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Famílias paralelas e poliafetivas

Agenda 28/07/2015 às 13:38

O presente artigo estuda esses novos arranjos familiares à luz da principiologia do direito de família constitucional.

 

1. Introdução

 

Para que haja uma entidade familiar, ante o princípio da pluralidade de entidades familiares e conforme a norma aberta e de inclusão do art. 226 da CF, há necessidade de três elementos: afetividade, estabilidade e ostensibilidade. A afetividade para caracterizar a entidade familiar não se baseia em qualquer afeto e sim um afeto especial: o afeto familiar. O afeto familiar se caracteriza pelo animus de constituição de família: o desejo dos familiares compartilharem a mesma vida, dividindo as tristezas e alegrias, os fracassos e os sucessos, a pobreza e a riqueza, enfim, o intuito de formarem um novo organismo distinto de suas individualidades, num recíproco pertencer.

Ressalte-se que não há qualquer modelo preferencial entre as entidades familiares. Ao estabelecer a facilitação da conversão da união estável em casamento (art. 226 § 3º da CF), o constituinte almejou, tão somente, tornar menos solene e complexo o matrimônio daquelas pessoas que, anteriormente, já conviviam maritalmente, como se casados fossem. Só isso. Não há, de nenhum modo, na referida disposição um intuito hierárquico, estabelecendo graus de proteção da família. (ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito das Famílias. Lumenjuris. 3ª ed. p. 442).

Assim, todas as entidades familiares estão em pé de igualdade - princípio da igualdade entre as entidades familiares: casamento heteroafetivo e homoafetivo, união estável heteroafetiva e homoafetiva, família monoparental, etc., consagrando o entendimento que a família de hoje é plural, pois a base da família é o afeto - princípio da afetividade, e são múltiplas e variadas as formas de amar. 

Com efeito, não se pode ceder à tentação de enxergar o direito de família como um conjunto de normas destinado à proteção de entidades familiares, quando seu objeto consiste, em verdade, nas relações de família ostentadas por cada pessoa humana, cuja dignidade merece a mais elevada proteção do ordenamento constitucional. A família não deve ser enxergada como valor em si, mas tão somente como comunidade funcionalizada à proteção e ao desenvolvimento da personalidade daqueles que a integram. Como ensina Gustavo Tepedino, “a dignidade da pessoa humana, alçada pelo art. 1º, III, da Constituição Federal, a fundamento da República, dá conteúdo à proteção da família atribuída ao Estado pelo art. 226 do mesmo texto maior”. Assim, a referência às entidades familiares, expressão cuja utilidade consiste em revelar a abertura da tutela jurídica a múltiplas formas de manifestação do fenômeno familiar, não pode resultar, de modo algum, na renúncia a um olhar que conceba a família como relação de coexistência, e não como ente transpessoal. (SCHREIBER, Anderson. Famílias Simultâneas e Redes Familiares. In http://www.andersonschreiber.com.br/artigos.html).

 

Não poderia ser diferente, ante o direito à felicidade. A felicidade é um direito fundamental implícito. Sendo a família instrumento para a busca da felicidade, gradativamente o direito foi consagrando a pluralidade familiar, dando vozes às formas mutantes da sociedade contemporânea, trazendo à tona a realidade como ela é. Daí surgem diversas formas de arranjo familiar.

No presente estudo, abordaremos a família paralela ou simultânea e a família poliafetiva.

 

2. Famílias Paralelas ou Simultâneas: sociedade de fato. 

Tecnicamente, a simultaneidade ou paralelismo familiar diz respeito à circunstância de alguém se colocar concomitantemente como componente de duas ou mais entidades familiares diversas entre si, na perspectiva do vínculo parental ou conjugal (RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Famílias Simultâneas e Monogamia. In www.ibdfam.org.br). Não tem se tem dúvida da possibilidade de paralelismo familiar na perspectiva parental: filho de pais divorciados, que mantém vínculos de afeto e convivência com ambos; pessoa divorciada que constitui nova família mediante casamento ou união estável, mas mantém vínculo com a prole resultante da primeira união, para citar apenas algumas situações possíveis.  Mas no que interessa ao presente artigo, a simultaneidade e o paralelismo que aqui se trata são as relações conjugais concomitantes, tendo, entretanto, um membro em comum. Não se trata evidentemente de relações extraconjugais passageiras e esporádicas – simples adultério. Se tratará de efetiva simultaneidade conjugal, seja matrimonializada ou faticamente exercida - união estável.

Daí pergunta-se: as uniões paralelas ou simultâneas - derivadas de um casamento ou união estável pré e coexistente - são consideradas uma espécie de família?

A primeira posição não reconhece a união paralela como entidade familiar, sendo o concubinato (art. 1727 do CC – relação não eventual entre homem e mulher impedidos de casar) tão somente uma sociedade de fato (caso comprovado o esforço comum na aquisição patrimonial), salvo quando presente a boa-fé (caso que configurará a putatividade), daí reconhecendo-se efeitos familiares. Nos termos dessa corrente, ante o princípio da monogamia, que orienta o direito de família, sendo a bigamia considerada crime no art. 235 do CP (crime contra a família), bem como em razão dos deveres de lealdade (art. 1724 do CC) e fidelidade (art. 1566 I do CC), que denotam a necessidade de exclusividade conjugal, o paralelismo ou a simultaneidade de relações conjugais não constituem entidade familiar.

A expressão 'fidelidade' é utilizada para identificar os deveres do casamento; e 'lealdade' tem sido a palavra utilizada para as relações de união estável, embora seja incontroverso o seu sentido único de ressaltar um comportamento moral e fático dos amantes casados ou conviventes, que têm o dever de preservar a exclusividade das suas relações como casal (MADALENO, Rolf. A União (Ins)Estável - Relações Paralelas. In http://www.flaviotartuce.adv.br/).

 

a exclusividade, apesar de não constar expressamente no art. 1.723 do CC, constitui para nós um dos requisitos para a caracterização da união estável, relacionada com a intenção de constituição de família e decorrente dos seus deveres, constantes do art. 1.724 da atual codificação (TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil - Direito de Família. Vol. 5. 2ª ed. Método. p. 251).

 

Assim, o concubinato (art. 1727 do CC), é considerado uma sociedade de fato, como forma de tutelar o concubino que comprove o esforço comum na aquisição patrimonial, todavia, ao desabrigo do direito de família.

A família paralela: [...] Não existe ainda espaço no conceito de família para abrigar as sociedades de fato, por mais que apareça perante a sociedade como família, pois do contrário estariam sendo abandonados os aspectos morais, sociais e religiosos, que ainda estão presentes na sociedade brasileira (MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. Forense. 5ª ed. p. 23).

O dever de lealdade implica franqueza, consideração, sinceridade, informação e, sem dúvida, fidelidade. Numa relação afetiva entre homem e mulher, necessariamente monogâmica, constitutiva de família, além de um dever jurídico, a fidelidade é requisito natural (VELOSO, Zeno. Código civil comentado: direito de família, alimentos, bem de família, união estável, tutela e curatela: arts. 1.694 a 1.783, volume XVII. Coord. Álvaro Villaça Azevedo. São Paulo: Atlas, 2003, p. 156⁄158)

As relações adulterinas são reprovadas não só pelo ordenamento jurídico, como também pelos valores morais da sociedade (CAHALI, Francisco José. União estável. Saraiva. p. 61).

