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Construindo a relação entre o Direito da Criança e do Adolescente e o Direito Orçamentário

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Agenda 27/11/2003 às 00:00

8. Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente

Através de uma bem-sucedida e coordenada política de atendimento é que se pode esperar a efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, derivando daí a sua importância. Sob certo ângulo, a política de atendimento é a própria concretização de direitos na medida em que os operacionaliza, seja através de ações que os promovam, seja através da proteção de direitos que podem ser violados.

O Estatuto da Criança e do Adolescente concebeu uma política de atendimento direcionada à infância e à juventude composta por um conjunto de ações governamentais e não governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Previu linhas de ação [37] e diretrizes que, respectivamente, definem-lhe prioridades e a estruturam.

Uma das diretrizes da política de atendimento voltada às crianças e aos adolescentes é a manutenção de fundos nacional, estaduais e municipais vinculados aos respectivos conselhos dos direitos da criança e do adolescente. [38]

Assim, ao lado da municipalização do atendimento, da descentralização político-administrativa e da mobilização financeira, o legislador do ECA também concebeu fundos de manutenção de direitos, vistos como um instrumento para que a sociedade, através dos conselhos de direitos, defina ações e programas.

A descentralização da administração financeira caracteriza os fundos especiais, definidos no artigo 71 da Lei 4.320/64, como aqueles que contém "o produto das receitas especificadas que por lei se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços, facultando a adoção de normas peculiares de aplicação".

Advém daí que as características principais desse fundo são:

a) as receitas do fundo são determinadas pela lei que as especifica. Isso significa que não se pode vincular determinadas receitas sem que haja previsão legal.

Especificamente, em relação ao fundo da criança e do adolescente, tais receitas podem ser obtidas através de:

a.1.) destinação orçamentária efetuada pelo Executivo ou emenda parlamentar.

a.2.) doações de contribuintes que poderão ser deduzidas no imposto de renda e proventos de qualquer natureza à ocasião da declaração do imposto.

As doações feitas aos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente - nacional, estaduais e municipais-, devidamente comprovadas, devem obedecer os limites de 10% (dez por cento) da renda bruta para pessoa física e 5% da renda bruta para pessoa jurídica. O procedimento disciplinado no artigo 260 do ECA, supõe que os conselhos de direitos estejam estruturados para receber as doações dos contribuintes, dando-lhes comprovação da doação efetuada em conformidade à regulamentação estabelecida pelo Departamento da Receita Federal, do Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento. Tudo para que, quando da declaração do imposto sobre a renda, a doação realizada possa ser deduzida. Ressalve-se que as deduções efetuadas pelo contribuintes não se sujeitam a outros limites estabelecidos na legislação do imposto de renda, tampouco reduzem ou excluem outros benefícios ou abatimentos e deduções em vigor.

a.3.) doação efetuada pelos contribuintes do imposto de renda acima dos limites previstos no artigo 260 do ECA ou por aqueles que não são contribuintes do imposto de renda pode ser vista como terceira modalidade de constituição das receitas do fundo de manutenção da criança e do adolescente. Tal modalidade de doação é possível, contudo, não há que se falar em dedução do quantum pago.

a.4.) multas previstas nos artigos 213, 245-258, ECA. O artigo 214, ECA preceitua que "os valores das multas reverterão ao fundo gerido pelo Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente do respectivo município". Os valores de tais multas devem ser recolhidas até 30 (trinta) dias após o trânsito em julgado da decisão, sujeitas, após esse prazo, a execução efetuada pelo Ministério Público.

A inexistência do Fundo de Direitos da Criança e do Adolescente não impede a arrecadação das multas que, contudo, deverão ser depositadas em estabelecimento oficial de crédito, em conta com correção monetária.

b) a vinculação da receita do fundo à realização dos objetivos e serviços destinados pela lei. Isto significa que os recursos do fundo são vinculados, exclusivamente, aos programas e às ações voltadas às crianças e aos adolescentes, cabendo a definição dos gastos aos Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional de Direitos que fixarão critérios de utilização, através de planos de aplicação das doações subsidiadas e de demais receitas, conforme redação do § 2º, do artigo 260 do ECA.

