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Crítica à nova sistemática da incapacidade de fato segundo a Lei 13.146/15:

Estatuto da Pessoa com Deficiência

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As mudanças introduzidas pela Lei nº 13.146/2015, embora muito bem intencionadas, podem ter impactos desastrosos sobre a segurança jurídica esperada.

1 Introdução

O Estatuto da Pessoa com Deficiência é norma que implica diversos avanços no tratamento digno e igualitário de agentes com quaisquer tipos de deficiência. Representa, nesse ponto, um avanço. Ocorre, porém, que, no afã de avançar, eventuais alterações a um sistema logicamente concebido devem ser bem sopesadas, para não implicarem rupturas que muito podem dificultar a vida das pessoas que se buscava proteger.

As mudanças introduzidas pela Lei nº 13.146/2015, embora muito bem intencionadas, podem ter impactos desastrosos sobre a segurança jurídica esperada. Há no novo sistema uma confusão entre os termos incapacidade, interdição e curatela e seus limites, bem como questões relacionadas à validade dos atos praticados pelo deficiente para o qual não se nomeou curador. Do mesmo modo, a questão da relativa incapacidade daqueles que, por causa provisória ou permanente, não possam expressar sua vontade e ainda a questão da suspensão da prescrição e da decadência para o incapaz que devem ser analisadas dentro do novo sistema.

Mesmo com vigência apenas para o início de 2016, tais questão tem gerado debates com críticos e defensores das alterações inseridas.


2 O regime das incapacidades nos termos originais do Código Civil de 2002

O direito tem como função essencial a disciplina de relações jurídicas que podem ser conceituadas, em termos gerais, como “toda a situação da vida real (social) juridicamente relevante (produtiva de consequências jurídicas), isto é, disciplinada pelo direito”[1].  Nessas relações, há necessariamente sujeitos de direito envolvidos, não se podendo cogitar atualmente da existência de relação jurídica com uma coisa. Há necessariamente sujeitos de um e de outro lado da relação jurídica, podendo inclusive toda a coletividade fazer parte de um dos polos.

Aos envolvidos na relação jurídica, deve-se usar a expressão “sujeito de direitos”, na medida em que, ao menos no direito brasileiro, essa expressão é mais ampla abrangendo desde os sujeitos dotadas de personalidade jurídica (pessoas físicas e jurídicas) como aqueles entes despersonalizados (espólio, massa falida...). A diferença entre os dois tipos de sujeitos está na extensão da sua capacidade para fazer parte de relações jurídicas. Os entes despersonalizados têm capacidade de praticar atos, mas apenas o que for essencial ao cumprimento de sua função ou o expressamente autorizado[2]. De outro lado, os entes dotados de personalidade jurídica (pessoas) seriam aqueles dotados de uma “aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações”[3].

Naturalmente, é nesse último grupo que se inserem a maior parte das relações jurídicas, isto é, as pessoas são os principais sujeitos de direito que atuam no mundo jurídico. Dentro dessa realidade, estão inseridas as pessoas físicas ou naturais, mas também as pessoas jurídicas ou morais.

As pessoas físicas ou naturais são os seres humanos. A personalidade é um atributo indissociável do homem dentro da ordem jurídica, não depende da sua consciência ou vontade. Os outros seres vivos não têm personalidade, mesmo sendo protegidos por algumas normas, o direito não se lhes assegura personalidade. Nestes casos, o que é protegido é o sentimento humano. Constituído o direito por causa do homem, este, a princípio, centraliza todos os cuidados do ordenamento jurídico. O direito é estabelecido para fins humanos, mas não é apenas a pessoa física que pode ser sujeito de direitos,[4] existem outros entes que igualmente podem ser titulares de direitos e obrigações de forma genérica, como as pessoas jurídicas. No entanto, o objeto desse trabalho é relacionado às pessoas naturais, mais especificamente a sua capacidade.

