Introdução
A Constituição Federal de 1988 inovou ao estabelecer que a instituição familiar não era mais constituída apenas através pelo casamento, e passou a permitir que a família também pudesse ser fruto de uma união estável ou monoparental.
Como resultado, junto à presença de uniões paralelas na sociedade, o judiciário passou a reconhecer a estas a incidência dos direitos garantidos pelo Estado a entidade familiar.
Destarte, o presente artigo vem discutir se o Princípio da Monogamia continua sendo o principal norteador para declarar a existência de uma entidade como Família.
Para tanto, é necessário estabelecer a aplicação deste princípio no ordenamento jurídico atual e compará-lo posteriormente com o Princípio da Afetividade, o qual traz em seu bojo a União Estável e o Concubinato, para tratar ao final da União Paralela e sua repercussão jurídica diante das correntes doutrinárias existentes.
1. Princípio da Monogamia como Dogma
O Princípio da Monogamia proíbe o matrimônio com mais de uma pessoa e determina que haja fidelidade recíproca do homem com a esposa e vice-versa. Dessa forma, é imposto que todas as relações de afeto, comunhão, carnais, de deveres e obrigações sejam realizadas com apenas um cônjuge. Este tornou-se a base para instituir a entidade que detêm tutela especial do Estado para sua proteção, a Família.
Com este princípio, surge a principal forma de constituir uma família, o casamento. Beviláqua (1993) considera o casamento como um contrato bilateral e solene, pelo qual um homem e uma mulher se unem indissoluvelmente, legalizando por ele suas relações sexuais, estabelecendo a mais estreita comunhão de vida e de interesses, e comprometendo-se a criar e educar a prole que de ambos nascer.[1]
Em uma sociedade com tradição judaico-cristã, por muito tempo, foi considerado como Família apenas as uniões originadas pelo matrimônio, enquanto outras que careciam da titularidade do casamento ou eram paralelas a este, eram discriminadas por fugirem à regra da época.
Prova disto é visto no revogado Código Civil de 1916, em que havia em sua parte especial em referência ao direito da família, apenas o casamento como forma de união detentora de direitos e deveres. E não parou ai, a influência do Princípio da Monogamia chegou a ultrapassar tutela cível e alcançou a esfera penal. No vigente Código Penal de 1940, é encontrado um capítulo referente aos crimes contra o casamento, que originou o crime de Bigamia[2] e Adultério[3], os quais eram claramente uma afronta à base institucional da família.
Diante do repúdio criado no século no início do século XX em função da consideração do Princípio da Monogamia como dogma, tornaram-se pretéritas muitas mulheres que não possuíam a segurança do matrimônio. Mulheres que não eram casadas ou eram cúmplices de uma relação adulterina não tinham direito algum aos bens adquiridos na constância da união e nem mesmo ao patrimônio deixado pelo falecido, independente da existência de uma relação de comunhão de vida pública, contínua e duradoura.
Mesmo assim, o Princípio da Monogamia está longe de ser um princípio Constitucional a reger o Direito da Família, e não passa a ser um sistema de regras morais.
Com as palavras de Dias (2013, p.164), "pretender elevar a monogamia ao status de princípio constitucional autoriza que se chegue a resultados desastrosos. Por exemplo, quando há simultaneidade de relações, simplesmente deixar de prestar efeitos jurídicos a um ou, pior, a ambos os relacionamentos, sob o fundamento que foi ferido o dogma da monogamia, acaba permitindo o enriquecimento ilícito exatamente do parceiro infiel. Resta ele como a totalidade do patrimônio e sem qualquer responsabilidade para como o outro."
Atualmente, o Princípio da Monogamia determina muitos efeitos na esfera da Família, principalmente no que se refere ao instituto do casamento, mas com a mutabilidade do conceito de família e dependendo do caso concreto, sua aplicação deixa de ter sua originária importância para dar lugar ao Princípio da Afetividade.
