A história do capitalismo tem, dentre outros, seis doutrinadores gigantes: Adam Smith (1723-1790), David Ricardo (1772-1823), Karl Marx (1818-1883), Max Weber (1864-1920), John Keynes (1883-1946) e Joseph Schumpeter (1883-1953).
Este último foi o máximo teórico da inovação, que é o maior motor do capitalismo (quem fica parado e não inova tende a se estagnar ou perecer).
Para o “profeta da inovação”[1], “o processo capitalista, não por coincidência, [por causa da inovação constante] eleva progressivamente o padrão de vida das massas”. Os muitos pobres, desempregados, precariados e espoliados não desaparecem, mas as condições de vida hoje (em geral) são melhores que nos séculos passados. Quem tem o mínimo de qualidade de vida hoje, tem muito mais que um rei do século XV.
Por força da contínua inovação, a instabilidade constitui a própria essência do capitalismo competitivo. Nos sistemas capitalistas selvagens, cartelizados, de compadrio (como é o caso, em regra, da macroeconomia no Brasil) alguns monopólios ou oligopólios “se protegem” (ou são protegidos) da inovação. Mas também pouco inovam (e é por isso que acabam sendo engolidos pela concorrência, quando esta consegue superar as barreiras do protecionismo).
Capitalismo inerte (sem novidades, sem inovações e sem crescimento) é uma anomalia. De 1980 para cá o Brasil cresceu pouco porque inovou pouco.
Economia sem crescimento ou capitalismo estacionário (Adam Smith falava em capitalismo estacionário) é fruto de muitos anos, muitas vezes, do extrativismo e da cleptocracia (Estado dominado e governado também por ladrões).
Nas cleptocracias, as empresas e oligarquias que mais gritam contra os monopólios são precisamente as que mais os querem, só para elas. Daí a busca incessante de acesso ao Estado (ao poder). Os mais bem posicionados dentro do Estado possuem vantagens no mercado.
Onde há competição verdadeira, todos os dias surgem inovações (criadoras) que vão destruindo tudo que fica ultrapassado. Toda inovação (criadora) destrói o obsoleto. Essa é a regra do capitalismo competitivo.
O computador PC matou as máquinas de escrever; os iPads estão matando os velhos computadores. Os celulares tendem a superar os iPads. O Uber está tirando o sono dos taxistas no mundo todo, e assim vai.
“O que ontem foi o ideal contra o status quo, amanhã será o status quo, por sua vez, desafiado por um novo ideal.” (J. Ingenieros).
Lava Jato e inovação
No campo criminal, a Lava Jato constitui a maior inovação de todos os tempos. Ela está para a capenga Justiça criminal brasileira (subalterna durante 512 anos dos poderosos) como o Steve Jobs está para o avanço na tecnologia. Ela é o Steve Jobs da revolução criminal. A cleptocracia acuada diz que tudo está sendo feito com gravíssimos prejuízos ao Estado de Direito (em parte tem razão, em parte não). Está havendo excessos nas prisões preventivas e o próprio STF vem afirmando isso reiteradamente (e corrigindo vários abusos). Mas é o próprio STF que passou a exigir, contra a Constituição, a execução imediata da pena. Isso tem que ser feito (sou favorável), por Emenda Constitucional.
A Lava Jato, de qualquer modo, revolucionou, porque
(a) está introduzindo no Brasil, de forma sistemática, uma nova e inusitada forma de se fabricar o processo criminal (trata-se de um novo tipo de serviço público);
(b) adotou um novo método de produção (por meio da colaboração e da delação premiadas);
(c) está atingindo os barões ladrões e suas riquezas (novos atores, para além dos descamisados e desdentados, fazem parte da Justiça criminal);
(d) está descobrindo novas fontes probatórias (que é a matéria-prima da indústria da Justiça criminal); e
(e) está promovendo uma nova estrutura organizacional nessa indústria (Justiça criminal negociada e rápida, bem concatenada, com reparação dos danos gerados ao erário). Tudo isso, no entanto, só veio acontecer depois de mais de 500 anos de colonialismo e neocolonialismo extrativistas.
A Lava Jato, assim, é uma ruptura, é uma quebra de paradigma. Da Justiça criminal conflitiva – sem negociação sobre provas e penas – se passa (de forma sistemática) para a Justiça criminal negociada.
Nem no mensalão do PT (2012-2013) houve negociação. Toda mudança começou em março/14. A negociação criminal é inovação disruptiva, que destrói tudo que fica para trás.
O celular está matando o telefone fixo; os smartphones estão matando os celulares e os computadores. O padrão Blockbuster matou as antigas locadoras de vídeos; a Netflix acabou com as grandes locadoras.
Capitalismo estabilizado é uma contradição (dizia Schumpeter). A desgraça disso tudo é a excessiva concentração da riqueza mundial (denunciada pela Oxfam, por exemplo): o 1% mais rico possui riqueza equivalente a 99%; 62 ricos têm riqueza equivalente a 3,5 bilhões de pessoas.
Justiça criminal impotente, que diz amém a todos os abusos e caprichos das classes poderosas, é coisa de cleptocracia de terceiro mundo. A Justiça criminal brasileira está inovando (depois de 512 anos).