Da mesma forma a jurisprudência majoritária, inclusive do STF e STJ:

COMPANHEIRA E CONCUBINA - DISTINÇÃO. Sendo o Direito uma verdadeira ciência, impossível é confundir institutos, expressões e vocábulos, sob pena de prevalecer a babel. UNIÃO ESTÁVEL - PROTEÇÃO DO ESTADO. A proteção do Estado à união estável alcança apenas as situações legítimas e nestas não está incluído o concubinato. PENSÃO - SERVIDOR PÚBLICO - MULHER - CONCUBINA - DIREITO. A titularidade da pensão decorrente do falecimento de servidor público pressupõe vínculo agasalhado pelo ordenamento jurídico, mostrando-se impróprio o implemento de divisão a beneficiar, em detrimento da família, a concubina. (STF. RE 397762, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 03/06/2008, DJe-172 DIVULG 11-09-2008 PUBLIC 12-09-2008 EMENT VOL-02332-03 PP-00611 RTJ VOL-00206-02 PP-00865 RDDP n. 69, 2008, p. 149-162 RSJADV mar., 2009, p. 48-58 LEXSTF v. 30, n. 360, 2008, p. 129-160)

A orientação jurisprudencial desta Corte é firme no sentido de que a relação concubinária, paralela a casamento válido, não pode ser reconhecida como união estável, salvo se configurada separação de fato ou judicial entre os cônjuges. (STJ. AgRg no REsp 1235648/RS, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/02/2014, DJe 14/02/2014)

DIREITO DE FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE UNIÕES ESTÁVEIS SIMULTÂNEAS. IMPOSSIBILIDADE. EXCLUSIVIDADE DE RELACIONAMENTO SÓLIDO. CONDIÇÃO DE EXISTÊNCIA JURÍDICA DA UNIÃO ESTÁVEL. EXEGESE DO § 1º DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. 1. Para a existência jurídica da união estável, extrai-se, da exegese do § 1º do art. 1.723 do Código Civil de 2002, fine, o requisito da exclusividade de relacionamento sólido. Isso porque, nem mesmo a existência de casamento válido se apresenta como impedimento suficiente ao reconhecimento da união estável, desde que haja separação de fato, circunstância que erige a existência de outra relação afetiva factual ao degrau de óbice proeminente à nova união estável. 2. Com efeito, a pedra de toque para o aperfeiçoamento da união estável não está na inexistência de vínculo matrimonial, mas, a toda evidência, na inexistência de relacionamento de fato duradouro, concorrentemente àquele que se pretende proteção jurídica, daí por que se mostra inviável o reconhecimento de uniões estáveis simultâneas. 3. Havendo sentença transitada em julgado a reconhecer a união estável entre o falecido e sua companheira em determinado período, descabe o reconhecimento de outra união estável, simultânea àquela, com pessoa diversa. 4. Recurso especial provido. (STJ. REsp 912.926/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 22/02/2011, DJe 07/06/2011)

 

Direito civil. Família. Paralelismo de uniões afetivas. Recurso especial. Ações de reconhecimento de uniões estáveis concomitantes.Casamento válido dissolvido. Peculiaridades.- Sob a tônica dos arts. 1.723 e 1.724 do CC/02, para a configuração da união estável como entidade familiar, devem estar presentes, na relação afetiva, os seguintes requisitos: (i) dualidade de sexos; (ii) publicidade; (iii) continuidade; (iv) durabilidade; (v) objetivo de constituição de família; (vi) ausência de impedimentos para o casamento, ressalvadas as hipóteses de separação de fato ou judicial; (vii) observância dos deveres de lealdade, respeito e assistência, bem como de guarda, sustento e educação dos filhos.- A análise dos requisitos ínsitos à união estável deve centrar-se na conjunção de fatores presente em cada hipótese, como a affectio societatis familiar, a participação de esforços, a posse do estado de casado, a continuidade da união, a fidelidade, entre outros.- A despeito do reconhecimento – na dicção do acórdão recorrido – da “união estável” entre o falecido e sua ex-mulher, em concomitância com união estável preexistente, por ele mantida com a recorrente, certo é que já havia se operado – entre os ex-cônjuges – a dissolução do casamento válido pelo divórcio, nos termos do art.1.571, § 1º, do CC/02, rompendo-se, em definitivo, os laços matrimoniais outrora existentes entre ambos. A continuidade da relação, sob a roupagem de união estável, não se enquadra nos moldes da norma civil vigente – art. 1.724 do CC/02 –, porquanto esse relacionamento encontra obstáculo intransponível no dever de lealdade a ser observado entre os companheiros.- O dever de lealdade “implica franqueza, consideração, sinceridade, informação e, sem dúvida, fidelidade. Numa relação afetiva entre homem e mulher, necessariamente monogâmica, constitutiva de família, além de um dever jurídico, a fidelidade é requisito natural” (Veloso, Zeno apud Ponzoni, Laura de Toledo. Famílias simultâneas: união estável e concubinato. Disponível em http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=461. Acesso em abril de 2010).- Uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade – que integra o conceito de lealdade – para o fim de inserir no âmbito do Direito de Família relações afetivas paralelas e, por consequência, desleais, sem descurar que o núcleo familiar contemporâneo tem como escopo a busca da realização de seus integrantes, vale dizer, a busca da felicidade.- As uniões afetivas plúrimas, múltiplas, simultâneas e paralelas têm ornado o cenário fático dos processos de família, com os mais inusitados arranjos, entre eles, aqueles em que um sujeito direciona seu afeto para um, dois, ou mais outros sujeitos, formando núcleos distintos e concomitantes, muitas vezes colidentes em seus interesses.- Ao analisar as lides que apresentam paralelismo afetivo, deve o juiz, atento às peculiaridades multifacetadas apresentadas em cada caso, decidir com base na dignidade da pessoa humana, na solidariedade, na afetividade, na busca da felicidade, na liberdade, na igualdade, bem assim, com redobrada atenção ao primado da monogamia, com os pés fincados no princípio da eticidade.- Emprestar aos novos arranjos familiares, de uma forma linear, os efeitos jurídicos inerentes à união estável, implicaria julgar contra o que dispõe a lei; isso porque o art. 1.727 do CC/02 regulou, em sua esfera de abrangência, as relações afetivas não eventuais em que se fazem presentes impedimentos para casar, de forma que só podem constituir concubinato os relacionamentos paralelos a casamento ou união estável pré e coexistente.Recurso especial provido.(STJ. REsp 1157273/RN, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/05/2010, DJe 07/06/2010)

 

A monogamia constitui princípio que informa o direito matrimonial, não se podendo reconhecer a constituição de uma união estável enquanto uma pessoa estiver casada (e mantendo vida familiar) ou conviver em união estável com outra pessoa.  Constituiu concubinato adulterino a relação entretida pelo falecido com a autora, pois ele mantinha vida conjugal com a esposa. (Apelação Cível Nº 70063902027, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 29/04/2015)

 

O relacionamento afetivo da apelante com o seu amado não se enquadra no conceito de união estável, visto que o princípio da monogamia, que rege as relações afetivas familiares, impede o reconhecimento jurídico de um relacionamento afetivo paralelo ao casamento.  (TJMG -  Apelação Cível  1.0183.12.015480-6/001, Relator(a): Des.(a) Fernando Caldeira Brant , 5ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 05/06/2014, publicação da súmula em 16/06/2014)

 

O concubino, assim, poderá comprovar o esforço comum para obter a partilha dos bens adquiridos onerosamente durante a sociedade de fato (Súmula 380 do STF: Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum), não cabendo, na espécie, indenização por serviços domésticos.

