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Ésquilo e a tragédia europeia: as causas profundas da crise grega

Agenda 12/01/2016 às 14:28

O autor discorre sobre as causas da crise econômica grega e traça um paralelo da situação com uma das mais importantes tragédias clássicas.

Ésquilo, um dos criadores da tragédia grega, escreveu, no século quinto antes de Cristo, a peça As Suplicantes, na qual as cinquenta filhas do príncipe Dânao (conhecidas como Danaides) se refugiam na cidade de Argos, em resistência ao casamento forçado com seus primos. O monarca de Argos, Pelasgo, antes de decidir proteger as suplicantes, em demonstração precoce de espírito democrático, consulta seus súditos, os quais, por sua vez, concordam com a concessão do refúgio às Danaides. O povo temia que a negação da clemência pudesse ser considerada ato de injustiça e, por isso, pudesse ser objeto de castigo divino. O comportamento piedoso dos habitantes de Argos, portanto, era uma forma de conduta, ao mesmo tempo, benevolente e egoísta, na qual se respeitava a justiça divina e o autointeresse de Argos.

Alguns paralelos relevantes podem ser formulados entre a tragédia de Ésquilo e a atual situação da Grécia no âmbito da União Europeia. Similarmente ao enredo da peça, na atualidade, a assistência à suplicante economia grega, à maneira da proteção às Danaides, consiste na forma menos arriscada de, concomitantemente, fazer justiça às demandas mais urgentes do povo grego e preservar os interesses e os objetivos mais profundos do bloco europeu. Esse ato de solidariedade, que é impopular perante os habitantes das economias europeias prósperas, consistiria de medidas paliativas de estímulo imediato ao crescimento da Grécia, seguidas de iniciativas de aprofundamento da integração econômica, principalmente no que concerne à política fiscal e à mobilidade de fatores, problemas ainda não resolvidos pela EU. A opção alternativa, materializada na omissão da UE e no reforço à política ortodoxa, acarretaria a eventual retirada da Grécia da Zona do Euro e, automaticamente, afetaria a credibilidade da moeda única. Essa situação, por sua vez, em prognósticos mais pessimistas, indicaria o início de um processo de esfacelamento paulatino, no qual as outras economias fragilizadas da Europa se sentiriam na posição desconfortável de próximas sacrificadas (como o tragós das tragédias clássicas).

Em análise mais detida, a duradoura crise econômica grega simboliza - tragicamente, por causa de seu poder de síntese de conflitos humanos mais amplos - as dificuldades persistentes do processo de integração europeu, decorrentes da heterogeneidade dos países que constituem o bloco e de problemas apenas parcialmente solucionados. Os índices elevados de desemprego, especialmente entre os jovens, o déficit fiscal impagável, cuja solução proposta pelos credores consiste na eliminação de benefícios sociais, e a impossibilidade de recorrer a mecanismos de ajuste cambial para melhorar a competitividade econômica são, em conjunto, aspectos que, ao persistirem na economia grega, evidenciam as deficiências congênitas da união econômica e monetária do bloco europeu. Se considerados em sua dimensão mais ampla, essas dificuldades representam, além disso, as contradições entre a teoria econômica e a consecução de projetos políticos de longo prazo, especialmente no que diz respeito à preservação de conquistas sociais.

A União Europeia é resultado de longo processo de integração que se inicia na década de 1950, logo após a Segunda Guerra Mundial. Além da necessidade de reconstrução econômica do continente, da oportunidade de reconciliação franco-germânica e da conveniência da defesa coletiva dos ideais ocidentais no contexto bipolar, o projeto europeu foi impulsionado, em seus momentos críticos, pela ambição de constituir um pólo de poder autônomo, culturalmente próximo dos Estados Unidos, porém mais discreto em ostentações de hard power. Seus impulsos mais relevantes, ainda que muitas vezes velados, foram os temores concretos de destruição (talvez de autodestruição) dos valores e da civilização europeia ou de sua absorção por atores políticos mais poderosos, dotados de unidade monolítica e de maior homogeneidade cultural.

