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O Estado brasileiro e o novo conceito de unidade familiar: uniões homoafetivas

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4. O ESTADO BRASILEIRO E AS NOVAS UNIDADES FAMILIARES

Conforme já discorrido nos capítulos anteriores, o Estado brasileiro passa por um período de evolução social e legislativa. A Constituição Federal, promulgada em 1988, foi um marco na abertura democrática do país. Um texto extremamente prolixo, que trata em seu bojo dos mais diversos aspectos que afetam a vida no país, desde as garantias fundamentais de seus cidadãos, a formação da unidade federativa brasileira e, na parte que nos cabe, a proteção estatal ao instituto da família.

A evolução social é sensível e salta aos olhos, restando claro que o Brasil de hoje pouco lembra o Brasil do fim do Século XX, época da promulgação da Carta Magna e das normas infraconstitucionais que garantiam o alcance e a amplitude do texto constitucional. O Brasil do Século XXI é uma democracia representativa, formada por uma população extremamente diversificada, resquícios da colonização.

As relações homoafetivas ganharam corpo, mostraram sua face e começaram a adquirir e lutar por direitos e, sob o aspecto social, começaram a constituir-se em novas células familiares. Entretanto, por ser o nosso país notadamente de maioria cristã, essas unidades familiares recém-concebidas encontram forte resistência quanto ao reconhecimento formal dessa condição.

A doutrina entende que as uniões homoafetivas não se equiparam ao casamento, porquanto lhe faltem três elementos essenciais: diversidade de sexos, consentimento dos nubentes e a forma solene (GOMES, 1999). Outro argumento largamente utilizado é a impossibilidade, nesses casos, de procriação, um fim em potencial do casamento.

Em que pese esse fato e a controvérsia daí decorrente, o certo é que o estado brasileiro tem se furtado a reconhecer essas relações e a esses sujeitos, enquanto sujeitos de direito, tendo que se recorrer ao judiciário sempre que há alguma controvérsia, algum direito a ser buscado ou problema “conjugal” a ser resolvido.

A omissão estatal só não é plena porque, recentemente, o Judiciário, representado pela instância máxima da Justiça nacional (o Supremo tribunal Federal), conferiu ao Art. 1723 do nosso Código Civil interpretação conforme a Constituição, de modo a garantir, ao menos parcialmente, os direitos às unidades familiares homoafetivas, conferindo às uniões de pessoas do mesmo sexo o status de união estável, com todos os efeitos daí decorrentes, conforme se verá mais adiante.

Assim, enquanto o agente político (o legislador) não expediu regulamentação clara e objetiva que delimite os direitos, deveres e obrigações dessas novas unidades familiares, o judiciário, por seu turno, valendo-se da analogia e da aplicação dos princípios inscritos na Carta Magna para conferir direitos e registrar obrigações. A seguir, transcrevem-se alguns julgados dos tribunais pátrios, cujo tema é a relação homoafetiva:

APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOAFETIVA. RECONHECIMENTO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE. É de ser reconhecida judicialmente a união homoafetiva mantida entre dois homens de forma pública e ininterrupta pelo período de nove anos. A homossexualidade é um fato social que se perpetuou através dos séculos, não podendo o judiciário se olvidar de prestar a tutela jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de família. A união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e não apenas a diversidade de gêneros. E, antes disso, é o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a marginalização das relações mantidas entre pessoas do mesmo sexo constitui forma de privação do direito à vida, bem como viola os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. AUSÊNCIA DE REGRAMENTO ESPECÍFICO. UTILIZAÇÃO DE ANALOGIA E DOS PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO. A ausência de lei específica sobre o tema não implica ausência de direito, pois existem mecanismos para suprir as lacunas legais, aplicando-se aos casos concretos a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, em consonância com os preceitos constitucionais (art. 4º da LICC). Negado provimento ao apelo. (TJRS, AC 70009550070, Rel. Desa. Maria Berenice Dias, j. 17/11/2007).

Ação Ordinária. União Homoafetiva. Analogia. União estável protegida pela Constituição Federal. Princípio da igualdade (não discriminação) e da dignidade da pessoa humana. Reconhecimento da relação de dependência de um parceiro em relação ao outro, para todos os fins de direito. Requisitos preenchidos. Pedido procedente.  À união homoafetiva, que preenche os requisitos da união estável entre casais heterossexuais, deve ser conferido o caráter de entidade familiar, impondo-se reconhecer os direitos decorrentes desse vínculo, sob pena de ofensa aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. O art. 226, da Constituição Federal não pode ser analisado isoladamente, restritivamente, devendo observar-se os princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Referido dispositivo, ao declarar a proteção do Estado à união estável entre o homem e a mulher, não pretendeu excluir dessa proteção a união homoafetiva, até porque, à época em que entrou em vigor a atual Carta Política, há quase 20 anos, não teve o legislador essa preocupação, o que cede espaço para a aplicação analógica da norma a situações atuais, antes não pensadas. A lacuna existente na legislação não pode servir como obstáculo para o reconhecimento de um direito. (TJMG, AC 21.0024.06.930324-6/001(1), Rel. Desa. Heloisa Combat, j. 22/05/2007).