 

A inexistência da prova de patrimônio adquirido pelo esforço comum é circunstância suficiente para afastar a configuração de sociedade de fato, porque é pressuposto para seu reconhecimento. Desse modo, a simples convivência sob a roupagem de concubinato não confere direito ao reconhecimento de sociedade de fato, que somente emerge diante da efetiva comprovação de esforço mútuo despendido pelos concubinos para a formação de patrimônio comum. Isso porque a existência de sociedade de fato pressupõe, necessariamente, a aquisição de bens ao longo do relacionamento, para que se possa ter por caracterizado o patrimônio comum. (STJ. AgRg no REsp 1170799/PB, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/08/2010, DJe 06/12/2010)

 

Direito civil. Família. Recurso especial. Concubinato. Casamento simultâneo. Ação de indenização. Serviços domésticos prestados.- Se com o término do casamento não há possibilidade de se pleitear indenização por serviços domésticos prestados, tampouco quando se finda a união estável, muito menos com o cessar do concubinato haverá qualquer viabilidade de se postular tal direito, sob pena de se cometer grave discriminação frente ao casamento, que tem primazia constitucional de tratamento; ora, se o cônjuge no casamento nem o companheiro na união estável fazem jus à indenização, muito menos o concubino pode ser contemplado com tal direito, pois teria mais do que se casado fosse.- A concessão da indenização por serviços domésticos prestados à concubina situaria o concubinato em posição jurídica mais vantajosa que o próprio casamento, o que é incompatível com as diretrizes constitucionais fixadas pelo art. 226 da CF/88 e com o Direito de Família, tal como concebido.- A relação de cumplicidade, consistente na troca afetiva e na mútua assistência havida entre os concubinos, ao longo do concubinato, em que auferem proveito de forma recíproca, cada qual a seu modo, seja por meio de auxílio moral, seja por meio de auxílio material, não admite que após o rompimento da relação, ou ainda, com a morte de um deles, a outra parte cogite pleitear indenização por serviços domésticos prestados, o que certamente caracterizaria locupletação ilícita.- Não se pode mensurar o afeto, a intensidade do próprio sentimento, o desprendimento e a solidariedade na dedicação mútua que se visualiza entre casais. O amor não tem preço. Não há valor econômico em uma relação afetiva. Acaso houver necessidade de dimensionar-se a questão em termos econômicos, poder-se-á incorrer na conivência e até mesmo estímulo àquela conduta reprovável em que uma das partes serve-se sexualmente da outra e, portanto, recompensa-a com favores.- Inviável o debate acerca dos efeitos patrimoniais do concubinato quando em choque com os do casamento pré e coexistente, porque definido aquele, expressamente, no art. 1.727 do CC/02, como relação não eventual entre o homem e a mulher, impedidos de casar; a disposição legal tem o único objetivo de colocar a salvo o casamento, instituto que deve ter primazia, ao lado da união estável, para fins de tutela do Direito.Recurso especial do Espólio provido.Recurso especial da concubina julgado prejudicado.(STJ. REsp 872659/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/08/2009, DJe 19/10/2009)

 

3. Famílias Paralelas ou Simultâneas: entidade familiar.

 

Há entendimento contrário, que caminha no sentido de admitir o concubinato como entidade familiar, chancelando judicialmente, na seara familiarista, as uniões paralelas.

Essa corrente entende que a monogamia não é um princípio geral do direito de família, impedindo apenas a família duplamente matrimonializada, sob a chancela estatal (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. RT. 5ª ed. p. 444).

Negar a existência de famílias paralelas – quer um casamento e uma união estável, quer duas ou mais uniões estáveis – é simplesmente não ver a realidade. Com isso a justiça acaba cometendo enormes injustiças. Mas não é nesse sentido que vem se inclinando a doutrina e decidindo a jurisprudência. Ao contrário do que dizem muitos – e do que tenta dizer a lei (CC 1727) – o concubinato adulterino importa sim para o direito. Verificadas duas comunidades familiares que tenham entre si um membro em comum, é preciso operar a apreensão jurídica dessas duas realidades. São relações que repercutem no mundo jurídico, pois os companheiros convivem, muitas das vezes têm filhos, e há construção patrimonial em comum. Não ver essa relação, não lhe outorgar qualquer efeito, atenta contra a dignidade dos partícipes e filhos porventura existentes. Além disso, reconhecer apenas efeitos patrimoniais, como sociedades de fato, consiste em uma mentira jurídica, porquanto os companheiros não se uniram para constituir uma sociedade. (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. RT. 5ª ed. p. 51).

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Considera essa doutrina que a fidelidade não pode ser considerada um dever jurídico, mas uma opção de cada pessoa que se dispõe a conviver afetivamente com outra, sendo certo que a união estável sequer exige a fidelidade como seu requisito, e sim lealdade (art. 1724 do CC):

É significativo que o legislador tenha se referido, no dispositivo, à “lealdade”, empregando expressão diversa daquela que utiliza na disciplina do matrimônio, onde alude ao dever de “fidelidade” conjugal (art. 1.566). A distinção, que tem passado despercebida pela doutrina brasileira, conclama o intérprete à construção hermenêutica de um novo conceito. Diversamente da fidelidade conjugal, atrelada aos princípios do matrimônio e à exclusividade que lhe é inerente, a lealdade se apresenta como noção mais flexível, que se exprime na transparência, coerência e consistência da pessoa em relação aos ideais comuns. Trata-se de um compromisso com a concepção de união mantida pelos próprios envolvidos. Não implica, necessariamente, a exclusividade que a fidelidade conjugal exige. (SCHREIBER, Anderson. Famílias Simultâneas e Redes Familiares. In http://www.andersonschreiber.com.br/artigos.html).

 

            Lado outro, essa exegese potencializa o afeto em detrimento da lealdade e fidelidade, se importando mais com as funções desempenhas pelos seus partícipes (funções familiares – papéis familiares). Em outras palavras, com base nos princípios da pluralidade de entidades familiares, igualdade, liberdade, dignidade e, sobretudo, da afetividade, consagra as uniões simultâneas como família, daí derivando todos os seus efeitos. Desde que presentes, além da afetividade, os requisitos da estabilidade e ostensibilidade, as uniões paralelas são consideradas entidades familiares, fazendo-se uma releitura do art. 1727 do CC à luz da principiologia familiarista.

É extremamente falso imputar à realidade concubinária uma caracterização tipicamente obrigacional, quando, na verdade, a união se deve ao afeto havido entre o casal e à pretensão que tem de constituir um ambiente que favoreça o livre e pleno desenvolvimento da personalidade de cada um. A reunião preponderante, nesse caso, não é de esforços patrimoniais e, por isso, é incorreto entender que se trata de uma sociedade de fato.(ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUES JR, Walsir Edson. Direito Civil – Famílias. Lumen Juris. p. 315).

O conceito de família alargou-se passando a albergar os vínculos gerados pela presença de um envolvimento afetivo. O amor tornou-se um fato jurídico merecedor de proteção constitucional. A existência de um elo de afetividade é o que basta para o reconhecimento de uma entidade familiar. Com o desaparecimento da família patriarcal e matrimonializada, passou a família a ser identificada pelo laço de afetividade que une pessoas. [...] para a configuração da união estável basta identificar os pressupostos da lei, entre os quais não se encontra nem o direito à exclusividade e nem o dever de fidelidade. Assim, imperioso que se cumpra a lei, que se reconheça a união estável quando presentes os requisitos legais a sua identificação, ainda que se constate multiplicidade de relacionamentos concomitantes. De todo descabido afastar do âmbito da juridicidade relação que atendeu a todos os requisitos legais, sob o fundamento de que mantinha o varão relacionamento simultâneo com outra pessoa. Esta tentativa de singelamente não ver a realidade, tentar apagá-la do âmbito do direito é atitude conservadora e preconceituosa, além de gerar injustiças e enriquecimento sem causa. Negar tais relacionamentos tem um efeito injusto: beneficia o parceiro que foi infiel. Acaba a Justiça ferindo o mais comezinho princípio ético, pois permite o locupletamento do adúltero. O Poder Judiciário não pode ser conivente com quem descumpriu o dever de fidelidade e de lealdade. Ao condenar à invisibilidade uma situação que existe, acoberta um ilícito beneficiando exatamente quem afrontou a moral e os bons costumes. O só fato de a sociedade prestigiar a monogamia [...] não é suficiente para deixar de ver os relacionamentos que não se submetem a esse cânone, não obedecem à dita restrição. Tal circunstância, no entanto, não pode gerar uma solução punitiva ou vingativa. Deixar de ver que há situações que se estabelecem à margem dos parâmetros não aceitos pela moral convencional, não as faz desaparecer do mundo dos fatos. Via de consequência, descabe singelamente deixar o sistema jurídico de reconhecê-los. É inadimissível tentar não ver o que existe: mesmo sendo dois os relacionamentos em que se detecta a presença da vinculação afetiva, é imperiosa a extração de efeitos jurídicos, senão pelos deveres de mútua assistência preconizados na lei, ao menos pela tão conhecida expressão de Saint Exupéry :você é responsável pelas coisas que cativa! (DIAS, Maria Berenice. Adultério, bigamia e união estável: realidade e responsabilidade. In www.berenicedias.com.br).