Os novos métodos de produção do processo penal (colaboração, delação) alteraram o “preço” das penas: dá prêmios aos delatores e sanções merecidas para os criminosos de colarinho branco que ficavam impunes. Quanto mais compensadoras as ofertas, mais ganhos são alcançados no final (em termos de produção de provas e de condenações).
Por força da teoria dos jogos, a perspectiva é de muito mais delatores (quase 100 pedidos já foram formulados até aqui).
O que o fordismo (no princípio do século XX) fez para o capitalismo, as delações estão fazendo para o desempenho da Justiça criminal brasileira no começo do século XXI.
Estamos vendo o fim da omertà (que é o silêncio dos grupos mafiosos). A cleptocracia contesta as delações, mas elas são constitucionais, se seguirem o devido processo legal. Duas decisões recentes nesse sentido: Corte Constitucional alemã (19/03/13) e Tribunal Europeu de Direitos Humanos (29/04/14). O STF (em 27/08/15) implicitamente também admitiu isso.
A clientela da Justiça criminal subiu de tom, de cor e de status. As classes poderosas (banqueiros, empreiteiros, políticos, altos funcionários), que cometem crimes de imensa repercussão social (social harm), pela primeira vez, estão conhecendo de forma coletiva o famigerado e contestável “banco dos réus”.
Alguns deles estão tendo experiência inclusive com as indecentes prisões brasileiras (e tudo poderia ser indescritivelmente pior, se fossem para os presídios comuns). Com o mundo globalizado, com o comércio ampliado, com as instituições internacionais pressionando os paraísos fiscais, os bancos lavadores de dinheiro, assim como todas as cleptocracias, para renovarem seu sistema criminal, não se podia esperar resultado distinto (veja nosso livro Populismo penal midiático).
A matéria-prima da Justiça criminal são as provas. Que devem ser obtidas de forma lícita. Por força das delações premiadas, as provas foram facilitadas. O custo da produção de um processo criminal foi barateado. Tudo se agilizou. A cooperação internacional tornou-se célere (o que não é garantia de lisura em 100% dos casos, mas está funcionando).
O xisto nos EUA está para o desmoronamento dos preços do petróleo e do barateamento da energia assim como a nova forma de obtenção de provas está para a performance da Justiça criminal brasileira frente aos poderosos. A descoberta de novas matérias-primas altera completamente o resultado final da Justiça.
Mas é fundamental uma advertência: se essas provas não forem colhidas rigorosamente de acordo com o Estado de Direito, tudo vai por água abaixo (como já foram as operações Castelo de Areia e Satiagraha).
A nova Justiça criminal negociada (a nova organização da indústria do processo criminal) rompeu o monopólio da impunidade dos crimes cometidos pelos barões ladrões. A inovação criativa destrói tudo que fica ultrapassado.
Os celulares mataram a velha indústria da fotografia (Kodak ou Fuji). O custo da criminalidade do colarinho branco aumentou. O barão ladrão agora pode ir para a cadeia. O véu da imunidade foi desvelado. Isso constitui estímulo para não delinquir. A corrupção tende a diminuir (se a repressão for conjugada com outras medidas concomitantes, como postula Bo Rothstein, sociólogo sueco).
É nítida, ademais, a nova reacomodação das forças institucionais: o Poder Político (políticos + agentes administrativos, econômicos e financeiros poderosos) está começando a ser submetido ao controle do Poder Jurídico. A inovação (Schumpeter talvez não imaginasse isso) altera inclusive a posição e o status das instituições.
Mas isso jamais seria possível sem o apoio popular e internacional a essa inovação (destrutiva da liberdade, de acordo com a culpabilidade de cada um, assim como das riquezas dos ladrões barões). A invisibilidade da cleptocracia (que sempre contou com o apoio da mídia comprometida) está se desmoronando. Ela se tornou muito mais visível (a indiferença foi substituída pelo ódio).
Está mais do que evidenciada, por ora, a ruptura com a tradição da impunidade dos barões ladrões. A inovação é da essência não só do capitalismo (Schumpeter), senão também de todos os campos da existência humana. Para desgraça desses barões cleptocratas, a velha Justiça criminal paquidérmica e letárgica está sendo substituída por outra dinâmica e ágil.
Mas, para se legitimar, não basta apenas apresentar bons resultados (boas receitas nos seus balanços), senão também estrita adequação às regras do Estado de Direito. Não basta apenas a lógica dos ganhos (que é a que vigora na cleptocracia e no mundo do capitalismo não distributivo). No campo criminal, por envolver bens jurídicos muito relevantes, como a liberdade, é sempre fundamental perguntar como os ganhos foram obtidos.
Locomotiva fora dos trilhos é desastre na certa. O velho protecionismo aos extrativistas e aos barões ladrões mata o progresso do País. No lugar da roubalheira e da pilhagem deve entrar a competitividade. No lugar do Estado empresário deve ingressar o Estado social liberado do patrimonialismo, para que cumpra suas funções essenciais com qualidade: educação, saúde, segurança, infraestrutura, Justiça e supervisão rigorosa do capitalismo privado competitivo (para que os grandes não matem os pequenos, para que os talentosos não morram antes de empreender, para que os extrativistas e parasitas não suguem sem trabalhar, para que os barões ladrões não promovam monopólios, oligopólios, pilhagens e roubalheiras generalizadas).
Nota
[1] Ver GIAMBIAGI, Fabio. Capitalismo: modo de usar. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015, p. 198.