A capacidade de fato é a medida da personalidade, é a extensão dada aos poderes de ação contidos na personalidade[5] por si mesmos. Esta capacidade, enquanto exercício de fato dos atos da vida civil, pressupõe historicamente a existência de consciência e vontade, ligados a determinados fatores objetivos (idade e estado de saúde).  A idade reduzida ou a falta do necessário discernimento, a princípio, conduzem à incapacidade civil que poderá ser absoluta ou relativa.

Os absolutamente incapazes podem exercer seus atos por meio dos representantes legais, que são pessoas que agem em seu nome, falam, pensam e querem por ele. Embora apareça mais e assine os atos, o representante do absolutamente incapaz pratica atos jurídicos em nome deste e para produzir efeitos na órbita jurídica deste.[6] O ato praticado pelo representante não é atribuído a este, mas ao representado, é como se o próprio representado estivesse praticando o ato. Nos seus efeitos jurídicos, o negócio é tratado como um negócio do próprio representado.[7]

Nos termos originais do Código Civil de 2002 são consideradas absolutamente incapazes: I - os menores de dezesseis anos; II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.   Em todos os casos indicados, a vontade do sujeito não é considerada como suficiente para praticar os atos da vida civil por si mesmo, em razão da idade reduzida, de enfermidade ou qualquer outra causa que afete o seu discernimento a ponto de exigir a presença do representante.  

Também na redação original, o Código Civil considerava absolutamente incapazes: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; e IV - os pródigos. Nestes casos, o discernimento é reduzido, mas não tanto, de modo que se relativiza a incapacidade, permitindo sua atuação jurídica com assistência. No caso dos relativamente incapazes, a lei não lhes retira a ingerência ou a participação na vida jurídica.[8] Eles praticam os atos em seu próprio nome, apenas exige-se a assistência para a validade do ato.

Percebe-se, pois, que inúmeras pessoas deficientes não eram tratadas como incapazes pelo Código Civil em sua versão original, por exemplo, cadeirantes, surdos, mudos, apenas para citar alguns casos. A deficiência por si só não era motivo de incapacidade, mas apenas questões relacionadas à expressão da vontade, ao discernimento.


3. Alterações nas incapacidades decorrentes do Estatuto da pessoa com deficiência

Os dispositivos do Código Civil de 2002 que definiam as incapacidades foram alterados pela Lei nº 13.146/2015, implicado na alteração das indicações dos absolutamente e dos relativamente incapazes. A título ilustrativo, podem ser feitos os seguintes quadro comparativos:

ABSOLUTAMENTE INCAPAZES

De acordo com a redação original do CC

ABSOLUTAMENTE INCAPAZES

De acordo com a redação do CC alterada pela Lei nº 13.146/2015

os menores de dezesseis anos;      

Os menores de dezesseis anos;

os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;      

os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade

RELATIVAMENTE INCAPAZES

De acordo com a redação original do CC

RELATIVAMENTE INCAPAZES

De acordo com a redação do CC alterada pela Lei nº 13.146/2015

I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;

I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;

II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido;

II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico;

III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo;  

III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade;

IV - os pródigos.

IV - os pródigos.

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Houve uma redução no número das incapacidades.

A primeira alteração feita pelo Estatuto da Pessoa Deficiência é a redução do número de absolutamente incapazes, que passa a abranger agora apenas os menores de 16 anos. A segunda alteração envolve aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade que passam a ser relativamente incapazes. A terceira alteração envolve os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido que deixam de ser incapazes, relativa ou absolutamente para adquirirem capacidade plena. A quarta alteração envolve os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo que também passaram a ser completamente capazes.