Sob o prisma jurídico, o que se impõe é a superação de um direito de família que tenha como objeto as entidades familiares como comunidades abstratas intermediárias, passando-se a observar cada pessoa na riqueza singular de suas próprias relações familiares. Tal visão interrelacional permite o reconhecimento de que a afetividade familiar não é fenômeno do qual se possa exigir contenção em uma entidade abstrata única, mas que não raro se multiplica e se sobrepõe a relações de idêntica ou diversa natureza. Neste contexto, a simultaneidade não se apresenta apenas como dado possível, mas como elemento indispensável ao pleno desenvolvimento da aspiração familiar da pessoa humana. O respeito à dignidade humana impõe reconhecer que cada pessoa pode pertencer, a um só tempo, a vários núcleos familiares, ostentando uma família que não é idêntica à de seus conviventes, mas própria e única em sua extensão, porque formada de feixes de relações familiares que se podem estender num ou noutro sentido de acordo com os elementos constitutivos de cada relação familiar. A superação da exclusividade da família é, assim, a conseqüência necessária de uma visão comprometida com a realização da dignidade humana, não como tutela de desejos egoístas, mas, ao contrário, como expressão daquilo que talvez, sem nenhum paradoxo, o ser humano possua de mais essencial: o outro. (SCHREIBER, Anderson. Famílias Simultâneas e Redes Familiares. In http://www.andersonschreiber.com.br/artigos.html).

       

Assim também a jurisprudência, todavia, minoritária.

APELAÇÃO. UNIÃO DÚPLICE. UNIÃO ESTÁVEL. POSSIBILIDADE. A prova dos autos é robusta e firme a demonstrar a existência de união entre a autora e o de cujus em período concomitante ao casamento de "papel". Reconhecimento de união dúplice. Precedentes jurisprudenciais. Os bens adquiridos na constância da união dúplice são partilhados entre a esposa, a companheira e o de cujus. Meação que se transmuda em "triação", pela duplicidade de uniões. DERAM PROVIMENTO, POR MAIORIA, VENCIDO O DES. RELATOR. (Apelação Cível Nº 70019387455, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 24/05/2007)

DIREITO DAS FAMÍLIAS. UNIÃO ESTÁVEL CONTEMPORÂNEA A CASAMENTO. UNIÃO DÚPLICE. POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO FACE ÀS PECULIARIDADES DO CASO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Ao longo de vinte e cinco anos, a apelante e o apelado mantiveram um relacionamento afetivo, que possibilitou o nascimento de três filhos. Nesse período de convivência afetiva - pública, contínua e duradoura - um cuidou do outro, amorosamente, emocionalmente, materialmente, fisicamente e sexualmente. Durante esses anos, amaram, sofreram, brigaram, reconciliaram, choraram, riram, cresceram, evoluíram, criaram os filhos e cuidaram dos netos. Tais fatos comprovam a concreta disposição do casal para construir um lar com um subjetivo ânimo de permanência que o tempo objetivamente confirma. Isso é família. O que no caso é polêmico é o fato de o apelado, à época dos fatos, estar casado civilmente. Há, ainda, dificuldade de o Poder Judiciário lidar com a existência de uniões dúplices. Há muito moralismo, conservadorismo e preconceito em matéria de Direito de Família. No caso dos autos, a apelada, além de compartilhar o leito com o apelado, também compartilhou a vida em todos os seus aspectos. Ela não é concubina - palavra preconceituosa - mas companheira. Por tal razão, possui direito a reclamar pelo fim da união estável. Entender o contrário é estabelecer um retrocesso em relação a lentas e sofridas conquistas da mulher para ser tratada como sujeito de igualdade jurídica e de igualdade social. Negar a existência de união estável, quando um dos companheiros é casado, é solução fácil. Mantém-se ao desamparo do Direito, na clandestinidade, o que parte da sociedade prefere esconder. Como se uma suposta invisibilidade fosse capaz de negar a existência de um fato social que sempre aconteceu, acontece e continuará acontecendo. A solução para tais uniões está em reconhecer que ela gera efeitos jurídicos, de forma a evitar irresponsabilidades e o enriquecimento ilícito de um companheiro em desfavor do outro (TJMG. APELAÇÃO CÍVEL N° 1.0017.05.016882-6/003 - RELATORA: EXMª. SRª. DESª. MARIA ELZA – DJ 20.11.2008).

 

4. Famílias Paralelas ou Simultâneas: conclusão.

 

As uniões paralelas e simultâneas fazem parte da nossa realidade fenomênica. Disso não se pode fugir ou negar. É certo e disso não se duvida, o judiciário não pode fechar os olhos para a realidade, pois justiça se faz com os olhos abertos. O papel do judiciário no âmbito do direito de família é chancelar aquilo que a realidade da vida e a pureza do amor já se encarregaram de construir no mundo dos fatos. Afinal, o núcleo axiológico da família é o afeto e o amor, pois a família é o meio, o instrumento de plena realização da pessoa humana. Essa é a função social da famíliaespaço de proteção avançada de dignificação da pessoa humana. A forma de família não é medida imposta pela lei ou pelo judiciário. A forma de família é escolha de seus partícipes. É o direito à liberdade de autodeterminação afetiva. Uma vez escolhido o meio de busca da felicidade e dignidade, cabe ao judiciário tão somente chancelar toda e qualquer forma de amor.

Mas nisso não consiste uma liberdade absoluta. É possível impor limites. Mesmo o amor e o afeto possuem limites jurídicos. É cabível ao Direito impor limites racionais aos efeitos jurídicos do amor e afeto. Em outras palavras, é possível a imposição de limites legais ao reconhecimento jurídico das formas de amor e afeto, quando outros valores sociais, morais e éticos, também de especial envergadura, estiverem em jogo.

Nas palavras da Min. Carmen Lucia, no julgado acima referido (STF - RE 397762):

O coração é terra que ninguém pisa. Sim como diria Guimarães Rosa: coração tudo cabe, é como o sertão. Está certo. Mas Karl Lowenstein, no início da Teoria da Constituição, disse que o Direito existe para que o homem tente dominar três forças: a fé, o poder e o amor. E a Democracia do Direito é isso: eu não posso deixar de me apaixonar por alguém; e o Direito não me pode proibir isso. Agora o Direito pode proibir-me, sim, de praticar determinadas condutas, se estiver casada e se forem elas contrárias ao Direito [...] O Direito [...] pode proibir – e proíbe – que a pessoa manifeste e adote comportamentos contrários à vida em sociedade.