c) a adoção, facultativamente, de normas peculiares de aplicação dos recursos do fundo. Um exemplo disso é a parte final do § 2º do artigo 260, onde se preceitua que um dos itens de despesa do fundo da criança é a aplicação percentual para o incentivo e o acolhimento de crianças e adolescentes, órfão ou abandonado sob a forma de guarda, na forma do disposto no art. 227, § 3º, III, da Constituição Federal.

d) a fiscalização dos recursos do fundo estão submetidos ao controle interno e ao externo. No primeiro caso, cabe ao Ministério Público determinar em cada comarca a forma de fiscalização da aplicação dos recursos, por sua vez, cabe ao Tribunal de Contas a responsabilidade do controle externo das contas de fundo.

e) criação em concordância com o artigo 167, IX, CF que proíbe a instituição de fundos de qualquer natureza sem prévia autorização legislativa. Tanto no plano nacional, quanto nos estaduais ou municipais, é imperativo que haja lei que crie o fundo.

f) os beneficiários do fundo não têm a titularidade para exigir o pagamento dos recursos que o compõem. [39]

g) os fundos da criança e do adolescente não se subordinam ao princípio da unidade de tesouraria (art. 56, Lei 4.320/64), isto é, os seus recursos podem ser mantidos fora da "caixa única do governo. A suspeita de que tais fundos pudessem ser prejudiciais à administração financeira, pela pulverização dos recursos que provocam e pela manutenção de contas bancárias à margem da caixa única, é afastada pela legalidade que envolve os objetivos específicos e relevantes das despesas do fundo da criança e do adolescente bem como da possibilidade de angariar receitas extraorçamentárias". [40]

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Devido à imensa possibilidade de captação de recursos vinculados às despesas direcionadas à infância e à juventude, seria razoável supor que tais fundos fossem criados e operacionalizados, rápida e entusiasticamente. Lamentavelmente, a criação e a operacionalização das possibilidades oferecidas pelo fundo não tem sido exploradas como se deveria. Talvez por desconhecimento de tais possibilidades, talvez ainda por existir um ranço no Poder Executivo em perceber negativamente a ação e o controle da sociedade civil sobre parcelas de poder que, originariamente, seriam suas atribuições.

A atribuição para a elaboração da lei que institui os fundos é tanto do legislativo, quanto do executivo. Como o conteúdo do referido projeto não envolve o aumento de despesa para o Executivo, tal proposição pode ser apresentada tanto pelo chefe do Poder Executivo, quanto pelos parlamentares.

É possível, todavia, que nenhum dos poderes apresente o projeto de criação dos fundos, fato que, sem dúvida, representaria perda de receita sobretudo nos planos estaduais e municipais onde aquela pode ser obtida mediante doações de pessoas físicas e jurídicas. Nesse caso, como não é possível que se obrigue o legislativo a fazer leis, a melhor alternativa seria a apresentação de um projeto de lei popular para a criação do fundo.

Saliente-se que a omissão do Executivo, expressa na não propositura do projeto de lei de criação do fundo, somente se justificaria diante de um quadro de inexistência de violações aos direitos de crianças e adolescentes. Esta omissão do Poder Executivo deve ser remediada mediante a proposição de ação civil pública para a reparação dos danos que, provavelmente, poderiam ser evitados caso o fundo estivesse em pleno funcionamento.


9. Papel dos Órgãos de Defesa e Promoção dos Direitos da Infância e Juventude no Orçamento

Os órgãos incumbidos da defesa e promoção dos direitos das crianças e dos adolescentes, tem atribuições explicitadas na lei nº 8.069/90.

Assim, cabe ao Conselho Tutelar "assessorar o Poder Executivo local na elaboração da proposta orçamentária para planos e programas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente" (Art. 136, IX,). Isso implica em dizer que, antes da elaboração da proposta orçamentária, o Conselho Tutelar deve ser consultado pelo poder executivo municipal (local) para que colabore com análises, sugestões e críticas aos planos e programas para a infância e a juventude.

