Para que uma conduta seja considerada delituosa é preciso que tenha tipicidade formal, ou seja, que o fato se adeque à previsão de crime. Exemplo: Subtrair um frasco de xampu, segundo o art. 155 do Código Penal, é furto. Mas é preciso também que a prática tenha tipicidade material, ou seja, que configure lesão intolerável ao bem jurídico protegido. Ao prever o furto, a legislação visa a proteger o patrimônio. É por isso que, para alguns, se a subtração atinge uma loja com vasto estoque, seria possível desconsiderar a ocorrência de crime pela insignificância do prejuízo e sancionar o autor da subtração sem recorrer ao Direito Penal, ou seja, condená-lo à reparação do dano na esfera cível.
Para os leigos em Direito essa solução beira o absurdo, mas ela tem sido adotada constantemente pelo Supremo e pelo Superior Tribunal de Justiça com base em fundamentos teóricos respeitáveis, muito embora seja criticada com base em bons argumentos contrários, como a redução da proteção da sociedade, a sensação de impunidade, o estímulo à reiteração etc.
Em linhas gerais, portanto, sempre que a justiça reconhece a “insignificância” ou “bagatela” do ocorrido em seara penal, está a afirmar que o Direito Penal não deve se preocupar com questões de pequena relevância e que a lei não deve descrever como ilícitas condutas incapazes de lesar algum bem jurídico.
Alguns juízes criminais entendem que a posse de pequena quantidade de droga para consumo próprio deve ser considerada atípica, ou seja, não configura crime.
Todavia, nesse particular, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça têm repelido a tese da insignificância para a posse não autorizada de pequena quantidade de droga.
Nos autos do agravo regimental 728.688, julgado em 17/09/2013, o Supremo decidiu que “a aplicação do princípio da insignificância exige que a conduta seja minimamente ofensiva, que o grau de reprovabilidade seja ínfimo, que a lesão jurídica seja inexpressiva e, ainda, [...] ausência de periculosidade do agente”. E confirmou decisão da instância inferior no sentido de que a posse de droga gera risco potencial do delito para a sociedade. Foi enfatizado que o usuário alimenta o comércio da droga e permite a continuidade da atividade do narcotráfico. O julgado descartou a atipicidade do delito também porque o crime descrito no artigo 28 da Lei Federal 11.343/2006 “é de perigo abstrato para a saúde pública - por ser capaz de gerar dependência físico-química -, de maneira que o legislador entendeu por bem manter a tipicidade da conduta, ainda que sem aplicação de penas restritivas de liberdade”. A decisão do tribunal recorrido ressaltou: “numa sociedade que criminaliza psicoativos e associa experiências de alucinógenos à marginalidade, o consumo de drogas provoca uma séria questão ética: quem consome é tão responsável por crimes quanto quem vende. Ao cheirar uma carreira de cocaína, o nariz do cafungador está cheirando automaticamente uma carreira de mortes, consciente da trajetória do pó. Para chegar ao nariz, a droga passou antes pelas mãos de criminosos. foi regada a sangue’. (...) é proposital [no filme "o dono da noite", de Paul Schrader] a repetição ritualística de cenas que mostram a rotina do entregador, encerrado numa limusine preta e fúnebre. Nesse contexto, a droga não cumpre mais a função social das antigas culturas. Ela é apenas um veículo de alienação e autodestruição".
O STJ tem ponderado que “a pequena quantidade de droga faz parte da própria essência do delito em questão, não lhe sendo aplicável o princípio da insignificância” (AgRg no AREsp 620.033/MG, julgado em 14/04/2015). Tem mantido as investigações.
O STF já reconheceu a repercussão geral do debate (RE 635.659). Logo analisará a constitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/2006, que tipifica como crime a posse indevida de droga para uso próprio. A sua decisão influirá na maneira como o Poder Judiciário como um todo terá de se portar diante de apurações do gênero. Quem defende a inexistência de crime invoca, dentre outros argumentos, o chamado “princípio da alteridade ou transcendentalidade” e sustenta que só devem ser punidas condutas que possam causar danos a terceiros. Defende, portanto, que, se o indivíduo porta droga para o seu consumo, fará mal somente a si mesmo.
Particularmente, sou contra a descriminalização da posse da droga para consumo próprio. Penso que isso não traria qualquer contribuição para a sociedade. Ao contrário, estimularia que as pessoas “experimentassem”, o que muitas não fazem temerosas pela repercussão jurídica e social. A posse da droga já não seria tão reprovável. O mercado “paralelo”, no meu entender, continuaria atuando mesmo que o Estado viesse a regulamentar a venda controlada de algumas drogas, pois nem todos os dependentes se contentariam com as quantidades que pudessem vir a adquirir licitamente e nem todos se disporiam a assumir o uso.
Eu não gostaria que jovens pudessem encontrar maconha à venda em estabelecimentos comerciais. Como já enfatizado, a posse da droga é considerada crime não apenas pelo mal que o consumo faz ao seu portador, mas pelo risco social de a substância ser disseminada e porque a sua posse em si é desdobramento de uma série de situações criminosas muito graves.