O que quero afirmar é que o princípio da monogamia, traduzindo os deveres de lealdade (art. 1724 CC) e fidelidade (art. 1566 I CC), rege nossa sociedade e o direito de família, em especial as relações conjugais (matrimonializadas ou faticamente existentes – união estável), implicando na necessidade de exclusividade conjugal. Portanto, entendo que uniões paralelas estão, em regra, ao desabrigo do direito de família, podendo o interessado, como forma de tutelar o concubino (evitando o enriquecimento sem causa), pleitear divisão patrimonial, comprovando o esforço comum na aquisição dos bens (constituindo, portanto, sociedade de fato - art. 1727 CC e Súmula 380/STF).

Ressalte-se que não só a monogamia rege as relações conjugais. Há outros valores sociais, morais e éticos regentes. Assim, a proibição do incesto (art. 1521 I a V c/c art. 1723 § 1º CC) e a intolerância às relações conjugais com o condenado por homicídio contra seu consorte, demonstrativa de tácita aprovação do delito contra a vida (art. 1521 VII c/c art. 1723 § 1º CC).

Luis Roberto Barroso entende que os valores morais, éticos e sociais (valores comunitários de uma sociedade) integram o próprio conteúdo da dignidade da pessoa humana:

O conteúdo jurídico da dignidade da pessoa humana: Para que possa funcionar como um conceito operacional do ponto de vista jurídico, é indispensável dotar a ideia de dignidade de um conteúdo mínimo, que dê unidade e objetividade à sua aplicação. [...] Em uma concepção minimalista, dignidade humana identifica (1) o valor intrínseco de todos os seres humanos, assim como (2) a autonomia de cada individuo, (3) limitada por algumas restrições legítimas impostas a ela em nome de valores sociais ou interesses estatais (valor comunitário). Portanto, os três elementos que integram o conteúdo mínimo da dignidade, na sistematização aqui proposta, são: valor intrínseco da pessoa humana, autonomia individual e valor comunitário. O valor intrínseco é, no plano filosófico, o elemento ontológico da dignidade, ligado à natureza do ser. Trata-se da afirmação da posição especial da pessoa humana no mundo, que a distingue dos outros seres vivos e das coisas. As coisas têm preço, mas as pessoas têm dignidade, um valor que não tem preço. [...] No plano jurídico, o valor intrínseco está na origem de uma série de direitos fundamentais, que incluem: direito à vida, direito à igualdade, direito à integridade física e direito à integridade moral ou psíquica. [...] A autonomia é, no plano filosófico, o elemento ético da dignidade, ligado à razão e ao exercício da vontade em conformidade com determinadas normas. A dignidade como autonomia envolve a capacidade de autodeterminação do indivíduo, de decidir os rumos da própria vida e de desenvolver livremente a sua personalidade. Significa o poder de fazer valorações morais e escolhas existenciais sem imposições externas indevidas [...] No plano jurídico, a autonomia envolve uma dimensão privada (direitos individuais), outra pública (direitos políticos) e tem, ainda, como pressuposto necessário, a satisfação do mínimo existencial (corresponde ao núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais e seu conteúdo corresponde às pré-condições para o exercício dos direitos individuais e políticos, da autonomia privada e pública). O valor comunitário constitui o elemento social da dignidade humana, o indivíduo em relação ao grupo. Aqui, a dignidade é moldada pelos valores compartilhados pela comunidade, seus padrões civilizatórios, seu ideal de vida boa. O que está em questão não são escolhas individuais, mas responsabilidades e deveres a elas associados. A autonomia individual desfruta de grande importância, mas não é ilimitada, devendo ceder em certas circunstâncias. A dignidade como valor comunitário destina-se a promover, sobretudo: a proteção dos direitos de terceiros, a proteção do indivíduo contra si próprio (em certas circunstâncias, o Estado tem o direito de proteger as pessoas contra atos autorreferentes, suscetíveis de lhes causar lesão) e a proteção de valores sociais (toda sociedade, por mais liberais que sejam seus postulados, impõe coercitivamente um conjunto de valores que correspondem a alguns consensos básicos, enfim, uma moral social compartilhada) (BARROSO, Luis Roberto. O constitucionalismo democrático no Brasil: crônica de um sucesso imprevisto. In http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2013/05/O-constitucionalismo-democratico-no-Brasil.pdf).

Assim, não se pode admitir um casamento ou união estável incestuosa (art. 1521 I a V c/c art. 1723 § 1º CC). Como também não se pode admitir casamento ou união estável do cônjuge ou companheiro sobrevivente com o condenado por homicídio contra seu consorte (art. 1521 VII c/c art. 1723 § 1º CC). Da mesma forma, não se pode reconhecer, em regra, como família, uniões paralelas, adúlteras, violadoras da lealdade, fidelidade e monogamia.

O princípio da monogamia, embora funcione também como um ponto-chave das conexões morais das relações amorosas e conjugais, não é simplesmente uma norma moral ou moralizante. Sua existência nos ordenamentos jurídicos que o adotam tem a função de um princípio jurídico ordenador. Ele é um princípio básico e organizador das relações jurídicas da família no mundo ocidental [...] Não há cultura, socialização ou sociabilidade sem que haja proibições e interdições ao desejo. É nesse sentido que o Direito funciona como uma sofisticada técnica de controle das pulsões e podemos dizer, então, que a primeira lei de qualquer agrupamento, tribo ou nação é uma lei de Direito de Família: a lei-do-pai, ou seja, o interdito proibitório do incesto. É essa primeira lei, presente em todas as sociedades, que possibilita a passagem do estado de natureza para a cultura [...] Assim como o incesto é um interdito que possibilita a existência de relações sociais, a monogamia ou mesmo a poligamia constituem-se também com um interdito viabilizador da organização da família, e sua essência não é apenas um regramento moral ou moralizante, mas de um interdito proibitório, sem o qual não é possível organização social e jurídica [...] Assim, um dos instrumentos de manutenção do regime monogâmico, a fidelidade, faz-se à custa de uma renúncia pulsional[...] Em outras palavras, o desejo precisa ser regulado? É possível regulá-lo? Não regulá-lo seria permitir uma degradação da lei moral? Freud, em um dos seus mais conhecidos textos, Mal-estar na civilização, diz que a construção cultural pressupõe uma renúncia pulsional, que ele chamou de sublimação dos fins instintivos. [...] Portanto, o desenvolvimento da civilização impõe restrições ao instinto e ao desejo, e o Direito deve exigir que ninguém fuja a essas restrições. Não é fácil privar de satisfação um instinto, e não se faz isso impunemente, ou seja, paga-se um alto preço, por isso que é o mal-estar da civilização (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais norteadores do Direito de Família. Saraiva. 2ª ed. p. 127-145).

Ressalte-se que não se trata de uma defesa moralista da sociedade, tampouco se defende a proteção da família como entidade ou um fim em si mesmo, eis que a comunidade jurídica abandonou tais premissas desde o julgamento conjunto da ADI 4277 e ADPF 132 pelo STF, ao reconhecer a união homoafetiva como sinônimo perfeito de família. Afinal, a família não é destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana. Desde a Constituição de 1988, a proteção jurídica da família deslocou-se da instituição para os sujeitos que a integram (art. 226 § 8º primeira parte CF) – concepção eudemonista de família.

O que se propõe é visualizar a família, base da sociedade, merecedora de especial proteção estatal (art. 226 da CF), de forma não divorciada aos valores sociais, morais e éticos da nossa sociedade e em especial dos partícipes das entidades familiares (art. 5º § 2º CF). A concepção eudemonista de família deve ser lida em conjunto com o princípio da solidariedade (art. 3º I CF), que traz em si um sentido ético de respeito ao outro. Se a proteção estatal familiar deve se dirigir à pessoa de cada um dos membros da família, resta claro o sentido de que essa proteção deve atender a todos os partícipes das relações conjugais, inclusive paralelas.