2. Princípio da Afetividade e as Uniões Não Matrimoniais
O afeto é o laço abstrato que vinculam as pessoas em razão da comunhão de vários sentimentos. Sentimentos de amor, de felicidade, de proteção, dentre outros que originam a vontade de uma pessoa querer sempre estar junto a outra, de querer manter uma união a fim de conviverem entre si.
A partir dessa ideia, a família deixou de ser considerada um contrato que estabelece obrigações e deveres patrimoniais, núcleo econômico e de reprodução[4]. A famílias passaram a ser formais ou informais, indígenas ou exóticas, ontem como hoje, por mais complexa que se apresentem, nutrem-se, todas elas, de substâncias triviais e ilimitadamente disponíveis a quem delas queira tomas afeto, perdão, solidariedade, paciência, devotamento, transigência, enfim, tudo aquilo que, de um modo ou de outro, possa ser reconduzido à arte e à virtude do viver em comum. A teoria e a prática das instituições de família dependem, em última análise, de nossa competência em dar e receber amor.[5]
O Princípio da Afetividade é o novo princípio norteador do direito da família, e este fato constituiu-se pelo surgimento de uniões concubinas e estáveis, a princípio mal vista pela sociedade, e que passaram a ter a atenção do legislador no Código Civil de 2002.
2.1 Concubinato e União Estável
Durante muito tempo, o casamento foi a única forma de constituição de uma família, negando efeitos jurídicos ao concubinato.
Do latim, “cum cubo” significa encontrar-se dentro de um cubículo, enquanto “cum pane” que dá origem à palavra companheiro, significa comer o mesmo pão.[6] Ishida descreve, em sentido amplo, o concubinato como "a união estável do homem e da mulher, sem a existência do matrimônio."[7]
Houve tempos em que a união de pessoas que viviam juntas sem casar, compartilhavam mutuamente seus patrimônios e criavam filhos com o objetivo de estabelecer uma família era nomeada como Concubina. No entanto, também era tratado como concubinato a relação do homem casado com a amante, a concubina. Em razão disso, as uniões que não fossem intuídas com o casamento não eram consideradas dignas na sociedade.
Diante disto, a doutrina veio estabelecer duas espécies do mesmo gênero, que vem a ser o concubinato puro e o impuro.
Puro é o concubinato em que não há impedimento entre o casal para a realização do matrimônio, quando ambos estão de boa-fé. Enquanto que impuro é o que ocorre na presença dos impedimentos ao matrimônio, abrangendo o adultério e o incesto.
Como o legislador ainda se mantinha "cego" diante da existência das uniões não matrimoniais e as concomitantes ao casamento, o judiciário buscou "janelas" para garantir certos direitos a fim de não haver enriquecimento ilícito do adúltero em meio a uma relação que formou patrimônio.
O único meio foi reconhecer estas uniões concubinárias como sociedade de fato, permitindo então que todo o patrimônio adquirido por esforço comum na constância do concubinato fosse repartido. O STF considerou que esses efeitos patrimoniais decorriam de obrigações criadas pela convivência do casal, motivando então a criação de Súmula aprovada no ano de 1964:
Súmula 380: Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.
Em outras situações, quando não fosse possível esta partilha, apenas cabia ao tribunal a aplicação de indenização por serviços domésticos, quando comprovada a caracterização da mulher como "dona de casa" e sua prestação laboral no ambiente doméstico.
Fica evidente como era impossível estabelecer uniões familiares sem o casamento, cabendo tão somente gizar pela existência de uma sociedade de fato para tratar de obrigações em varas cíveis, em vez de pedir pela existência de uma união com o objetivo de constituição de família na vara da família.
Após a constituição de 1988 e o Código Civil de 2002, o legislador finalmente preencheu as lacunas da lei que preteriam as uniões existentes em nossa sociedade.
A Carta Magna trouxe um novo dispositivo:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
O termo "união estável" originou-se do concubinato puro, ou seja, quando entre uma relação de indivíduos não há nenhum impedimento para o matrimônio, e passou a ser reconhecido como uma entidade familiar, sem necessidade de fluir de um casamento, digna de proteção estatal.