4. A pessoa com deficiência e a capacidade de fato

Ao editar o Estatuto da pessoa com deficiência entendeu o legislador que a referência a certas hipóteses de deficiências como causas incapacitantes importava cunho pejorativo, havendo por bem alterar a mencionada norma. Emblemática a leitura do parecer do projeto de lei (que deu origem ao Estatuto analisado) no Senado Federal[9]:

“Para facilitar a compreensão, optamos por fazer uma análise conjunta dos dispositivos constantes dos arts. 6º e 84, além de algumas das  alterações contidas no art. 114, uma vez que dispõem sobre a capacidade civil das pessoas com deficiência. Seu cerne é o reconhecimento de que condição de pessoa com deficiência, isoladamente, não é elemento relevante para limitar a capacidade civil. Assim, a deficiência não é, a priori , causadora de limitações à capacidade civil. Os elementos que importam, realmente, para eventual limitação dessa capacidade, são o discernimento para tomar decisões e a aptidão para manifestar vontade. Uma pessoa pode ter deficiência e pleno discernimento, ou pode não ter deficiência alguma e não conseguir manifestar sua vontade.

(...)

Nesse sentido, o art. 114 do SCD altera dispositivos do Código Civil que atualmente dispõem sobre a capacidade civil daqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, têm discernimento reduzido ou limitações na capacidade de exprimir sua vontade.

Entendemos, na linha da Convenção, que as pessoas com deficiência não podem sofrer limitações na sua capacidade civil. Assim, impõe-se a revogação de toda a legislação que dispõe em sentido contrário. Os institutos da tutela e da curatela têm sido empregados de modo retrógrado e draconiano, limitando exageradamente a capacidade das pessoas que deveriam ser suas beneficiárias. Com as alterações promovidas pelo SCD, apenas os menores de dezesseis anos seriam absolutamente incapazes, prevalecendo à capacidade relativa para os ébrios e os toxicômanos, além daqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade. A curatela passa a considerar apenas os critérios de discernimento e capacidade de exprimir a vontade, deixando de considerar a existência de deficiência ou enfermidade. Às pessoas com deficiência, especificamente, seriam aplicáveis as regras previstas no s arts. 84 a 87 do SCD, e na nova redação dada ao art. 1.769 do Código Civil.”

É importante refutar os equívocos constantes do parecer acima transcrito. Em primeiro lugar, o Código de 2002 jamais fez uma automática associação entre uma deficiência e a incapacidade civil. Muito pelo contrário... na versão primeira de seu artigo 3o, ficava claro que apenas seriam considerados absolutamente incapazes os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil, ao passo que, no artigo 4o estabelecia-se que seriam relativamente incapazes, apenas quanto a alguns atos ou a maneira de os exercer os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo. A regra, portanto, era a capacidade e a exceção, a incapacidade, que deveria ser demonstrada e apenas quando constatada a impossibilidade de discernimento, é que seria decretada. Nesse aspecto, portanto, a nova lei levou à supressão de dispositivos que não representavam uma “draconiana” regra.

Enigmaticamente, prossegue o dito parecer: “a curatela passa a considerar apenas os critérios de discernimento e capacidade de exprimir a vontade, deixando de considerar a existência de deficiência ou enfermidade.” É de indagar-se: o discernimento e a capacidade de exprimir vontade já não eram os traços decisivos que, aliados à deficiência ou enfermidade, justificavam o reconhecimento da incapacidade? Então por que açodadamente alterar-se o Código Civil?

Repita-se: não era a legislação civil que deixava de proteger o enfermo mental... Quem não o fazia era o Estado omisso e parte de nossa sociedade, que se mantinha presa a velhos preconceitos. Alterar, portanto, o regime das incapacidades da Lei Civil não implica, por si, qualquer benefício ao deficiente. Felizmente o Estatuto do Deficiente não se limitou à despropositada alteração do Código Civil e bem andou a enfatizar os direitos dos deficientes.

Repita-se:  nas intervenções feitas no Código Civil, a nova legislação mostrou-se, em certa medida prejudicial aos interesses dos próprios incapazes. Em outros aspectos, rompeu a lógica interna do Código, o que demandará esforço exegético do magistrado (quase transformando o juiz em legislador) para evitar distorções.