Em outras palavras, o que se pretende é demonstrar a legitimidade de uma limitação racional ao reconhecimento jurídico de determinadas relações conjugais (no caso relações conjugais simultâneas) em face da proteção de um legítimo interesse (frustração de expectativa afetiva monogâmica) de ao menos  um dos cônjuges/companheiros, partícipe desse paralelismo conjugal.

Afinal, se porta com evidente má fé aquele que a despeito de já ser casado ou viver em união estável, se relaciona concomitantemente com outrem, inaugurando nova relação conjugal paralela, aniquilando a expectativa afetiva monogâmica dos partícipes dessa relação conjugal, mediante conduta desleal, mantendo-o em uma vida em comum fundada na mentira e no engano, aviltante, é certo, à dignidade da pessoa humana. Do mesmo modo, aquele que ciente de que está a manter relação de conjugalidade com pessoa que já compõe um núcleo familiar anterior, procede de modo a desprezar qualquer dever moral e ético perante o partícipe da primeira entidade familiar, frustrando suas expectativas afetivas monogâmicas, violando assim, sua dignidade.

Isso implica dizer que o direito pode não proteger aquele que, a pretexto da satisfação egoística do próprio desejo, aniquila a dignidade do outro, mediante um proceder iníquo e desleal, que frustra as expectativas de coexistência afetiva nutridas por conta da relação de conjugalidade entre eles mantida. Do mesmo modo, aquele que ciente de que está a manter relação de conjugalidade com pessoa que já compõe um núcleo familiar anterior, procede de modo a desprezar qualquer dever ético perante os componentes da primeira entidade familiar, pode não ter plenamente atendidas suas expectativas acerca de eventual chancela jurídica da relação por ele mantida, se essa eficácia vier a intervir na esfera jurídica dos membros do outro núcleo familiar. (RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Famílias Simultâneas e Monogamia. In www.ibdfam.org.br).

Em outras palavras, a frustração da confiança, das legítimas expectativas afetivas monogâmicas de ao menos um dos cônjuges/companheiros partícipe desse paralelismo conjugal, não pode ser admitida pelo direito. A violação às expectativas de construção de vida em comum, fundadas em uma convivência familiar monogâmica, pautada na exclusividade conjugal, não pode ser tolerada pelo direito, eis que violadora da dignidade da pessoa humana (art. 1º III da CF).

A família, no direito positivo brasileiro, é atribuída proteção especial na medida em que a Constituição entrevê o seu importante papel na promoção da dignidade da pessoa humana. Sua tutela privilegiada, entretanto, é condicionada ao atendimento dessa mesma função. Por isso mesmo, o reconhecimento jurídico das entidades familiares depende da concreta verificação do atendimento desse pressuposto finalístico: merecerá tutela jurídica e especial proteção do Estado a entidade familiar que efetivamente promova a dignidade e realização da personalidade de seus componentes (TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Renovar. p. 326/327).

Todavia, embora a monogamia possua relevante função ordenadora do sistema jurídico, não se pode ignorar a existência de outros valores que, igualmente, norteiam as relações familiares. A monogamia não se apresenta como valor absoluto, pois outros valores, de igual prestígio na seara familiar, podem sobrepujar na concretude do caso, devendo se adotar a técnica da ponderação de interesses para a solução do caso concreto.

É por isso que ressalvo a possibilidade de família simultânea ou paralela, no caso de putatividade, prevalecendo sobre a exclusividade conjugal, na hipótese, a boa fé (art. 1561 do CC) e a confiança (art. 113 e 422 do CC), que devem, portanto, ser tuteladas em sede familiarista. A boa fé e a confiança afastam o caráter ilícito do concubinato, porque valoriza a dignidade dos partícipes dos núcleos familiares concomitantes. Afinal, aquele que age de boa fé e com confiança deve ter sua dignidade protegida da mesma forma que a pessoa enganada, até porque a boa fé e a confiança de ambos é a mesma, reclamando justa tutela jurídica. Nesse caso, putatividade, todos os efeitos familiaristas são reconhecidos, inclusive sucessórios.

Estabelecida uma união estável putativa, o respeito necessário à boa-fé impõe o reconhecimento concomitante de direitos às pessoas envolvidas, inclusive com a divisão do patrimônio comum em três partes iguais [...] Além disso, permite-se à companheira putativa a cobrança de pensão alimentícia e direito à herança, dentre outros efeitos jurídicos típicos da relação familiar. (ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito das Famílias. Lumenjuris. 3ª ed. p. 474).

Essa putatividade pode decorrer da boa-fé subjetiva, consistente no desconhecimento do parceiro de que o consorte é casado ou possui anterior união estável.

Cumpre lembrar a possibilidade de união estável putativa, à semelhança do casamento putativo. [...] a segunda, terceira ou múltipla união de boa fé pode ocorrer em hipótese de desconhecimento pelo companheiro inocente da existência de casamento ou de anterior união estável paralela por parte do outro (OLIVEIRA, Euclides de. União estável: do concubinato ao casamento. Método. 6ª ed. p. 139-140).

Boa fé, por evidente, suficientemente escusável, pois deve conter a presença de diligência, cautela e interesse da parte acerca das qualidades daquele que elegeu para ser seu parceiro, pois não se espera que a escolha de um companheiro não passe por um razoável e diligente crivo de informações precedentes. A vítima deve ter sido cautelosa, diligente, ou então deverá apresentar um motivo razoável por não ter diligenciado (MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. Forense. 5ª ed. p. 26)

Essa putatividade pode também decorrer da boa-fé objetiva, também aplicável à seara familiarista. Neste caso, a boa-fé não decorre da falta de conhecimento do parceiro, mas sim em razão do comportamento do consorte que gera uma expectativa legítima, uma confiança naquele.

Seria a hipótese do companheiro que, embora casado e convivendo com a esposa, faz a companheira acreditar que não mais existe convivência marital, afetiva, que o casal dorme em quartos separados e que tudo ainda não se resolveu por conta dos filhos, por exemplo. Aqui, embora ciente de que o companheiro ainda é casado e convive com a esposa, a companheira está de boa-fé (objetiva), por conta da confiança que nela foi despertada, merecendo proteção do sistema jurídico e, por conseguinte, tendo direito aos efeitos familiares da relação (ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito das Famílias. Lumenjuris. 3ª ed. p. 473).

Outra hipótese em que se admite a família paralela ou simultânea se dá quando a fidelidade e a exclusividade são dispensadas mutuamente pelos partícipes das relações conjugais paralelas. Como dito, a família é protegida como meio de alcançar a dignidade de seus partícipes. Portanto, não cabe ao Estado, nessa hipótese, negar efeitos familiares a uma relação que é consentida por todos os membros dessas famílias simultâneas, que ao aceitarem tal situação, manifestaram não haver qualquer prejuízo às suas dignidades. A monogamia não possui valor absoluto, devendo ceder espaço, no caso, aos princípios da dignidade da pessoa humana, pluralidade familiar, liberdade de autodeterminação afetiva, afetividade e princípio eudemonista. Se os partícipes das relações conjugais paralelas admitem como mais adequada às suas aspirações existenciais a simultaneidade conjugal, não cabe ao Estado deixar a marca da beligerância nessa relação pacífica, consentida, afetiva, estável e ostensiva, própria dos novos arranjos familiares da sociedade contemporânea. Nesse caso todos os efeitos familiaristas são reconhecidos, inclusive sucessórios.

A aceitabilidade de todos os membros envolvidos sobre a simultaneidade das relações pode permitir a constituição de famílias simultâneas. Não parcerias ou sociedades de fato, mas entidades familiares propriamente ditas, com todos os direitos advindos dessa relação [...] A publicidade da relação paralela, sem qualquer repulsa pelo cônjuge ou pelo primeiro companheiro, gera uma presunção (relativa, é claro) de que todos os envolvidos aceitaram a situação, não manifestando prejuízo à sua dignidade. Com isso, justifica-se perfeitamente o tratamento da questão no âmbito familiar (ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito das Famílias. Lumenjuris. 3ª ed. p. 474).