Recurso especial. Relacionamento mantido entre homossexuais. Sociedade de fato. Dissolução da sociedade. Partilha de bens. Prova. Esforço comum. Entende a jurisprudência desta Corte que a união entre pessoas do mesmo sexo configura sociedade de fato, cuja partilha de bens exige a prova do esforço comum na aquisição do patrimônio amealhado. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido. (STJ, REsp 648.763/RS, 4ª T., Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j. 07/12/2006).

Vê-se, dos julgados acima transcritos, que as unidades familiares compostas por pessoas do mesmo sexo precisam recorrer ao judiciário para ter resguardado direito e garantias o que, por si só, já ofende o princípio da dignidade da pessoa humana, pois, como sabemos, os tribunais brasileiros vivem à beira do caos ante a grande quantidade de ações que neles ingressam diariamente.

Antes da decisão do STF, que foi prolatada com eficácia erga omnes (contra todos) e efeitos vinculantes, os tribunais decidiam de maneira controversa e divergente sobre a matéria. Relatando a ADPF 132, o eminente Ministro Ayres Britto informa que os tribunais do Acre, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Paraná possuíam entendimento favorável à equiparação entre as uniões estáveis homo e heteroafetivas, ao passo que os tribunais do Distrito Federal e Santa Catarina se posicionavam em via oposta. (STF, 2011).

Assim, resta claro que, mesmo recorrendo aos tribunais, os homossexuais não tinham garantias de que seus direitos lhe fossem garantidos e a ausência de lei específica se revela como fato determinante para tal divergência. O Supremo, portanto, conferiu igualdade no tratamento e resolveu, ao menos parcialmente, a lacuna e grande controvérsia que pairavam sobre o assunto.

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Tal problema poderia ser resolvido com a simples atuação do legislador, regulando essas relações e conferindo-lhes direitos que, conforme a Constituição, não lhes pode ser negados.

Todavia, conforme bem exposto pelo monitor Andrei Cesário, discorrendo sobre as teorias de Peter Harbele e Ferdinand Lasalle, as normas do direito brasileiro (a Constituição, inclusive) sofrem influência de fatores externos à produção jurídica, em especial a religião, as boas relações e a política (em sentido estrito).

Essa influência gera efeitos positivos e outros tantos negativos sobre a produção normativa. Assim, tendemos a crer que a produção de norma reguladora das uniões homoafetivas não ganhou corpo porquanto o Congresso Nacional possui em sua composição bases religiosas muito fortes, que obstam a criação de tal norma. E o Estado, recebendo influência religiosa, intrinsecamente ligada à política e a elaboração das normas, tem se furtado de expressamente regular essas relações, conferindo-lhes direitos e estendendo o manto da proteção estatal a essas pessoas.

A ausência de norma gerava até recentemente tratamento desigual às uniões homoafetivas, ferindo de morte os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, porquanto cabia aos tribunais decidir cada caso concreto e, dificilmente, havia uniformidade nos julgamentos, pois os tribunais tinham entendimento divergente sobre o tema.

4.1 POSIÇÕES DE OUTROS ESTADOS NACIONAIS SOBRE A RELAÇÃO HOMOAFETIVA

O tema “homossexualidade” é extremamente delicado e controverso. E o é não somente no Brasil, mas também em outros Estados nacionais. De maneira geral, cada Estado tem um posicionamento sobre este tema, indo desde a liberdade plena até a penalidade máxima: a pena de morte.

A maioria dos países que já reconhece os direitos homoafetivos, possibilitando a constituírem família, sob a proteção do Estado está localizada no continente Europeu. Na vanguarda dessa regulamentação encontra-se a Dinamarca, que já em 1989 regulamentou através de seus instrumentos normativos o direito de uniões civis entre homossexuais.  Mais tarde, reconheceu a esses casais o direito à celebração religiosa, em 2012.

A Suécia foi outro país europeu que, a partir de 2009 autorizou casais homossexuais a casarem no civil e no religioso, mas desde 1995 já permitia a união estável através de contrato. Na America latina, a Argentina, vizinha do Brasil, foi o primeiro país a reconhecer o casamento homossexual, em julho de 2010, garantido também no mesmo momento o direito de adotar crianças; posteriormente, em 2013 foi à vez de o Uruguai assegurar o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Em contrapartida, ainda se observa que muitas nações não toleram a homossexualidade, muito menos uma relação resguardada entre pessoas do mesmo sexo, atribuindo sanções penais como: exílio, chibatadas, prisão, e até a temível pena de morte.

A maioria das nações que assim procedem é composta por países árabes, dentre os quais se destaca o Irã, Arábia Saudita, Emirados Árabes unidos, Qatar entre outros, que são Estado que assentam suas bases jurídicas em uma estreita relação com a religiosidade de seu povo.

Então, é possível observar que enquanto perdurar o direito positivo estatal assentado na religião (no caso, o Islã, através do corão ou alcorão), dificilmente existirá a possibilidade de pessoas do mesmo sexo manter uma relação amparada pelo estado, como existe em muitos países laicos.