5 Confusão entre os termos incapacidade, interdição e curatela e seus limites.

O direito romano inaugurou o conceito de estado (status) civil. Tal instituto atravessou os séculos a ponto de ser incorporado pela pena dos mais abalizados juristas da modernidade. José de Oliveira Ascensão ensina:

76. Estados

I – Retomemos agora a noção de estado, que um pouco atrás anunciamos.

Os estados são posições ocupadas pela pessoa na vida social, de que resultam graduações da sua capacidade.

Nesta linha, os romanos distinguiram o status libertatis, o status civitatis e o status familiae. De facto, estas três situações condicionavam a capacidade.

Perdeu sentido hoje o status libertais, pois é idêntica a situação de todas as pessoas no que respeita à liberdade. Mas a situação de nacionalidade e a situação familiar continuam a influir na capacidade.”

 Assim, hodiernamente, ensina Paulo Thompson[10] acerca dos estados civis:

“Como referenciado acima, considera-se para a identificação do estado pessoal de cada indivíduo, sua qualificação jurídica resultante da posição ocupada no âmbito político, no familiar e no individual. Daí emergirá seu estado político (status civitatis), estado familiar (status familiae) e estado individual (status personalis).”

Temos, pois, que o estado da pessoa oscila entre o estado político (nacionais e estrangeiros), estado familiar (solteiro, casado, separado judicialmente, parente) e estado individual (menor ou maior, capaz ou incapaz, homem ou mulher).

  A própria etimologia da palavra indica que ela vem do latim “status, -us”, podendo ser compreendida, entre outros possíveis significados, como posição de pé, postura, posição, estado, situação, condição[11]. Assim, o estado reflete uma situação momentânea, que pode ser cambiada, mas que, instantaneamente situa o indivíduo no seio de seu grupo social e de sua família. 

Logo, do ponto de vista lógico, a interdição não deveria criar uma situação de incapacidade, mas tão somente declará-la. Aliás, na vigência dos Códigos de 1916 e 2002, muito se discutiu acerca dos efeitos da interdição: para corrente que entendemos mais consistente ela apenas declararia estado prévio do agente (sendo, pois, ação meramente declaratória), ao passo que outros entendiam que ela criava relações ou estado jurídico novo para o interditado (sendo, assim, constitutiva).

Oportuno que apreciemos as razões advogadas pelas duas correntes. Assim, Pontes de Miranda[12] afirma ser a natureza da ação de interdição constitutiva. Vejamos o que o leva a assim ponderar:

“Quanto à ação de interdição, surge o problema de se tratar de ação constitutiva negativa, ou de ação constitutiva positiva, ou de ação declarativa. O elemento declarativo é alto, porém não preponderante. O estado da pessoa é declarado e o que se constitui é a incapacitação.”

Maria Berenice Dias[13] ratifica a tese de Pontes de Miranda:

“Muito se debate sobre a natureza jurídica da sentença que declara a interdição, tema que diz com a validade dos atos praticados pelo interditando antes do ato sentencial. Considerar que a sentença é declaratória seria conferir-lhe eficácia ex tunc, ou seja, retroativa, surgindo a possibilidade de se reconhecer a nulidade dos atos realizados antes mesmo da decisão judicial. De outro lado, atribuir à sentença carga eficacial constitutiva lhe confere efeitos ex nunc, ou seja, efeitos a partir de sua prolação, e somente os atos realizados depois da sentença seriam nulos.

O fato de dizer a lei (CC 1.773) apenas que a sentença ‘declara’  a interdição não significa que esta seja a eficácia da ação. Indubitavelmente, a sentença é constitutiva, pois diz com o estado da pessoa. Ainda que a incapacidade preceda a sentença, só depois da manifestação judicial é que passa a produzir efeitos jurídicos: torna a pessoa incapacitada para os atos da vida civil. Como bem refere Pontes de Miranda, a sentença de interdição, sem bem que constitutiva, não cria a incapacidade.

Como a incapacidade não passa a existir a paritr da sentença, possível a propositura de ação anulatória dos atos praticados em momento anterior. Quer para assegurar a segurança das relações jurídicas, quer para prestigiar o princípio da boa-fé, somente em casos muito excepcionais cabe a desconstituição de atos pretéritos.”

