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As influências do autoritarismo penal norte-americano sobre os sistemas penal e processual penal da América Latina

Agenda 20/11/2015 às 13:28

O populismo penal republicano dos Estados Unidos, o direito penal máximo e o processo penal inquisitório contribuem para a redução de índices de criminalidade na América Latina?

Ultrapassadas a segunda guerra mundial e a guerra fria, o capital sofreu intensas influências com o advento do fenômeno da globalização. Pode-se afirmar que os interesses desse capital globalizado, no que tange à predominância especulativa, passaram a ser apoiados substancialmente pela administração republicana dos Estados Unidos, que ganhou destaque hegemônico com a sucumbência europeia no contexto da primeira guerra mundial.

Nos anos 20 do século passado, a afluência de capital e de investimentos econômicos para o território do "Tio Sam" acabou por angariar o afluxo de imigrantes. Ao final da década, a nefasta crise de 1929 deu lugar ao pacto do New Deal, bem como diversos fatos históricos posteriores que se sucederam alçaram os Estados Unidos à categoria de potência hegemônica inconteste.

Quanto ao sistema penal norte-americano, algumas considerações merecem ressalva. Em 1972, acreditou-se que a pena capital seria abolida com a declaração de sua inconstitucionalidade pela Corte Suprema, mediante deliberação que concluiu pela manifesta seletividade da reprimenda penal em comento. Os índices de encarceramento permaneciam estáveis desde o século XIX e a criminalidade não se propagava irremediavelmente.

Tal quadro começou a modificar-se substancialmente ao final dos anos 20, com um aumento significativo dos índices de aprisionamento e com o superdimensionamento do sistema penal, que mantinha milhões de pessoas encarceradas ou controladas através dos mecanismos de parole ou probation. A outros milhões era proporcionado emprego, fazendo com que esse sistema penal funcionasse como verdadeiro fator de redução das taxas de "unemployment" que grassavam em meio à crise de 29, numa otimização velada da lógica repressiva e punitivista.

Aliado a esse inchaço da máquina penal estatal, foi restabelecida a pena de morte pelos juízes republicanos que passaram a integrar a Corte Suprema por desígnio dos presidentes deste partido, em especial de Nixon, de odiosa lembrança. Ademais, foi elaborada uma legislação penal que previa a aplicação da pena de prisão perpétua àquele que havia cometido três ou mais delitos, no que se convencionou chamar de "three strikes out", em manifesta violação ao princípio da proporcionalidade.

Neste diapasão, verifica-se que o discurso penal republicano, desde os idos de 1980, baseia-se no simplismo e no avanço das medidas penais de contenção, ignorando os estudos doutrinários e científicos que apontavam para soluções penais diversas, lastreadas no garantismo e na efetivação do Estado Democrático de Direito. Logo, os políticos prometiam mais penas para prover mais segurança; redução das garantias penais e processuas penais e aprimoramento de uma política criminal de tolerância zero.

O fato é que, desde a implosão soviética e a derrocada do comunismo com a queda do muro de Berlim, os Estados Unidos, através de seu sistema penal, procuram, desesperadamente, por um inimigo sobre o qual deverão recair todas as medidas repressivas articuladas pelo Estado. Em 11 de setembro de 2001, esse sistema encontrou, inegavelmente, um inimigo de certa substância, o terrorismo, razão pela qual pretendeu instaurar uma guerra contra o Iraque como uma medida predominantemente "preventiva".

É evidente que esse autoritarismo assinala, definitivamente, uma deterioração cultural norte-americana, através de um perigoso abandono das matrizes fundadoras da democracia, que perdem espaço para a adoção de legislações penais e processuais penais autocráticas e policialescas. Mas quais seriam as influências desse autoritarismo penal norte-americano sobre as engrenagens penais e processuas penais latino-americanas?

Ora, como a comunicação em massa alcançou o seu maior grau de globalização, o discurso do autoritarismo norte-americano é o mais difundido do mundo, o chamado discurso "cool". Neste contexto, seu simplismo popularesco tem sido reproduzido em todas as partes do mundo, entretanto, com maior êxito na América Latina, dada a sua patente precariedade institucional. Esse autoritarismo penal tem causado profundos impactos, principalmente, nos sistemas prisionais latino-americanos, em que 3/4 dos presos estão submetidos a medidas de contenção. Não porque são condenados, mas, tão somente, pelo fato de estarem sendo processados criminalmente.