De outro lado, se a ostensibilidade é plena, estendendo-se a todos os componentes de ambas as entidades familiares – sobretudo os que mantêm relação de conjugalidade com o componente comum – e mesmo assim ambas as famílias se mantém íntegras, sem o rompimento dos vínculos de coexistência afetiva, pode ser viável concluir, segundo as peculiaridades que se apresentarem no caso concreto à luz dos demais deveres inerentes à boa fé, que a simultaneidade não seria desleal, não havendo violação de deveres de respeito à confiança do outro e, sobretudo, de proteção da dignidade dos componentes de ambas as famílias. A simultaneidade, atenderia, assim, em tese, às pretensões de felicidade coexistencial de todos os componentes das famílias em tela. É relevante enfatizar que a plena ostensibilidade da situação de simultaneidade entre os componentes dos núcleos familiares não é suficiente, de per se, para gerar presunção absoluta de que todos os deveres inerentes à boa fé estão sendo atendidos. Manter-se casado ou unido em convivência estável só é uma verdadeira opção para os materialmente livres. Não se pode olvidar que em um país em que as desigualdades econômicas são profundas e a emancipação feminina não atinge de modo igual todas as classes sociais, não é absurdo supor que uma mulher posse se manter unida a um homem que vive entre múltiplas conjugalidades somente porque, caso venha a se separar, não terá recursos para sustentar a si própria e aos filhos – não raro numerosos. Nesse caso, mesmo com ampla ostensibilidade, a simultaneidade pode se revelar como aviltante para a dignidade da mulher, de modo que não se pode afirmar que a boa fé – no sentido de proteção da pessoa do outro – está sendo plenamente atendida na hipótese formulada. Tal circunstância pode obstar a chancela jurídica dos efeitos da simultaneidade. (RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Famílias Simultâneas e Monogamia. In www.ibdfam.org.br).

Por fim, admite-se que para além das hipóteses acima referidas, em outras situações excepcionalíssimas, será possível reconhecer circunstanciais efeitos jurídicos – próprios do direito familiar ou sucessório - à união afetiva paralela, quando a casuística demonstrar flagrante injustiça, em prejuízo do concubino.

O concubinato adulterino, ou simplesmente concubinato, como estabelece o art. 1727 do CC, é aquela relação que originou uma família, fazendo com que existam duas famílias ao mesmo tempo, seja paralela ao casamento ou a uma união estável. O elemento definidor aí é a simultaneidade das relações de família, que fere a monogamia, um dos princípios norteadores do Direito de Família. Não estaria quebrando um princípio basilar na medida que confere direitos aos sujeitos dessa relação paralela ao casamento, se para isto é necessário reconhecer aquela relação como uma forma de família? Por outro lado, não conceder direitos aos concubinos (geralmente à concubina) estar-se-ia fazendo injustiça e inclusive beneficiando os sujeitos da relação protegida oficialmente, seja o casamento ou união estável.[...] O concubinato (adulterino) fere o princípio da monogamia, bem como a lógica do ordenamento jurídico ocidental e em particular o brasileiro. [...] Mas se o fato de ferir esse princípio significar fazer injustiça, devem recorrer a um valor maior, que é o da prevalência da ética sobre a moral, passa que possamos aproximar do ideal de justiça [...] Isso significa colocar em prática o que disse antes, ou seja, que o Direito deve proteger a essência e não a forma, ainda que isto custe “arranhar” o princípio jurídico da monogamia. Se o fim dos princípios jurídicos é ajudar a atingir um bem maior, ou seja, a justiça, este paradoxo do concubinato adulterino deve ser resolvido, então, em cada julgamento, e cada julgador, aplicando outros princípios e a subjetividade que cada caso pode conter, é quem deverá aplicar a justiça, dentro de seu poder de discricionariedade. Assim, estaremos preservando o princípio jurídico da monogamia, eixo gravitacional sob o qual todo o Direito de Família está estruturado (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais norteadores do Direito de Família. Saraiva. 2ª ed. p. 127-145).

Não se trata, ressalte-se, de equiparar o concubinato à união estável, mas apenas de reconhecer que diante da excepcional concretude do caso, se outro valor de especial envergadura familiar, sobrepujar ao repúdio jurídico do concubinato (decorrente da monogamia), poderá o Juiz, em autêntica técnica de ponderação de interesses, reconhecer circunstanciais efeitos jurídicos familiares e até mesmo sucessórios à união afetiva paralela.

Assim, inclusive, já reconheceu o STJ, ao reconhecer, em um concubinato de longa duração, o dever alimentar do concubino casado à concubina idosa e dependente econômica, ante a incidência dos princípios da dignidade e solidariedade humanas e as especificidades do caso concreto, a prevalecerem sobre o princípio da monogamia.

RECURSO ESPECIAL. CONCUBINATO DE LONGA DURAÇÃO. CONDENAÇÃO A ALIMENTOS. NEGATIVA DE VIGÊNCIA DE LEI FEDERAL. CASO PECULIARÍSSIMO. PRESERVAÇÃO DA FAMÍLIA X DIGNIDADE E SOLIDARIEDADE HUMANAS. SUSTENTO DA ALIMENTANDA PELO ALIMENTANTE POR QUATRO DÉCADAS. DECISÃO. MANUTENÇÃO DE SITUAÇÃO FÁTICA PREEXISTENTE. INEXISTÊNCIA DE RISCO PARA A FAMÍLIA EM RAZÃO DO DECURSO DO TEMPO. COMPROVADO RISCO DE DEIXAR DESASSISTIDA PESSOA IDOSA.  INCIDÊNCIA DOS PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE E SOLIDARIEDADE HUMANAS. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. INEXISTÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICO-JURÍDICA. 1. De regra, o reconhecimento da existência e dissolução de concubinato impuro, ainda que de longa duração, não gera o dever de prestar alimentos a concubina, pois a família é um bem a ser preservado a qualquer custo. 2. Nada obstante, dada a peculiaridade do caso e em face da incidência dos princípios da dignidade e solidariedade humanas, há de se manter a obrigação de prestação de alimentos a concubina idosa que os recebeu por mais de quatro décadas, sob pena de causar-lhe desamparo, mormente quando o longo decurso do tempo afasta qualquer risco de desestruturação familiar para o prestador de alimentos. 3. O acórdão recorrido, com base na existência de circunstâncias peculiaríssimas - ser a alimentanda septuagenária e ter, na sua juventude, desistido de sua atividade profissional para dedicar-se ao alimentante; haver prova inconteste da dependência econômica; ter o alimentante, ao longo dos quarenta anos em que perdurou o relacionamento amoroso, provido espontaneamente o sustento da alimentanda -, determinou que o recorrente voltasse a prover o sustento da recorrida. Ao assim decidir, amparou-se em interpretação que evitou solução absurda e manifestamente injusta do caso submetido à deliberação jurisprudencial. 4. Não se conhece da divergência jurisprudencial quando os julgados dissidentes tratam de situações fáticas diversas. 5. Recurso especial conhecido em parte e desprovido. (STJ. REsp 1185337/RS, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/03/2015, DJe 31/03/2015)

 

5. Família Poliafetiva.

Outro arranjo familiar contemporâneo é a família poliafetiva. Há pessoas que se relacionam conjuntamente a três (ou mais) pessoas. Não se trata de paralelismo de relações familiares, pois não se trata de famílias paralelas ou simultâneas. Mas sim uma relação conjugal conjunta a três, num autêntico “trisal”, enfim, um único agrupamento conjugal formado por mais de duas pessoas, uma única família, chamada de poliafetiva. 