Se o objetivo primário era político, a aproximação econômica entre os países, originária do pensamento liberal kantiano, foi o meio de garantir a irreversibilidade do projeto. A liberalização de setores produtivos estratégicos, que possibilitariam transbordamentos para toda a economia do bloco, os sucessivos tratados de incremento institucional do mercado comum e, principalmente, a formação de uma união econômica e monetária, após a criação da moeda única e do Banco Central Europeu, são iniciativas que evidenciam a centralidade da economia no desenvolvimento da EU. Por um lado, a possibilidade de tornar cativo um grande mercado consumidor era atraente para as principais economias europeias, por outro, a expectativa de ligar-se a estas, por meio de investimentos e de acesso a tecnologias mais avançadas, estimulava a adesão dos países periféricos.

A despeito de todas as medidas econômicas que caracterizaram essa trajetória integracionista, a vontade política, entretanto, sempre esteve subjacente no progressivo e necessário aprofundamento da integração (ver: Lessa, 2003; Moravisik, 2005; Woolock, 2008). Em períodos de paralisia do processo, como a década de 1970, marcada pela desconfiança dos atores (euroceticismo) e pela carência de idéias transformadoras dos líderes (euroesclerose), era essa vontade política que se apresentava debilitada, mesmo que os ganhos materiais da integração ainda fossem vislumbrados. De maneira oposta, o advento da união econômica e monetária, apesar de longamente preparado, deve ser compreendido como resultado de renascida vontade política, reforçada pelos fatos que sucederam o fim da guerra fria, em especial a reunificação da Alemanha. A aprovação do Tratado de Maastricht (1992) e dos acordos subseqüentes, assinados em Amsterdã (1997), em Nice (2000) e em Lisboa (2007), ainda que tenha acarretado fortes e amplos efeitos econômicos, expressou, de maneira desmesurada, à moda de manifestação intempestiva da hybris grega, os desideratos políticos dos principais atores da integração.

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Nesse sentido, especificamente, a criação da moeda única e a institucionalização do Banco Central Europeu – projetos articulados pela França, atuando como uma mitológica Moira inconsciente - representaram a sobreposição da vontade integracionista à lógica econômica, na qual, sempre se destacaram problemas decorrentes da inexistência de zona econômica ótima no âmbito da EU (Gilpin, 2004). A adoção do Euro, na prática, gerou o fim das soberanias nacionais sobre suas políticas monetárias e a necessidade imperiosa de coordenação das políticas fiscais dos países do bloco, mesmo que estes mantivessem relativa autonomia sobre seus gastos. Mais do que isso, o Euro representou adoção de uma moeda cujo poder de compra era artificialmente descolado das realidades econômicas dos diversos países, o que aprofundou os desequilíbrios de competitividade no interior do bloco. Países que, como a Grécia, por exemplo, tinham moedas muito desvalorizadas em relação ao dólar foram certamente mais prejudicados em sua capacidade de exportação, ainda que tivessem a expectativa, em parte realizada, de receberem investimentos dos paymasters do bloco.

Em situação de prosperidade da economia mundial, os aspectos econômicos do projeto político foram relativamente exitosos. Houve crescimento e modernização da produção na maioria dos países mais pobres do bloco. A crise de 2008, entretanto, que se iniciou nos EUA e se espalhou por toda a economia mundial, evidenciou os problemas de origem da união econômica e monetária. A política fiscal anticíclica, adotada por quase todos os países do mundo, gerou efeitos desastrosos e desiguais na Zona do Euro. Nos países mais pobres, cujo melhor exemplo é a Grécia, o aumento do gasto público, somado a anos de contabilidade fantasiosa endereçada à Frankfurt, aumentou exponencialmente a verdadeira dívida soberana e criou uma situação de berlinda para o governo e para o povo gregos.

Nesses momentos de crise, os aspectos trágicos tornam-se mais evidentes. Da mesma forma que se observa no gênero literário desenvolvido por Ésquilo, o mal sofrido pela Grécia, em grande medida, não decorre de sua conduta voluntária, pois é pré-determinada por fatores exógenos ao agente. Assim como os heróis trágicos, e isto é causa de empatia geral, o sofrimento grego não resulta de seu comportamento temerário, mesmo que ele tenha sido doloso e claramente reprovável. Apesar de a Grécia ter contribuído incidentalmente para sua situação, ao apresentar, desde seu ingresso como membro da EU, dados fiscais falseados, seu destino ingrato foi determinado pelas opções adotadas nas últimas etapas de constituição do bloco europeu, processo no qual os gregos tiveram importância secundária. É a estrutura incompleta da união econômica e monetária, a qual criou entidade política límbica (algo entre Federação e União Aduaneira), que impossibilita, à Grécia e a outros países mais pobres do bloco, a diminuição dos índices de desemprego, por meio de emigração; o aumento de exportações, mediante uso do mecanismo cambial; a retomada do crescimento autônomo, por meio de manutenção de déficits públicos; e, por fim, a manipulação de sua taxa de juros, para financiamento de dívidas públicas.

