No dia 31 de outubro de 2002, pouco depois da meia-noite, Suzane, de 19 anos, entrou em casa, acendeu a luz, conferiu se os pais estavam dormindo e deu carta branca ao namorado, Daniel Cravinhos, de 21 anos, e o irmão dele, Cristian, de 26. Os irmãos Cravinhos mataram Marísia eAlbert von Richthofen (pais de Suzane) com pancadas de barras de ferro na cabeça, enquanto o casal dormia. Simularam um latrocínio, espalharam ob-jetos e papéis pela casa e levaram todo o dinheiro e jóias que conseguiram encontrar. Após a barbárie, o casal de namorados partiu para a melhor suite de um motel da Zona Sul de São Paulo.
(...)
Enquanto aguardava o julgamento em liberdade, Suzane concedeu uma entrevista ao programa Fantástico (Rede Globo), exibido no dia 9 de abril de 2006. Na ocasião, ela estava de cabelos curtos, trajava uma camiseta com a estampa da Minnie e pantufas decoradas com coelhinhos. Na primeira parte da entrevista, ela brincou com periquitos, ensaiou choros teatrais por 11 vezes, segurou nas mãos de seu tutor (Denival Barni) e discursou como uma menina inocente e "quase débil". Cenário perfeito para suavizar a imagem de mentora de um crime cruel. A farsa foi descoberta na segunda sessão, em Itirapina, a 200 quilómetros de São Paulo. Com o microfone aberto, foi possível ouvir os advogados Mário Sérgio de Oliveira e Denival Barni a orientarem a fingir que chorava. "Chora", pede Barni à Suzane. "Começa a chorar e fala: 'Não quero falar mais!'", diz a voz do outro. Ela responde: "Não vou conseguir." Suzane foi desmascarada e sua prisão foi decretada no dia seguinte. [1]
A Justiça brasileira concedeu a Suzane Richthofen o regime semiaberto. A notícia, com certeza, causou indignações a muitos brasileiros que se sentem, cada vez mais, encurralados pela violência diária. "A Justiça é amiga dos bandidos!", já escutei muito isto, nas ruas, nas filas de supermercados, nos restaurantes.
Na época, a imprensa brasileira noticiou, com exclusividade, a reviravolta no caso, de filha abalada para a criminosa [psicopata]. Suzana foi estampada nos jornais e revistas como um dos seres humanos mais perversos do Brasil. Na época do julgamento, os advogados de defesa de Suzane von Richthofe usaram as teses de que ela fora dominada psiquicamente pelo namorado.
Daniel Cravinhos, na época, o namorado de Suzane seria o algoz do crime, já Suzane apenas uma vítima. As teses dos advogados de defesa de Suzane foram:
- Suzane Richthofen era mais jovens do que o namorado;
- Perda da virgindade para o namorado, o que configuraria certa dependência psíquica ao namorado;
- A pressão psicológica dos pais de Suzane para ela terminar o namoro;
- Uso de maconha e outros entorpecentes, por indução do namorado.
Tais teses dos advogados de defesa tinham como objeto o transtorno de personalidade do tipo dependente. As teses, se aceitas, iriam livrar Suzane de processo jurídico quanto à sua saúde mental, o que levaria a outro desfecho.
O que corroborou para as teses dos advogados fora o fato de que Suzane jamais por qualquer avaliação psicológica sobre sua real personalidade. Se Suzane tivesse sido avaliada, o desfecho do julgamento seria bem diferente. Se Suzane fosse avaliada por perito para verificação de periculosidade e das condições mentais dela, de vítima - por apresentar transtorno de personalidade dependente - passaria a ser algoz. E isto comprometeria as teses dos advogados, e o povo brasileiro, através dos noticiários sobre o caso, ainda mais sentiriam raiva de Suzane.
As teses serviram justamente para amenizar as raivas que surgissem no juri ao longo do julgamento, pois é impensável, inadmissível que uma filha, mesmo sob influência de estranhos, venha a matar os próprios genitores - e mesmo que ela não desferisse os golpes, mas permitiu o crime. Talvez, o componente que mais influenciou na decisão do juri fora o uso de maconha e outros entorpecentes por Suzana, mas induzido pelo namorado.
Sob efeito da maconha e de outros entorpecentes, não haveria a possibilidade de Suzana distinguir a fantasia da realidade, não teria condições de discernir sobre seus atos, pois do contrário, caso ela estivesse sem efeito de droga, logicamente ela jamais teria cometido o crime. Fica a minha observação quanto à maconha. Se ela tem a capacidade de mudar a personalidade, ou melhor, de retirar o crivo do discernimento, tal discussão deve ser levantada sob o aspecto da legalização da maconha para uso recreativo. Se a teses sobre a maconha serviu para atenuar a imagem grotesca que a população teve de Suzane, imagine quantos se servirão desta tese quando cometerem crimes mesmo sendo a maconha legalizada? Merece elucidações não intempestivas diante do clamor de algumas indivíduos sobre a legalização da maconha para uso recreativo.
Houve divergências quanto o tipo de personalidade de Suzana. Para a psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva, Suzana é uma psicopata, para outros profissionais Suzane foi vítima pela sua imaturidade psicológica. [2] Seja como for, o futuro dirá quem é Suzane, pois não se pode ser quem não é.
A mídia e sua influência
Casos como de Suzane tem estampado os noticiários, as telenovelas também têm colocado em discussão os comportamentos de pessoas [personagens] consideradas psicopatas. E a influência - ou seria evidência? - deste tipo de personalidade tem gerado acusações calorosas diante de crimes grotesco. Qualquer assassinato é visto como ação de psicopata. Para os leigos no assunto, o psicopata é um serial Killer, ou seja, suas ações são mortes por esquartejamento, incineração, envenenamento etc. Contudo, não é sempre que assim age os psicopatas. Podem agir silenciosamente, sem provocar mortes visíveis, de forma que suas ações são consideradas "normais".