O legislador fez o favor de conceituar a união estável no novo Código Civil:
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
O Código Civil também assegurou alimentos, estabeleceu a comunhão parcial de bens a vigorar em uma união estável e garante ao sobrevivente os direitos sucessórios. Na verdade, a legislação infraconstitucional que veio regular essa nova espécie de família praticamente copiou o modelo oficial do casamento, e até mesmo facilita sua conversão para o casamento, tanto pelo dispositivo constitucional supra, quando pelo Art. 1.726 do C.C.[8]
Destarte, uma nova espécie de família surgiu, onde os companheiros e conviventes são merecedores da mesma tutela do Estado oferecida ao casamento. A partir deste momento, não havia mais justificativa para tratar este relacionamento como sociedade de fato e tratar uma união afetiva como um contrato obrigacional ou indenização por serviços domésticos como se a companheira fosse uma empregada no lar do homem.
Por outro lado, o concubinato também obteve a atenção do legislador, no que tange à preocupação de diferenciá-la da união estável:
Art. 1.727. As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.
Enquanto que o concubinato puro se tornou união estável, nova entidade familiar protegida pelo estado, o concubinato permaneceu com a mesma terminologia, significado e resultado. O concubinato permaneceu sendo uma união notória, contínua, duradoura, mas com impedimentos matrimoniais, reflexo do tradicional princípio da monogamia.
Gritante foi o desprestígio do legislador ao tratar do concubinato de forma tão "pobre" e deixar com a doutrina o cargo de formar conceitos divergentes diante dos diferentes efeitos desta união no ordenamento jurídico
De fato, é observado que o legislador, tomando como base o afeto, teve a coragem de reconhecer normativamente os efeitos aplicáveis do direito da família às relações de concubinato puro ou união estável. Em contrapartida, mesmo com a discriminação ainda presente no concubinato, será verificado no próximo tópico que o Princípio da Afetividade também desperta seus efeitos no direito da família no que se refere a presença de uniões paralelas.
3. União Paralela e sua Repercussão no Ordenamento Jurídico
A união de afeto ou amorosa que existe concomitantemente a outra é chamada de união paralela. Esta espécie de união também é conhecida como ou concubinato adulterino, impuro, impróprio, espúrio, de má-fé, e é alvo de repúdio social, legal e judicial.
Não tem como negar a existência das relações paralelas, fruto do adultério ou da infidelidade, e sua marca nos costumes de nossa sociedade. O ser humano é um ser social, e para tanto constrói suas relações com o próximo através de sentimentos de solidariedade, afeto e amor. E em consequência disto e de seus instintos, alguns optam por buscar a felicidade através de mais de uma relação, que dependendo do caso concreto, pode surtir efeito no campo familiar quando há presente nesta o objetivo de constituir uma família em vez de apenas atingir a satisfação sexual.
Os efeitos oriundos da união paralela repercutem no Direito da Família quando nesta há a presença das mesmas características da união estável. Afinal, esta por ser informal e por produzir seus efeitos desde o início da relação, acaba por conter similaridades quando comparadas com o concubinato, principalmente quando a única distinção destas relações é a capacidade de constituir matrimônio.
Destarte, em razão da omissão do legislador em firmar um entendimento pacífico, a doutrina, por meio das normas, dos costumes e da jurisprudência, formou três correntes que trazem em seu bojo seus entendimentos relativos ao tema.
A primeira corrente dita que nenhuma relação paralela deva ser reconhecida como entidade familiar, desmerecedora então da tutela protetiva do estado.
