Quando, em algum lugar deste vasto país, uma autoridade judiciária, a pretexto de executar seu trabalho, viola os direitos de uma comunidade inteira, talvez este seja o estalo para impulsionar a sociedade, que tanto se revolta com seus políticos dos Poderes Executivo e Legislativo, a refletir sobre os valores de legitimidade democrática que precisam ser impostos (ou recordados), também, ao Poder Judiciário, o qual parece não conhecer limites diante de direitos alheios, tampouco prezar pela proporcionalidade do impacto de suas ações.
Quando falamos de representatividade popular (entre afirmações injuriosas aos políticos e quase sempre indicativas de sua (des)honestidade), muito pouco, senão nada, diz-se sobre juízes. Os juízes não são lembrados, por exemplo, quando indeferem uma liminar judicial que pleiteia um medicamento a algum paciente que necessita disto para a continuidade de sua vida. Mas políticos são lembrados sempre pela precarização dos serviços de saúde. Um serviço ruim de saúde prejudica e muito um paciente. Às vezes o mata em decorrência de tal sucateamento. Às vezes não. Há quem escape.
Agora, alguém que tem negado seu medicamento, julgado essencial por um médico para que mantenha sua vida, apenas pelo fato de que o juiz deixou que seu assessor ou estagiário desatento fizesse um modelo de decisão denegatória sem olhar os autos, ou porque o próprio juiz achou por bem ouvir a parte contrária antes de decidir pela presunção da urgência de salvaguarda de uma vida, quase sempre, tem consequências mais prejudiciais.
Se eu registrar nesse artigo os nomes: Sarney, Suplicy, Temer, Serra, Cid Gomes, entre muitos outros, o leitor vai lembrar algum caso sobre cada um, ou, até, lembrar muitos casos polêmicos de um deles e fazer confusão com os demais, porque, ao final, é natural colocar uma só farinha num mesmo saco.
Mas mesmo que eu registre aqui o nome inteiro de João Carlos de Souza Correa, o leitor talvez não recordará o caso em que este indivíduo figurou como protagonista da polêmica. Não a recontarei, antecipo. Permitirei ao leitor que a rememore. E, se não lembrar, que atire o citado nome ao Google.
O fato curioso é que o Judiciário brasileiro, a despeito das sórdidas investidas de alguns de seus membros, seja na investidura do cargo ao conduzir um processo judicial, seja socialmente despido da toga, têm sido mantidos afastados da pauta dos “heróis das ruas”, em seus “passeios públicos peculiares” (vulgo protestos, passeatas, carreatas... enfim, a nomenclatura fica a cargo do protestante).
E é de se perguntar: há representatividade popular no Poder Judiciário?
Ora, se “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”, como dita a Constituição Federal (parágrafo único, art. 1º), não é preciso ser um Aristóteles para, por meio da criação de um sistema de dedução lógica[1], chegar à conclusão de que, se o Judiciário é um poder, ele também emana do povo, e, logo, está sujeito à legitimidade democrática.
Contudo, como lembra Paulo Roberto Soares Mendonça, “a maior parte dos estudos sobre a legitimidade do poder do Estado negligencia o papel do Judiciário neste contexto, focalizando essencialmente a questão da representatividade dos poderes Executivo e Legislativo e a repercussão social de suas ações. Verifica-se, então, que é bastante reduzida no campo da Teoria Política a discussão sobre a Justiça como elemento integrante do mecanismo de poder no Estado.” (MENDONÇA. Paulo Roberto Soares. A argumentação nas decisões judiciais. Rio de Janeiro: Renovar, 1997).
O afastamento das discussões sobre ações do Judiciário não é de hoje[2]. É da história brasileira o caráter de evitar críticas sobre o comportamento judiciário, como se a suposta independência das decisões judiciais pudesse, por si só, respaldar a justificativa presente no ditado popular de que “decisão judicial não se discute, cumpre-se”. Lamentável um pensamento desse jaez, o qual conserva a postura social de manter silente ou deliberadamente cego o povo aos descalabros proferidos institucionalmente.
E, diante de uma sociedade que não se enxerga representada pelo Poder Judiciário regente de seu Estado de Direito, é tudo menos Democrático esse mesmo Estado.
Temos um Judiciário de face monárquica, mimado desde sua criação por um povo genitor que sempre relevou suas ações, por mais desproporcionais que elas fossem, e, agora com seu “filho” adulto, vê-se às voltas com desmandos capazes de causar graves danos a direitos sociais, tal como a decisão judicial que bloqueou o acesso à rede social do Whatsapp a todos os cidadãos brasileiros, em virtude de suposta necessidade de punir o prestador do serviço, o qual, segundo se consta na imprensa, não colaborara para a consecução de atos de um processo criminal.
Apesar de fundamentada a punição processual, o meu e o seu direito de acesso à rede social não teve fundamentada a intromissão judicial cerceadora, ferindo pilares de um estado de Direito.
“O Estado de Direito se caracteriza por ser o Estado que se justifica, tendo como pauta a ordem jurídica a que ele próprio se submete. Assim, quando o Estado intervém na vida das pessoas, deve justificar a intromissão: materialmente, pois a intromissão tem fundamento, e formalmente, pois o fundamento é declarado, exposto, demonstrado.” (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 248-249.)