Por outro lado, Ernane Fidélis dos Santos[14] afirma que a interdição declara estado preexistente, “apenas fixando termo, a partir do qual os efeitos são revelados diversamente.” Carlos Roberto Gonçalves[15] entende ser este o posicionamento predominante. Vejamos:

 “Embora haja controvérsia a respeito da natureza jurídica da sentença que decreta a interdição, tem prevalecido o entendimento de que não é constitutiva, por não criar o estado de incapacidade, mas apenas declaratória da existência de uma situação. Tem, portanto, eficácia ex tunc. Como a incapacidade preexiste, entende-se possível intentar ação anulatória dos atos praticados anteriormente à sentença, devendo-se, no entanto, provar a incapacidade àquela época.

(...)

Como é a insanidade e não a sentença de interdição que determina a incapacidade, sustentam alguns que, estando ela provada, é sempre nulo o ato praticado pelo incapaz, antes da interdição. Outra corrente, porém inspirada no direito francês, entende que deve ser respeitado o direito do terceiro de boa-fé, que contrata com o privado do necessário discernimento sem saber das suas deficiências psíquicas. Para essa corrente somente é nulo o ato praticado pelo amental se era notório o estado de loucura, isto é, de conhecimento público.”

A jurisprudência nacional mostra-se igualmente dividida quanto ao tema. Vejamos o voto proferido no julgamento da Apelação Cível 70040298879 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul[16]:

“Em que pese não ter a sentença de interdição eficácia ‘ex tunc’, por possuir natureza constitutiva positiva, a teor do artigo 1.188 do CPC, nada obsta que se reconheça a nulidade dos negócios jurídicos firmados anteriormente, comprovada que a incapacidade adveio antes da sua decretação, já por conseqüência do acidente sofrido.”

Em sentido contrário, há, entre outros, o julgado proferido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

“A sentença de interdição possui eficácia predominantemente declaratória. Todavia, a retroatividade de seus efeitos ex tunc revela-se sob dois aspectos: no tocante à declaração de incapacidade em si há eficácia ex tunc imediata e irrestrita; em relação à anulação dos atos praticados anteriormente a sentença há eficácia ex tunc condicionada à ação de invalidação e à prova da existência da incapacidade quando da realização do negócio, conforme entendeu a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, in verbis: (...)”

A razão de ser de tal discussão cinge-se a saber se os atos pretéritos, portanto antes da interdição, praticados pelos incapazes podem ser anulados. Como podemos depreender dos dois julgados transcritos,  tanto o primeiro (que entende ser constitutiva a sentença), quanto o segundo (que pugna ser declaratória) acatam a possibilidade de desfazimento dos negócios anteriores, desde que por meio de ações anulatórias específicas para cada ato impugnado. Logo, na prática, adeptos das duas correntes chegam à mesma conclusão.

Controvérsias à parte, ao menos segundo a redação original do Código de 2002, tínhamos que os efeitos da sentença de interdição eram predominantemente declaratórios, pois objetiva esta ação principalmente declarar que uma causa preexistente incapacitou o curatelado. No entanto, quanto ao desfazimento dos negócios anteriores, concordávamos com a teoria de que, mesmo preexistente a incapacidade, haveria que se resguardar o princípio da boa-fé e da segurança nas relações jurídicas, por meio dos quais, se terceiro entabulou negócio sem que fosse possível perceber, segundo parâmetros aplicáveis a pessoas medianamente diligentes, a causa incapacitante daquele que com ele celebrou tais avenças, não há razão para que se as desfaçam. Em linhas gerais, acatávamos a argumentação expendida exposta por Orlando Gomes[17], ao afirmar:

“Admite-se ainda a existência de uma incapacidade natural.

Tal é a incapacidade de entender e de querer, que não está judicialmente declarada.