Diniz, apoia o afastamento das uniões paralelas no direito da família por acreditar que para a configuração da união estável, "há de ser verificada a presença de fidelidade, pois sem ela, e sem relação monogâmica, o relacionamento passará à condição de "amizade colorida", sem o status de união estável."[9] Além do mais, para ela, "meros relacionamentos sexuais casuais ou aventuras amorosas não geram quaisquer efeitos jurídicos."[10]
Neste sentido segue parte da jurisprudência:
DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. RELAÇÃO CONCOMITANTE. DEVER DE FIDELIDADE. INTENÇÃO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. AUSÊNCIA. ARTIGOS ANALISADOS: ARTS. 1º e 2º da Lei 9.278/96. 1. Ação de reconhecimento de união estável, ajuizada em 20.03.2009. Recurso especial concluso ao Gabinete em 25.04.2012. 2. Discussão relativa ao reconhecimento de união estável quando não observado o dever de fidelidade pelo de cujus, que mantinha outro relacionamento estável com terceira. 3. Embora não seja expressamente referida na legislação pertinente, como requisito para configuração da união estável, a fidelidade está ínsita ao próprio dever de respeito e lealdade entre os companheiros. 4. A análise dos requisitos para configuração da união estável deve centrar-se na conjunção de fatores presente em cada hipótese, como a affectio societatis familiar, a participação de esforços, a posse do estado de casado, a continuidade da união, e também a fidelidade. 5. Uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade - que integra o conceito de lealdade e respeito mútuo - para o fim de inserir no âmbito do Direito de Família relações afetivas paralelas e, por consequência, desleais, sem descurar que o núcleo familiar contemporâneo tem como escopo a busca da realização de seus integrantes, vale dizer, a busca da felicidade. 6. Ao analisar as lides que apresentam paralelismo afetivo, deve o juiz, atento às peculiaridades multifacetadas apresentadas em cada caso, decidir com base na dignidade da pessoa humana, na solidariedade, na afetividade, na busca da felicidade, na liberdade, na igualdade, bem assim, com redobrada atenção ao primado da monogamia, com os pés fincados no princípio da eticidade. 7. Na hipótese, a recorrente não logrou êxito em demonstrar, nos termos da legislação vigente, a existência da união estável com o recorrido, podendo, no entanto, pleitear, em processo próprio, o reconhecimento de uma eventual uma sociedade de fato entre eles. 8. Recurso especial desprovido.(STJ - REsp: 1348458 MG 2012/0070910-1, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 08/05/2014, T3 - TERCEIRA TURMA).
Em vista disso, qualquer relacionamento paralelo ao casamento ou a outra união estável não é merecedor de repercussão no direito da família, pois, conhecidos apenas como sociedades de fato, devem ser tratados no campo obrigacional em varas cíveis.
A segunda corrente reconhece as uniões estáveis paralelas putativas, ou seja, quando o cúmplice não tinha ciência dos impedimentos do adúltero. Nestes casos, há o reconhecimento da união como entidade familiar.
Este posicionamento é uma evidente comparação ao casamento putativo disposto no Art. 1.561 do C.C.:
Art. 1.561. Embora anulável ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé por ambos os cônjuges, o casamento, em relação a estes como aos filhos, produz todos os efeitos até o dia da sentença anulatória.
§ 1o Se um dos cônjuges estava de boa-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só a ele e aos filhos aproveitarão.