Isso inclui tanto a análise dos recursos previstos para os programas, quanto a própria necessidade de tais programas. Portanto, ainda que o chefe do poder executivo municipal não acate as propostas, sugestões e críticas dos membros do Conselho Tutelar (lembre-se que a decisão é política), o momento de assessoramento deve existir efetivamente, oferecendo as condições e as informações, no momento oportuno, para que os conselheiros tutelares possam exercer esta obrigação prevista no art. 136, IX, ECA.

O Ministério Público desempenha papel de destaque para a defesa e promoção dos direitos de crianças e adolescentes. Estando a matéria dos direitos da criança e do adolescente na esfera dos interesses difusos, a lei nº 8.069/90 foi generosa nas atribuições do Ministério Público para a matéria, incluindo-se aí a questão orçamentária.

Diante disso, o Ministério Público tem competência para promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos interesses individuais, difusos ou coletivos relacionados à infância e à adolescência, inclusive os definidos no art. 220, §3º inciso II, da Constituição Federal (art. 201, V, ECA). Em termos orçamentários, o inquérito civil pode ser instaurado para apurar a eventual incompatibilidade entre o volume de recursos orçamentários previstos para a área da infância e juventude e a exigência da demanda social a ser atendida.

Se diante de indícios de incompatibilidade de recursos com as demandas a serem supridas, o Ministério Público não pode fazer incluir no projeto de lei orçamentária recursos financeiros, pode, contudo, ajuizar a ação civil pública. Essas ações civis fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos serão processadas junto à Justiça da Infância e Juventude conforme o artigo 148, IV, ECA.

Além disso, como o Ministério Público deve zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes, promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis (art. 201, VIII, ECA), o representante ministerial pode a) reduzir a termo as declarações do reclamante, instaurando o competente procedimento, sob sua presidência; b) entender-se diretamente com a pessoa ou autoridade reclamada, em dia, local e horário previamente notificados ou acertados; c) efetuar recomendações visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública afetos à criança e ao adolescente, fixando prazo razoável para sua perfeita adequação (art. 201, §5º, a, b e c, ECA).


10. Conclusão

.

a) A relação entre direito orçamentário e direito da criança pode ser observada pela existência de dispositivos de cunho orçamentário no direito da criança e do adolescente. Além disso, as políticas públicas para a infância e a juventude exigem a interlocução orçamentária para que se efetivem prioritariamente;

b) Decisões de cunho político definem os programas e as ações previstas no orçamento, vinculando-se às idéias e convicções políticas, filosóficas, dos governantes.

c) O princípio da prioridade absoluta, previsto no artigo 227, CF se incorpora à temática orçamentária na medida em que esta se constitui em um instrumento imprescindível para que direitos possam ser concretizados por meio de políticas públicas. Logo, seja na elaboração orçamentária, seja na execução financeira, as decisões governamentais devem ter como pressupostos o conceito de prioridade absoluta à infância e juventude;

d) O interesse e a mobilização da sociedade e a observância dos dispositivos orçamentários, legais e constitucionais, em conformidade com direito da criança "ativam" o orçamento considerado uma "quase-garantia". Não se confunda, contudo, com as garantias constitucionais previstas na Constituição Federal, tal como o Habeas Corpus e o Mandado de Segurança;

e) A garantia constitucional do mandado de injunção que poderia ser utilizada tendo efeitos no campos orçamentário restou inviabilizada diante de decisão do Supremo Tribunal Federal que conferiu-lhe os mesmos efeitos da declaração de inconstitucionalidade por omissão, afastando-se a possibilidade da entrega direta do direito pelo judiciário, por meio de regulamentação ao caso concreto, em situações de omissão legislativa.

f) O ECA previu fundos de manutenção dos direitos das crianças e dos adolescentes, vistos como um instrumento para que a sociedade, através dos conselhos de direitos, defina ações e programas.


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Sobre o autor
Rinaldo Segundo

bacharel em direito (UFMT), promotor de justiça no MPE/MT e mestre em direito (Harvard Law School), é autor do livro “Desenvolvimento Sustentável da Amazônia: menos desmatamento, desperdício e pobreza, mais preservação, alimentos e riqueza,” Juruá Editora.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEGUNDO, Rinaldo. Construindo a relação entre o Direito da Criança e do Adolescente e o Direito Orçamentário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 144, 27 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4541. Acesso em: 23 dez. 2024.

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