Verifica-se, com maior frequência, quando o insano mental não está interditado, quer porque sua enfermidade ainda não foi reconhecida, quer porque o seu processo de interdição não foi instaurado. A doutrina aponta um paralelismo constante entre a capacidade legal de agir e a capacidade natural, e procura superar, desse modo, o problema da coordenação entre os regimes diversos a que se sujeita. A coincidência existe na medida em que a incapacidade legal subiste nas hipóteses nas quais há normalmente incapacidade de entender e de querer, mas a capacidade natural pode faltar sem haver incapacidade legal, como acontece quando o doente mental não está interditado. Quando a incapacidade natural não coincide com a incapacidade legal, o interesse de proteger o incapaz – permitindo-lhe anular o contrato – choca-se com o interesse da outra parte que ignorava estar a tratar com um insano mental, sendo necessário, para resolver o conflito, legitimar a faculdade de pedir a anulação com o preenchimento de três requisitos, exigidos na lei italiana e aceitos por alguns doutrinadores de outros países:

a)a incapacidade de entender ou querer;

b)a demonstração de que o agente sofreu grave prejuízo;

c)a má-fé do outro contratante.”

Os requisitos abraçados por Orlando Gomes, como mencionado, encontravam guarida no artigo 428 do Código Civil da Itália[18]:

“Art. 428 Atos realizados por pessoa incapaz de entender ou de querer

Os atos realizados por pessoa que se prove estar, por qualquer causa, ainda que transitória, incapaz de entender ou de querer, no momento no qual os atos foram realizados, embora não seja interditada, podem ser anulados a seu requerimento ou de seus herdeiros ou cessionários, caso se lhe resulte um grave prejuízo (1425 e seguintes).

A anulação dos contratos não pode ser pronunciada senão quando o prejuízo que se tenha decorrido, ou se possa decorrer em relação ao incapaz de entender ou de querer, resultar da má-fé do outro contratante (1425).

A ação prescreve no prazo de cinco anos do dia em cujo ato se realizou o contrato (2953)

Ressalvam-se as disposições legais em sentido contrário (120, 591, 775,1195; att. 130).”

Assim, um dos principais efeitos da interdição seria a oponibilidade. erga omnes do estado de incapacidade do interditado, efeito que se alcançaria em plenitude com o registro da respectiva sentença no Cartório do Registro de Pessoas Naturais. Demandas anulatórias futuras, acerca de atos ou negócios praticados solitariamente pelo curatelado, dispensariam provas outras de sua incapacidade. Havendo a intenção, porém, de se desconstituir avença celebrada antes de interditado o agente, seria necessário que se provasse já estar o interessado acometido do mal incapacitante ao celebrar o pacto contestado e que tal estado fosse perceptível aos olhos de qualquer agente medianamente diligente. Complementando o raciocínio encetado, Antônio Luís Câmara Leal adverte[19]:

“Nem seria razoável fazer a incapacidade e seus efeitos depender da interdição, quando esta, confiada a determinados parentes do psicopata e do Ministério Público, pode ser descuidade e omitida, não sendo justo que o incapaz venha a sofrer as consequencias de uma desídia para a qual não tenha podido concorrer e contra a qual não dispunha de meios para impedir.”

O sistema anterior parecia ser dotado de incontrastável lógica. Havia um encadeamento plausível entre os institutos: se incapaz o agente, a interdição declararia seu estado pretérito, para então se lhe nomear um curador. Com a alteração legislativa, a pessoa com deficiência mental ou intelectual não pode ser considerada incapaz, e nem poderá mais “ser interditada”. No lugar da interdição será movida ação com o fito não de se declarar qualquer estado, mas de excepcionalmente, repita-se, mesmo sendo plenamente capaz o deficiente, de se lhe nomear um curador. Qual a lógica disso?