Em termos mais claros, aproximadamente 3/4 dos presos latino-americanos estão submetidos a medidas cautelares prisionais (no Brasil, prisão preventiva ou prisão temporária). Desses, quase 1/3 será absolvido, isto é, em 1/4 dos casos, os suspeitos são condenados definitivamente e são obrigados a cumprir apenas o resto da pena; na metade do total de casos, constata-se que, ainda que haja a condenação, o indivíduo já terá cumprido sua pena por força das prisões cautelares a que se submeteu durante todo o andamento processual.

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Em síntese, é solar que o poder punitivo, na América Latina, é exercido mediante medidas de contenção. Trata-se de um Direito Penal autoritário, um Direito Penal do autor, não do fato, que tem como alicerce a periculosidade presumida daqueles que foram criminalizados pela parcela da sociedade que detém o poder econômico. Infelizmente, na realidade penal latino-americana, esse poder econômico tem ditado as regras do jogo e individualizado os inimigos hostis do sistema de poder estabelecido. Afinal, o perfil do preso latino-americano não costuma divergir substancialmente: são os negros e pobres, que não tiveram acesso à educação básica, que ocupam, em grande parte, os espaços carcerários.

Assim entende Zaffaroni:

O discurso "cool" se insere na América Latina em sistemas penais invertidos, com prisões superlotadas de gente sem condenação, onde o aumento de escalas penais não representa penas mais longas, mas sim mais prisioneiros preventivos (porque se impede o desencarceramento) e o direito à execução penal é, em grande medida, uma utopia, inclusive formalmente aplicável a uma minoria insignificante de presos.

Neste contexto, o discurso autoritário cool latino-americano participa do simplismo de sua matriz norte-americana, carecendo igualmente de qualquer respaldo acadêmico, e se orgulha disso, pois essa publicidade popularesca denigre constantemente a opinião técnica jurídica e criminológica, obrigando os operadores políticos a assumir idêntica postura de desprezo.

Por todos esses meios pouco éticos ou diretamente criminosos, vende-se a ilusão de que se obterá mais segurança urbana contra o delito comum sancionando leis que reprimam acima de qualquer medida os raros vulneráveis e marginalizados tomados individualmente e aumentando a arbitrariedade policial, legitimando direta ou indiretamente todo gênero de violência, inclusive contra quem contesta o discurso publicitário.

Nesta senda, como produto inexorável do autoritarismo cool contemporâneo, resultado direto da difusão midiática do sistema penal dos Estados Unidos, a América Latina tem proporcionado um tratamento penal seletivo e predominantemente repressivo às classes sociais subalternas, extraindo delas os criminalizados e etiquetados, com arrimo no discurso vingativo dos meios de comunicação de massa.

Neste sentido, leia-se, ainda de acordo com as lições de Zaffaroni:

Os tempos de autoritarismo não são de resignação nem de pessimismo, mas sim de prova para o direito penal. Não esqueçamos que nossos próceres não tiveram vidas tranquilas e, justamente por isso, Spee correu o risco de acabar na fogueira, Beccaria publicou seu livro anônimo, Pagano foi fuzilado, Marat morreu apunhalado na banheira, Rossi esfaqueado, circulou a lenda de que Feuerbach foi morto por envenenamento, Romagnosi foi processado, Carmignani condenado ao desterro, Mello Freire denunciado à Inquisição, Lardizabal defenestrado e ignorado. Nada disso foi gratuito, mas deveu-se ao fato de que nenhum deles se curvou ao Zeitgeist.

A academia glorifica hoje a memória de muitos deles, embora esqueça injustamente outros, mas, por outro lado, não conhecemos nenhuma universidade, departamento ou instituto que leve o nome de Torquemada.

Destarte, o Direito Penal máximo e o processo penal inquisitório em nada têm a contribuir para a redução de índices de criminalidade. Nosso entendimento é no sentido de que quanto mais avança o Estado Policialesco, mais fragilizado se torna o Estado Democrático de Direito e mais anômica e violenta a sociedade. A criminalização desenfreada e a utilização do Direito Penal como ferramenta estatal de combate aos problemas de ordens social e cultural não se afiguram como as melhores alternativas a serem empreendidas. Do contrário, apenas incrementam o fenômeno delituoso em detrimento da concretização e efetivação dos direitos humanos e fundamentais.

Sobre o autor
João Pedro Guerra

Advogado Criminalista; Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal; apoiador filiado ao LEAP-Brasil (Law Enforcement Against Prohibition - Agentes da Lei Contra a Proibição); Membro da União dos Advogados Criminalistas (UNACRIM); Membro do Instituto dos Advogados de Pernambuco (IAP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUERRA, João Pedro. As influências do autoritarismo penal norte-americano sobre os sistemas penal e processual penal da América Latina. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4524, 20 nov. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42914. Acesso em: 24 nov. 2024.

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