Qualquer iniciativa de solução do problema grego deve ser acompanhada da revisão de aspectos centrais da união econômica e monetária. Sem a pretensão de desempenhar o papel repressor do Coro helênico, prevê-se que seja difícil a subsistência da unidade sem aprofundamento da integração fiscal e produtiva dos países. Esse aprofundamento implica, por sua vez, a adoção mais efetiva de mecanismos redistributivos, típicos de federações, nos quais, baseados na idéia de solidariedade entre os membros, os Estados mais ricos transferem recursos aos mais pobres, com a intermediação da entidade central. Ao lado disso, a circulação de trabalhadores deve ser estimulada (não apenas permitida), a fim de que se consolide um mercado europeu integrado de fatores, a despeito da subsistência das diferenças culturais. Para isso, deve-se reforçar a idéia de Europa integral, assumindo-se as dificuldades nacionais como verdadeiros problemas da União, e caminhando-se, na prática, para uma fase de cessão ainda maior de soberania aos órgãos comunitários.

Como as Danaides de Ésquilo, os gregos, ainda que de maneira contraditória, suplicam ajuda e a colaboração da União Europeia. Esta, por sua vez, impossibilitada de realizar uma consulta popular como a de Pelasgo, deve pensar nas conseqüências de longo prazo de sua inércia. Considerando que o caso grego demanda uma solução emergencial e que os povos tem limites pouco elásticos à aceitação de condições de penúria, a inação pode acarretar a retirada precoce da Grécia da Zona do Euro e a instauração de crise política em todo o bloco, o qual, no final das contas, na visão simplista do demos empobrecido, não se dispôs a ajudar um de seus membros mais fracos. O afrouxamento das medidas de austeridade requeridas da Grécia, por sua vez, se acompanhadas de reformas amplas na união econômica e monetária, poderia ser palatável para as populações dos países ricos e poderia gerar benefícios políticos na área mais frágil da EU: relação direta com os indivíduos, os quais são, na realidade, aqueles que sofrem as conseqüências mais severas das políticas econômicas de austeridade. Assim, em momento catártico no interior do bloco, o dilema grego oferece a oportunidade de indicar uma integração mais humana, na qual, em um processo de evolução conjunta do continente, o todo se beneficia do êxito de suas partes, e na qual destinos mais prósperos são retraçados para todas as populações europeias, sem que existam ilhas germânicas de prosperidades circundadas por águas mediterrâneas pauperizadas. Portanto, da mesma forma que, na peça de Ésquilo, salvar as Danaides significava preservar Argos, na crise atual, amparar a Grécia implica não condenar o projeto de unidade europeia à eterna utopia.


Referências:

Gilpin, Robert. O desafio do capitalismo global: a economia mundial no século 21. São Paulo, Record, 2004.

Lessa, Antônio Carlos. A construção da Europa: a última utopia das relações internacionais, Brasília, Funag, IBRI, 2003.

Moravisik, Andrew (2005). “The European Union constitutional compromise and the neofunctionalist legacy” in Journal of European Public Policy, 12:2, April, pp. 349-386.

Woolock, Stephen (2008). “The potential impact f the Lisbon Treaty on European Trade Policy” in European Policy Analysis, June.

Sobre o autor
Mauro Kiithi Arima Junior

Bacharel em Direito e Relações Internacionais pela USP. Especialista em Direito Político, Administrativo e Financeiro pela FD USP. Especialista em Política Internacional pela FESPSP. Mestre em Direito Internacional pela USP. Doutor em Direito Internacional pela USP. Advogado, professor e consultor jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KIITHI, Mauro Arima Junior. Ésquilo e a tragédia europeia: as causas profundas da crise grega. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4577, 12 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41646. Acesso em: 22 nov. 2024.

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