Repita-se: no passado, os negócios praticados com alguém dotado de severos problemas psiquiátricos era nulo, estivesse ou não interditado. Com o novo regime, sequer há previsão de nulidade para os negócios jurídicos praticados pelo enfermo a quem ainda não se deferiu um curador. Ele estará, por ser considerado plenamente capaz, até que se lhe nomeiem um curador, entregue à própria sorte e vinculado a negócios que tenha celebrado com pessoas inescrupulosas. Em resumo: a nomeação de curador não decorre mais do estado incapacitante do agente. Passa a ter caráter nitidamente constitutivo e só surtirá efeitos para o futuro, deixando o passado do deficiente, justamente ele que precisa de mais ajuda, em perigoso limbo jurídico.

Questões outras se colocam quando constatamos que as funções do curador estão adstritas ao que determina o artigo 85 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, a saber:

“Art. 85.  A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial.

§ 1o  A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.”

Em outras palavras, o agente por mais severa que seja sua deficiência mental poderá casar-se, repita-se tenha ou não discernimento para praticar o ato, transformando, ipso facto, o cônjuge em seu herdeiro necessário e meeiro.

A nova lei, repita-se, buscou solução inversa à adotada na legislação revogada. O casamento, após a vigência do Estatuto da Pessoa com Deficiência, estará sempre permitido, seja isso ou não um bem para o deficiente (mesmo que o caso concreto indique que o deficiente esteja sendo exposto a pessoas inescrupulosas, que desejam participar de seu patrimônio, sem, de fato, amá-lo). O pior é que a nova lei se mostra contraditória: no parágrafo primeiro do artigo 85, ela taxativamente afirma que a definição da curatela não alcança o direito ao... matrimônio, ao passo que, no artigo 114, ela altera a redação original do parágrafo segundo do artigo 1550, a fim de permitir que a pessoa com deficiência mental ou intelectual em idade núbia possa contrair matrimônio, expressando sua vontade diretamente ou por meio de seu responsável ou do...curador!!! É de indagar-se: como se falar em responsável pelo deficiente se ele não é mais incapaz?? E como pensar na manifestação de vontade pelo curador se, na definição de curatela, não se engloba o direito ao matrimônio? Há algo muito mal dimensionado na norma analisada...

E como ocorria no regime anterior? Entendemos que as coisas se davam de forma um pouco mais lógica. Tomemos o exemplo dos portadores de síndrome de down. Eles, após muitos anos de luta e de políticas de inclusão, têm demonstrado possuir o discernimento necessário para compreender a importância do matrimônio. Assim, o grau de incapacidade do portador de síndrome de down, como, de resto, de qualquer outra deficiência, deveria ser apurado caso a caso, no próprio processo de interdição. Nesse momento deveriam ser esclarecidos quais os limites de sua incapacidade, ou seja, em que hipóteses o incapaz necessitaria ou não da assistência do curador, inclusive para casar. Certamente o matrimônio não figuraria entre as restrições impostas ao interditado, se ele demonstrasse estar apto a compreender a importância do ato.

Achamos, em realidade, tão grave quanto generalizar a vedação ao casamento é  permitir que sempre ocorra... será que isso inexoravelmente representará o melhor interesse do incapaz? Será que alçar o cônjuge ao grau de herdeiro necessário e meeiro do deficiente não poderia expô-lo indevidamente à vilania de pessoas má intencionadas?

Não se pense, porém, que a intervenção legislativa se esgota aí, quanto aos problemas que ocasiona. Outros igualmente graves podem mostrar que a nova lei representou, em determinados aspectos, um retrocesso para o deficiente.

Sobre os autores
Marlon Tomazette

procurador do Distrito Federal, advogado em Brasília (DF), professor de Direito do UniCEUB e da Escola Superior de Advocacia do Distrito Federal

Rogério Andrade Cavalcanti Araújo

Procurador do Distrito Federal Advogado Professor de Direito Civil

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOMAZETTE, Marlon; ARAÚJO, Rogério Andrade Cavalcanti. Crítica à nova sistemática da incapacidade de fato segundo a Lei 13.146/15:: Estatuto da Pessoa com Deficiência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4449, 6 set. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42271. Acesso em: 22 nov. 2024.

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