante correta que, não importa o que os outros admitam, eles na verdade não o aceitam e não estão dispostos a manter com ele um contato com “bases iguais”. Ademais, os padrões que ele incorporou da sociedade maior tornam-no imediatamente suscetível ao que os outros veem como seu defeito, levando-o inevitavelmente, mesmo que em alguns poucos momentos, a concordar que, na verdade, ele ficou abaixo do que realmente deveria ser. A vergonha de torna uma possibilidade central, que surge quando o indivíduo percebe que um de sues próprios atributos é impuro e pode imaginar-se como um não-portador dele (GOFFMAN, 1988, p.14).
Então, se a identidade, por si só, já é suficiente para a vivência do gênero oposto, por que amarrá-los a uma identidade social que não lhes cabe?
Os indivíduos com identidade ‘trans’ fazem parte dos valores que devem ser acolhidos pelo princípio norteador da dignidade da pessoa humana. Isso não lhes pode ser negado! O que o Direito pode proporcionar, em alguma medida, servirá para minimizar a angústia e o constrangimento trazidos pela vivência da identidade de ‘trans’, permitindo que essas pessoas vivenciem o seu corpo, modificado ou não.
Não se pode viabilizar apenas alguns meios, como o nome social, e esperar que os Magistrados utilizem de malabarismo para permitir aquilo que o Direito, silente, já deveria permitir, não mais como mecanismos de exceção.
Não se trata de uma incoerência apenas, mas uma discordância que deve ser reconhecida. Partindo do pressuposto de que a experiência subjetiva do gênero é que deve prosperar, busquemos um Estado democrático que tenha como princípio básico a tolerância e que esteja sempre atento às multiplicidades.
REFERÊNCIAS
BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.
BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade; tradução, Renato Aguiar. – 3ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileiro, 2010.
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito, 8. ed. rev.,aum. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2011.
FACHIN, Luiz Edson. Curso de Direito Civil. Elementos críticos do Direito de família. São Paulo: Renovar, 2013.
MEAD, Margareth, 1901-1978. Sexo e temperamento; [tradução Rosa Krausz]. São Paulo: Perspectiva, 2009.
Notas
[2] Referência ao termo transexual.
[3] FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 192.
[4] O termo heterossexualidade compulsória foi criado pela feminista Adrinne Rich, em 1980, e aponta para o fato de que as mulheres são convencidas que casamento e a orientação sexual voltadas para os homens são inevitáveis. O homem é feito para a mulher e vice-versa, e todas as vivências fora disso são problematizadas.
[5] Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero. Para mais informações, ver: http://www.clam.org.br/pdf/principios_de_yogyakarta.pdf.
[6] A sigla LGBT se refere a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e trangêneros. O uso do termo foi aprovado durante conferência realizada em Brasília, em 2008, e substituiu a sigla GLS (gays, lésbicas e bissexuais), utilizada até então para representar a diversidade sexual.
[7] A heteronormatividade se sustenta na ideia que ter um pênis significa ser másculo, isto é, no gênero como parte da natureza.
[8] CID: Classificação Internacional de Doença.