Nas sábias palavras de Oliveira, pode haver união estável putativa quando o partícipe de segunda união não saiba da existência de impedimento decorrente da anterior e simultânea não do seu companheiro; para o comparecimento de boa-fé subsistirão os direitos da união que lhe parecia estável, desde que duradoura, contínua, pública e com propósito de constituição de família, enquanto não reconhecida ou declarada a sua invalidade em face de uma união mais antiga e que ainda permaneça.[11] E assim como o autor anterior, o mestre Veloso também defende o reconhecimento ao companheiro de boa-fé "uma união estável putativa, com os respectivos efeitos para este parceiro inocente."[12]
Quanto ao posicionamento dos tribunais:
APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO ESTÁVEL. CASAMENTO. SEPARAÇÃO FÁTICA. BOA FÉ. UNIÃO ESTÁVEL PUTATIVA. 1. A apelada alegou ter vivido em união estável com o falecido por cerca de 19 anos, residindo com ela sob o mesmo teto em São Gabriel, e com ele teve duas filhas. De outro lado, as apelantes sustentam que ele se manteve casado até o óbito, mantendo residência com a esposa em Passo Fundo. 2. Não ficou cabalmente demonstrado que, não obstante a vida profissional, social e familiar que o de cujus tinha em São Gabriel, ele tivesse mantido hígido e sem qualquer ruptura fática seu casamento. A prova por vezes se mostra dúbia e insuficiente, corroborando uma e outra das teses alegadas. 3. E, ainda que assim não fosse, diversamente do que sustentam as apelantes, o caso admite o reconhecimento da união estável putativa, autorizando que, excepcionalmente, à semelhança do casamento putativo, se admita a produção de efeitos à relação fática, pois a autora foi tomar conhecimento da condição de casado do falecido quando a segundo filha já contava 09 anos de idade, evidenciando sua boa-fé. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70060286556, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 25/09/2014).
A partir daí, percebe-se um avanço em relação à aplicação dos modernos conceitos de família e do afastamento do princípio da monogamia como norteador do tema. Agora, à companheira de boa-fé são garantidas as mesmas proteções ao casamento putativo pelo poder judiciário.
Por último, há a terceira corrente que reconhece a união estável em mais de uma relação e que é defendida pela ex-desembargadora Dias, a mesma expõe em seu Manual de Direito das Famílias:
Negar a existência de famílias paralelas - quer um casamento e uma união estável, quer duas ou mais uniões estáveis - é simplesmente não ver a realidade. Com isso a justiça acaba cometendo enormes injustiças, Verificadas duas comunidades familiares que tenham entre si um membro em comum, e preciso operar a apreensão jurídica dessas duas realidades. São relações que repercutem no mundo jurídico, pois os companheiros convivem, muitas vezes têm filhos, e há construção patrimonial em comum. não ver essa relação, não lhe outorgar qualquer efeito, atenta contra a dignidade dos partícipes e da prole porventura existente.[13]
Para tratar dos possíveis efeitos originados de uma união paralela, é necessário estar ciente das informações presentes no caso concreto, principalmente no que se refere à concomitância de um casamento e uma união estável ou união estável com união estável, como também se houve rompimento de uma das uniões ou se a dissolução ocorreu por falecimento de um dos partícipes.
No fim de uma relação concomitante ao casamento, deve-se garantir a meação da esposa, enquanto que na meação do varão haverá a partilha com a companheira, com referência aos bens adquiridos no período do convívio. Na presença de duas ou mais uniões estáveis constituídas em períodos diferentes, sem saber se há prevalência entre elas, caberá a divisão do acervo patrimonial adquirido na constância do convívio em partes iguais, o que resultado no que o desembargador Rui Portanova denomina de triação:
APELAÇÃO. UNIÃO ESTÁVEL PARALELA AO CASAMENTO. RECONHECIMENTO. PARTILHA. "TRIAÇÃO". ALIMENTOS PARA EX-COMPANHEIRA E PARA O FILHO COMUM. Viável reconhecer união estável paralela ao casamento. Precedentes jurisprudenciais. Caso em que restou cabalmente demonstrada a existência de união estável entre as partes, consubstanciada em contrato particular assinado pelos companheiros e por 03 testemunhas; e ratificada pela existência de filho comum, por inúmeras fotografias do casal junto ao longo dos anos, por bilhetes e mensagens trocadas, por existência de patrimônio e conta bancária conjunta, tudo a demonstrar relação pública, contínua e duradoura, com claro e inequívoco intento de constituir famílias e vida em comum. Reconhecimento de união dúplice que impõe partilha de bens na forma de "triação", em sede de liquidação de sentença, com a participação obrigatória da esposa formal. Precedente jurisprudenciais. Ex- companheira que está afastada há muitos anos do mercado de trabalho, e que tem evidente dependência econômica, inclusive com reconhecimento expresso disso no contrato particular de união estável firmado entra as partes. De rigor a fixação de alimentos em prol dela. Adequado o valor fixado a título de alimentos em prol do filho comum, porquanto não comprovada a alegada impossibilidade econômica do alimentante, que inclusive apresenta evidentes sinais exteriores de riqueza. Apelo do réu desprovido. Apelo da autora provido. Em monocrática(TJ-RS - AC: 70039284542 RS, Relator: Rui Portanova, Data de Julgamento: 23/12/2010, Oitava Câmara Cível).