Chantagens emocionais, corrupções ativa e passiva, improbidades administrativas, médicos que operam sem necessidade real, proprietário de restaurante que usa alimento estragado no preparo de alimentos - é só colocar especiarias para disfarçar o sabor -, patrões que chantageiam seus empregados, mulheres que prometem se suicidar caso o homem se sua vida a largue. São vários casos desapercebidos em nossa sociedade os quais não chamam a atenção de ninguém. Isso não que dizer, pelos exemplos neste parágrafo, que tais comportamentos sejam exclusivamente de psicopatas. Todavia, como cerne deste texto, o alerta de que muitos dos problemas contemporâneos em nossa sociedade se deve a precariedade dos valores humanísticos.
Mesmo que uma pessoa nasça com características de sociopatia, ainda assim, com amor familiar e ambiente social regrado nos direitos humanos, pouquíssimas chance terá esta pessoa de agir com crueldade.[3] E mesmo não possuindo características de sociopatia - quando há ambiente social regrado pela competividade voraz, pela valorização do ego, pela concepção teórica de que os homens são melhores do que as mulheres e vice-versa, pelas discriminações e perseguições religiosas, políticas, pelas políticas de governo as quais mantêm as desigualdades sociais - a personalidade pode ser moldada diante da pressão exercida pelos acontecimentos contumazes. Também se tem a influência das publicidades as quais invocam a supervalorização do ego pelo consumismo, e do consumismo a meritocracia [status social], o impingir da figura feminina como símbolo sexual - muito comum nos comerciais de bebidas alcoólicas etc.
A humanidade vive a Era do Momento. Tudo se resume ao momento:
- Amor;
- Paixão;
- Indumentária;
- Habitação;
- Eletroeletrônicos.
Ou seja, ostentar para ser [alguém], para ser parte [instinto de grupo] da sociedade em que vive. E quanto maior o grau de diferença social, mais as publicidades insuflam o complexo de inferioridade. Na tormenta diária, resta ao indivíduo buscar seu reconhecimento na sociedade que tanto lhe cobra pelo que tem, e não pelo que faz na sociedade. Esta inversão de valores, de ter para ser, está institucionalizando um novo, se assim posso dizer, padrão de comportamento. Até as crianças são alvos das publicidades que imperam a supervalorização da aparência. As qualidades de "destemido", "corajoso", "arrojado", "incansável", "belo", entre outros adjetivos, consagram a exterioridade. Na cobrança diária da existência do super-homem ou supermulher, nada "melhor" do que, como resultado, estimulantes, anabolizantes, cremes de embelezamento ou "rejuvenescimento", cirurgias plásticas [estéticas].
Pode parecer, no parágrafo acima, aos olhos rápidos na leitura, que tal assunto está destituído de relação com o caso de Suzane Richthofen, mas não está. Por exemplo, no livro The Spirit Level, os autores consideram as desigualdades sociais fatores equidistantes nos relacionamentos humanos e geradores de diversos problemas sociais: doença mental, toxicodependência, obesidade, aumento de prisões.
O namorado queria o patrimônio dos pais, a qualquer custo. Muitos dos assassinatos atuais são banais: roubo de moto, de celular etc. Em muitos casos, o simples ato de roubar para se ter algum pertence de valor [status positivo]. Não se trata de roubo para mitigar a fome, mas ostentar que conseguiu pelo meio da astúcia e violência. E isto é visível nas redes sociais cujos autores dos roubos vangloriam-se de suas bravuras, coragens, por terem enfrentado o dono do objeto, a sociedade e as autoridades públicas.
Numa sociedade desigual, concomitantemente com a supervalorização do ego e do status [consumismo], há produção diária de neuroses coletivas. O decurso da vida em si nada vale, o "hoje", o "agora" é a vida existencial. As desigualdades sociais, concordo com os idealizadores do livro The Spirit Level, criaram padrões de comportamentos capazes de fazer o ser humano odiar o próprio ser humano, pela diferença de classe social. Não pela simples diferença socioeconômica, pela carga negativa gerada. Para as pessoas de classe alta, os cidadãos de classe baixa são invejosos, já para de classe baixa os de classe alta são esnobes. A luta de classes se faz com ideologias construídas pelas concepções teóricas decorridas das desigualdades sociais, não pela desigualdade, mas pelo simbolismo que configuram as diferenças sociais. As diferenças de costumes geram ojerizas de ambas as partes, num primeiro contato pessoal.
No caso do Brasil, com suas abissais diferenças sociais, os crimes diversos são oriundos de concepções teóricas as quais criaram tipos de comportamentos e personalidades. As discriminações tão comuns em nossos dias são produtos das discriminações geradas pelas desigualdades sociais. Complexo tema merece aprofundamento muito mais complexo, o que não caberia neste texto. Entretanto, diante dos problemas diversos em nosso país, não é inoportuno categorizar que sem políticas públicas para diminuir as desigualdades sociais, mais e mais transtornos de personalidade surgiram em nossa sociedade. As consequências serão bem piores do que as atuais. E a vida não passará de tormentosa existência.
Notas:
[1] - Mentes Perigosas - O Psicopata Mora ao Lado Autora: Ana Beatriz Barbosa Silva Editora: FONTANAR Gênero: Psiquiatria/Psicologia Páginas: 213
[2] - Psicólogos e psiquiatras divergem sobre personalidade de Suzane von Richthofen
[3] - Pesquisador se descobre psicopata ao analisar o próprio cérebro