4.2 O JULGAMENTO DA ADPF 132. UMA NOVA VISÃO PARA AS UNIÕES HOMOAFETIVAS.

O julgamento, perante o Supremo Tribunal Federal, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132, proposta pelo estado do Rio de Janeiro, foi um marco no país com relação ao tema “Uniões homoafetivas”. Há doutrinadores que entendem ter o Supremo invadido competência reservada ao Congresso Nacional, tendo legislado sobre a matéria. Alheios a esse fato, entendemos que a Corte Suprema deu um passo importante no sentido de reparar a falha estatal na concessão de direitos aos homossexuais.

Antes do julgamento, cada tribunal do país tinha um entendimento sobre as uniões homoafetivas: Alguns as qualificavam como união estável, por analogia, outros como sociedade de fato. Tais circunstâncias devem-se ao fato de que não existe lei específica a tratar dessas uniões. Essa lacuna era preenchida pelos tribunais, valendo-se da analogia, mas não havia uniformidade no tratamento.

Após o julgamento da ADPF 132, o STF deu ao Artigo 1723 do Código Civil interpretação conforme a constituição “para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva” (STF, 2011).

A decisão do Supremo, inédita no país, garantiu isonomia no tratamento das unidades familiares constituídas, independente da orientação sexual dos componentes, visando resguardar direitos e prerrogativas, sendo um marco para a história do país, preenchendo a lacuna jurídica que existia sobre o tema “UNIÃO HOMOAFETIVA”. A questão do casamento, embora ainda não haja lei específica, foi parcialmente resolvida pela Resolução CNJ 175/2013, conforme se verá a seguir.

4.3 RESOLUÇAO CNJ 175/2013. A UNIÃO ESTÁVEL SE TORNA CASAMENTO HOMOAFETIVO.

Objeto de muita controvérsia, especialmente entre os juristas especializados em processo legislativo, surge, na esteira da decisão do Supremo Tribunal Federal, a Resolução 175, de 14 de maio de 2013 do Conselho Nacional de Justiça, que “Dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo.”

A controvérsia reside no entendimento de que, sendo o CNJ órgão consultivo e de controle dos tribunais e não integrante do Poder Legislativo, não poderia este ter editado resolução que, pelo tema tratado e pela forma que foi imposta aos cartórios extrajudiciais, tem caráter de lei.

Ora, o ordenamento jurídico brasileiro ainda não prevê em suas normas, mormente o Código Civil, o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Ainda, consideram os especialistas que, tendo em vista a hierarquia das normas e ocupando as resoluções as posições mais inferiores nesta hierarquia, o CNJ exorbitou de sua competência, regulando matéria que estava reservada à lei (principio da reserva legal[1]).

Não obstante esse fato, o certo é que o CNJ editou a resolução baseado na decisão do STF em sede da ADPF 132, facilitando a conversão de uniões estáveis homoafetivas em casamento, bem como a celebração de casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, conforme dispõe seu artigo 1°, que dispõe que “É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo”.

Por certo, trata-se de evolução no tratamento conferido às pessoas que tem relações de homoafetividade e que, sob este manto, constituem família. Assim, o Estado age por vias transversas para suprir uma lacuna e conferir a seus cidadãos o mínimo de direitos.

A comunidade LGBT comemorou com entusiasmo este passo dado. A resolução, em que pese ser bastante questionada, trouxe inegáveis avanços no reconhecimento das unidades familiares homoafetivas.

Resta claro que há um clamor público muito grande acerca do tema e os tribunais agem motivados por esse clamor, seja a favor ou contra. Assim, vê-se que o Estado brasileiro encontra-se em meio a um turbilhão de manifestações sobre um tema delicado, controverso e extremamente relevante.

Tudo pareceu estar resolvido após a edição da Resolução 175, entretanto esta história não parece ter chegado a um fim, pois já tramita perante o Supremo, Ação Direta de Inconstitucionalidade questionando a regulamentação conferida pelo CNJ ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, entendendo que este invadiu competência reservada ao poder legislativo, instância que representa a sociedade na formulação de decisões e normas estatais.

Como se vê, o impasse acerca do tema está muito longe de ser resolvido definitivamente.

Sobre os autores
Fernando Santos

Servidor da Justiça do trabalho da 8ª Região (PA/AP) e acadêmico de Direito da UNIFESSPA>

Benedito Tobias Sabba Correa

Corregedor regional da Polícia Militar e acadêmico de Direito da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará - UNIFESSPA.

Aldson Aguiar de Carvalho

Acadêmico de Direito e servidor administrativo da UNIFESSPA.

Lorran Ribeiro dos Santos

Acadêmico de Direito da UNIFESSPA e estagiário na Defensoria pública.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Fernando; CORREA, Benedito Tobias Sabba et al. O Estado brasileiro e o novo conceito de unidade familiar: uniões homoafetivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4680, 24 abr. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40435. Acesso em: 23 nov. 2024.

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