Em caso do falecimento do varão casado, em acordo com o regime de bens que vigorou, deve ser afastado a meação da viúva e o acervo dos herdeiros, a parte disponível será dividida com a companheira com referência aos bens adquiridos da relação. O mesmo ocorre no falecimento da companheira, podendo os filhos dela buscar em juízo o reconhecimento da união estável. Inexistindo herdeiros na classe de descendente e ascendente, a herança será dividida entra a viúva e a companheira.
Tratando da questão da boa-fé, é interessante o entendimento de Pianovski (2006) no caso da presença de má-fe de todos os integrantes da união quando diz que:
Se a ostensibilidade é plena, estendendo-se a todos os componentes de ambas as entidades familiares [...] e mesmo assim ambas as famílias se mantêm íntegras, sem o rompimento dos vínculos de coexistência afetiva, pode ser viável concluir, segundo as peculiaridades que se apresentam no caso concreto à luz dos demais deveres inerentes à boa-fé, que a simultaneidade não seria desleal, não havendo violação de deveres de respeito à confiança do outro e, sobretudo, de proteção da dignidade dos componentes de ambas as famílias. A simultaneidade atenderia, assim, em tese, às pretensões de felicidade coexistencial de todos os componentes das famílias em tela.[14]
É o que se vê na vida da figura pública Wagner Domingues da Costa, mais conhecido como Mr. Catra, que mantêm um relacionamento com quatro esposas[15] e na cidade de Tupã, interior de São Paulo, onde um cartório fez uma escritura de uma união estável poliafetiva entre duas mulheres um homem que viviam na mesma casa por três anos.[16]
Claro que justificativas não faltam a quem quer negar efeitos jurídicos à escritura levada a efeito. O fato é que descabe realizar um juízo prévio e geral de reprovabilidade frente a formações conjugais plurais e muito menos subtrair qualquer sequela à manifestação de vontade firmada livremente pelos seus integrantes.[17]
Nem o STJ ou STF reconhecem a existência das uniões paralelas, mesmo assim, é longe de pacificação o entendimento acerca das uniões estáveis concomitantes dentre os tribunais. Diante deste fato, foi reconhecido o caráter de repercussão geral sobre o tema:
O presente recurso trata sobre tema (possibilidade de reconhecimento jurídico de união estável e de relação homoafetiva concomitantes, com o consequente rateio de pensão por morte Tema 529) em que a repercussão geral foi reconhecida por este Supremo Tribunal Federal (ARE 656.298-RG, rel. min. Ayres Brito). Do exposto, nos termos do art. 328 do RISTF (na redação dada pela Emenda Regimental 21/2007), determino a devolução dos presentes autos ao Tribunal de origem, para que seja observado o disposto no art. 543-B e parágrafos do Código de Processo Civil. Publique-se. Brasília, 13 de março de 2012.Ministro JOAQUIM BARBOSA Relator(STF - RE: 675131 RS, Relator: Min. JOAQUIM BARBOSA, Data de Julgamento: 13/03/2012).
O reconhecimento de uniões paralelas, independente da boa ou má-fé, é um desafio enquanto permanecer o entendimento tradicional de família. Enquanto isto, sem a tutela protetiva do estado, as uniões paralelas ainda são tratadas como sociedades de fato, indignas de estarem sobre a competência das varas de família.