A polêmica decisão não assusta somente pelo seu teor, como também pelo seu exemplo. Com a quantidade de processos em trâmite no país, se considerarmos a idoneidade de que cada juiz, em hipótese idêntica, entenda pela pertinência de tal bloqueio nacional de acesso à citada rede social como medida indispensável para um processo qualquer, é melhor começarmos a treinar os pombos para o envio de mensagens.
Aliás, lembrando-se dessa secular prática de pombos-correios, convém citar o igualmente antigo adágio jurídico latino: “fiat justitia et pereat mundus” (faça-se justiça ainda que pereça o mundo), muito adequado para exprimir uma conclusão favorável pela possibilidade de uma decisão judicial, sob justificativa de atender à necessidade de um processo, atingir, com seus efeitos, direitos alheios em escala nacional, como no exemplo do Whatsapp. Entretanto, uma justiça que se concretiza à revelia do resto do mundo só pode ser uma justiça particular, restrita para interesse de alguns e imposta à força da arbitrariedade contra o resto do mundo. Certamente, justiça não é isso.
A famigerada decisão vem curiosamente de uma autoridade expressa pela mídia (http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,dra-sandra--a-juiza-que-parou-o-whatsapp-100-milhoessem-aplicativo,10000005339) como “odiada por defensores criminais” e “temida por funcionários do Fórum”, qualidades essas, de ódio e temor, as quais não se harmonizam com as comuns qualidades que devem estar presentes numa legítima autoridade de um Estado Democrático de Direito, mais se familiarizando às características de um tirano.
Infelizmente, acostumamo-nos a ser colonizados ou governados monarquicamente, onde representação popular é fato esquecido. Tornamos normal o receio de ir ao fórum, o medo do magistrado que nos interroga e, até, mandar calar quando é necessário dizer, como se compreensão, respeito, dignidade e educação não lhe fossem cobráveis.
Precisa-se diluir a ideia de que existem cidadãos de categoria maior que outros, cuja diferenciação constitua um motivo capaz de dar a alguns auxílio moradia, quando sua remuneração pode comprar muitas, e a outros a piedade das doações ou o suplício de uma indenização, quando suas casas são (eventualmente) arrastadas pela lama ou (costumeiramente) derrubadas pela tempestade. Numa sociedade democrática não existe a casa do rei, somente a casa do povo.
Mas, no Brasil, ainda existem reis. E isso tem sido um argumento até então aceitável para tolerar decisões desproporcionais, ilegais, comportamentos morosos[3] e atos judiciais desconexos ao bom senso da razoabilidade.
Precisamos discutir mais o que queremos como representante do povo e o que precisamos colocar em pauta quando tentamos formular uma discussão crítica sobre a sociedade ideal que desejamos.
Para isso, precisamos falar de juízes.
Notas
[1] Para quem esquecer a lógica aristotélica, ela foi classicamente sintetizada pela expressão: "Todo homem é mortal, se Sócrates é homem, logo Sócrates é Mortal".
[2] Muito se reclamou da falta de leis capazes de abolir a escravatura no Brasil no século XVII, ou da falta de pulso do Poder Executivo, então imperial, para acelerar o processo de libertação. A literatura é farta em mostrar críticas de movimentos abolicionistas. Mas não achei nenhum movimento social ou crítico registrado na História contra o posicionamento do desembargador pernambucano de 1883, ao registrar, em seu julgamento, pouco tempo antes da abolição formal, o seguinte descalabro: “Sou do número dos que pensam que os senhores, em referência a seus escravos, enquanto existir no país a respeito deles a legislação que temos, não podem cometer outros crimes que não provenham do abuso do poder dominical, do direito de correção, e que fora dessas raias, não podem os senhores cometer crimes em relação a seus escravos. Privados de direitos civis, não têm os escravos o de liberdade, de honra e de reputação, seus direitos reduzem-se ao da conservação e da integridade do seu corpo; e só quando os senhores atentam contra seu direito é que incorrem em crime punível, porque não há delito sem a violação de um direito.” (Tribunal da Relação de Pernambuco — Recurso Criminal — julgado em 11/5/1883 In: CEPIA, 2001, p. 23). E não me digam que seguia o magistrado a lei de seu tempo. Meras palavras em papel, que são as leis, não justificam ações injustas. Sábio foi Ghandi ao proferir que “Quando uma lei é injusta, o correto é desobedecer.”. No futuro, também alguém colherá de nosso tempo despautério similar de violação de direitos, cujo teor podemos ver hoje como uma normalidade de entendimento jurídico. Para a sorte do indivíduo, possivelmente não esteja vivo para viver sua vergonha de posicionamento. Exemplo é outro entendimento outrora firmado pela Jurisprudência brasileira: “uma jovem estuprada há de se opor razoavelmente à violência, não se podendo confundir como inteiramente tolhida nessa repulsa quem nada fez além de gritar e nada mais. A passividade que muitas vezes se confunde com a tímida reação, desfigura o crime, por revelar autêntica aquiescência.” (RT 429/400).
[3] A morosidade não é o termo legal na área jurídica. Chama-se pomposamente de prazo impróprio. Ah, eufemismos!