A doutrina está longe de possuir entendimento uniforme acerca da questão. Ao comentar uma escritura pública que reconheceu união afetiva a três, em Tupã/SP, a doutrina tem se dividido.

Primeiro aqueles que admitem coma autêntica forma familiar:

A despeito de jurisprudência contrária do STJ e do STF à possibilidade jurídica de uniões estáveis paralelas (que diferem das poliafetivas, que não são “paralelas”, pois formam uma única união), a família conjugal poliafetiva que não gere opressão a nenhum de seus integrantes deve ser reconhecida e protegida pelo Estado Brasileiro, por força do princípio da pluralidade de entidades familiares oriundo da interpretação do caput do art. 226 e da ausência de motivação lógico-racional que justifique a negativa de reconhecimento à mesma (isonomia) (VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. União estável poliafetiva: breves considerações acerca de sua constitucionalidade. In http://arpen-sp.jusbrasil.com.br/noticias/100131335/artigo-uniao-estavel-poliafetiva-breves-consideracoes-acerca-de-sua-constitucionalidade-por-paulo-roberto-iotti-vecchiatti).

Essa é a família poliafetiva, integrada por mais de duas pessoas que convivem em interação afetiva dispensada da exigência cultural de uma relação de exclusividade apenas entre um homem e uma mulher vivendo um para o outro, mas sim de mais pessoas vivendo todos sem as correntes de uma vida conjugal convencional. É o poliamor na busca do justo equilíbrio, que não identifica infiéis quando homens e mulheres convivem abertamente relações afetivas envolvendo mais de duas pessoas. Vivem todos em notória ponderação de princípios, cujo somatório se distancia da monogamia e busca a tutela de seu grupo familiar escorado no elo do afeto. A começar com o princípio do pluralismo das entidades familiares, consagrado na Carta Política de 1988, que viu no matrimônio apenas uma das formas de constituição de família, admitindo, portanto, outros modelos que não se esgotam nas opções exemplificativamente elencadas pela CF, não havendo mais dúvida alguma acerca da diversidade familiar depois do reconhecimento pelo STF das uniões homoafetivas, que terminou com qualquer processo social de exclusão de famílias diferentes. Prepondera o princípio constitucional da afetividade (MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. Forense. 5ª ed. p. 26)

Segundo aqueles que repudiam essa forma de escrituração, por não ter efeito jurídico e contrariar nosso ordenamento:

A escritura lavrada em Tupã de nada servirá a essas três pessoas. É inútil porque não produz os efeitos almejados, uma vez que a Constituição Federal, a Lei Maior do ordenamento jurídico nacional, atribui à união estável a natureza monogâmica, formada por um homem ou uma mulher e uma segunda pessoa (CF, art. 226, § 3º). O reconhecimento notarial afronta a dignidade das três pessoas envolvidas (CF, art. 1º, III), servindo como elemento de destruição da família, que é considerada elemento basilar da sociedade brasileira (CF, art. 226, caput). A bigamia constitui crime, tipificada como o novo casamento realizado por pessoa casada (Código Penal, art. 235). Logo, se o direito brasileiro não tolera o casamento bígamo, por semelhante razão — embora sem a tipificação criminal porque o diploma penal é anterior à consideração constitucional da união estável — não se admite entidade familiar formada por três ou mais pessoas. A escritura do trio não tem eficácia jurídica, viola os mais básicos princípios familiares, as regras constitucionais sobre família, a dignidade da pessoa humana e as leis civis, assim como contraria a moral e os costumes da nação brasileira. (SILVA, Regina Beatriz Tavares da. União poliafetiva é um estelionato jurídico. In http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI165014,81042-Uniao+poliafetiva+e+um+estelionato+juridico).

Necessário se analisar tecnicamente o efeito da escritura lavrada em Tupã. A monogamia é um valor socialmente consolidado e historicamente construído. Em termos jurídicos, temos duas regras que aniquilam qualquer possibilidade de se admitir a bigamia no sistema jurídico brasileiro, uma de ordem civil e outra criminal. A primeira está no Código Civil que prevê a mais dura sanção reconhecida pelo ordenamento em ocorrendo o casamento bígamo: a nulidade absoluta (arts. 1521, VI e 1548 do CC). [...] o Código Penal brasileiro prevê em seu artigo 235 que é crime contrair novo casamento, sendo casado e a pena é de reclusão de 2 a 6 anos [...] Não se trata de elemento de existência, mas sim de requisito de validade do negócio jurídico. Havendo causa de proibição legal, seja ela culminada de sanção penal ou civil, a afronta à norma cogente acarreta nulidade absoluta da escritura poligâmica tupanense. A única conclusão que se chega é que e escritura é nula, nos termos do art. 166, por motivo evidentemente ilícito (contra o direito) e por fraudar norma imperativa que proíbe uniões formais ou informais poligâmicas. (SIMÃO, José Fernando. Poligamia, casamento homoafetivo, escritura pública e dano social: uma reflexão necessária. In http://www.professorsimao.com.br/artigos_simao_cf0213.html)

É verdade que recentemente o CNJ proibiu em todo o país a escrituração cartorial de uniões poliafetivas, mas isso não afasta a possibilidade do Judiciário reconhecer como espécie familiar essas uniões, consagrando, assim, direitos aos seus partícipes.

Dessa forma, sob minha ótica, se essa relação não for puramente sexual ou casual, mas sim possuir elementos estruturantes da família: afetividade, estabilidade e ostensibilidade, configurar-se-á também uma espécie familiar, chamado por alguns de união estável plural ou poliafetiva, ou simplesmente, como prefiro, família poliafetiva.

No caso, não há violação à fidelidade e à lealdade nesse arranjo familiar, ante a existência de uma relação conjugal conjunta, em que todos se consideram uma única família, um único agrupamento familiar, não havendo a violação da dignidade de qualquer um dos partícipes dessa relação pacífica e consentida. Como dito, a família é protegida como meio de alcançar a dignidade de seus partícipes. Portanto, não cabe ao Estado, nessa hipótese, negar efeitos familiares a uma relação que é consentida por todos os membros desse agrupamento familiar, que ao manifestarem plena adesão a esse tipo de arranjo familiar, demonstraram não haver qualquer prejuízo às suas dignidades.

O princípio da monogamia continua sendo um princípio ordenador das relações jurídicas da família do mundo ocidental. Aqui, inclusive, a monogamia a ser considerada é a endógena, considerada dentro do mesmo grupo familiar, ao contrário da exógena, que veda o surgimento de núcleo familiar paralelo. Todavia, como dito acima, a monogamia, seja endógena ou exógena, não é um valor absoluto, devendo ceder espaço, no caso, aos princípios da dignidade da pessoa humana, pluralidade familiar, liberdade de autodeterminação afetiva, afetividade e princípio eudemonista. Se todos os partícipes da família poliafetiva admitem como mais adequada às suas aspirações existenciais a poliafetividade, não cabe ao Estado deixar a marca da beligerância nessa relação pacífica, consentida, afetiva, estável e ostensiva, própria dos novos arranjos familiares da sociedade contemporânea. Nesse caso, em analogia ao regramento da união estável, todos os efeitos familiaristas são reconhecidos, inclusive sucessórios.

 

Sobre o autor
Cleber Couto

Promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Coordenador Regional das Promotorias de Justiça da Educação, Infância e Juventude. Coordenador Regional do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Bacharel em Direito pela Unifenas. Pós-Graduado em Direito Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Doutorando em Direito Civil pela Universidad de Buenos Aires, Argentina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COUTO, Cleber. Famílias paralelas e poliafetivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4409, 28 jul. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41191. Acesso em: 22 dez. 2024.

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