O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o HC 126.292, em 17 de fevereiro de 2016, por maioria de votos, promoveu uma mudança de paradigma na sua jurisprudência no que se refere à possibilidade de execução provisória da pena, matéria que estava adormecida desde o julgamento do HC 84078, em 05 de fevereiro de 2009.
Ocorre que, ao negar a ordem de habeas corpus, na recente decisão, o STF entendeu que o início da execução da pena, após a confirmação da sentença condenatória em segundo grau, não ofende o princípio constitucional da presunção da inocência[1]. A mudança de paradigma acima referida se dá na medida em que, desde o julgamento proferido em 2009, a Corte condicionava a execução da pena ao trânsito em julgado da condenação, ressalvando, logicamente, a possibilidade de prisão preventiva ou temporária, modalidades de prisão cautelar.[2]
O ministro Teori Zavascki, relator do HC 126.292, sustentou que a manutenção da sentença penal pela segunda instância encerra a análise de fatos e provas que assentaram a culpa do condenado, autorizando o início da execução da pena. Segundo Zavascki, a presunção da inocência impera até a confirmação em segundo grau da sentença penal condenatória, sendo que, após esse momento, exaure-se o princípio da não culpabilidade, é o réu passa, então, a presumir-se culpado.
A linha de raciocínio do ministro está ancorada no argumento de que os recursos cabíveis da decisão de segundo grau, ao STJ e ao STF, não se destinam à discussão de fatos e provas, mas apenas matéria de direito, razão pela qual a formação da culpa lato sensu já se encontra perfectibilizada[3]. Nessa linha, Zavascki frisou em seu voto que, “ressalvada a estreita via da revisão criminal, é no âmbito das instâncias ordinárias que se exaure a possibilidade de exame dos fatos e das provas, e, sob esse aspecto, a própria fixação da responsabilidade criminal do acusado”.[4]
Na esteira desses argumentos, fixou-se um novo parâmetro a partir do qual o réu deixa de ter reconhecida a sua presunção de inocência, qual seja, a confirmação da sentença penal condenatória em segunda instância, razão pela qual alguns doutrinadores referem que a decisão do Supremo Tribunal Federal “relativizou” o princípio da presunção da inocência.
No entanto, nos parece, s.m.j., que o princípio continua íntegro, o que ocorreu, na espécie, foi “nova interpretação quanto ao momento terminativo da presunção da inocência”. Antes da decisão proferida no HC 126.292, tinha-se o entendimento de que a presunção da inocência vigorava até o “trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, agora, passou-se a ter o entendimento de que a presunção da inocência vigora até a “confirmação da sentença condenatória em segundo grau”.
Dizer que determinado instituto foi “relativizado”, significa dizer que, em determinadas situações, ele “poderá não ser observado”, o que não nos parece ser o caso, pois, como referimos, a presunção da inocência, impreterivelmente, continuará a ser observada, sem exceção, em todo e qualquer caso. O que se alterou com a decisão proferida no HC 126.292 foi o “momento em que se exaure essa presunção”.
A presunção de inocência, segundo Lopes Júnior[5]:
a) É um princípio fundante, em torno do qual é constituído todo o processo penal liberal, estabelecendo essencialmente garantias para o imputado frente à atuação punitiva estatal.
b) É um postulado que está diretamente relacionado ao tratamento do imputado durante o processo penal, segundo o qual haveria de partir-se da idéia de que ele é inocente e, por tanto, deve reduzir-se ao máximo as medidas que restrinjam seus direitos durante o processo (incluindo-se, é claro, a fase pré-processual).
c) Finalmente, a presunção de inocência é uma regra diretamente referida ao juízo do fato que a sentença penal faz. É sua incidência no âmbito probatório, vinculando à exigência de que a prova completa da culpabilidade do fato é uma carga da acusação, impondo-se a absolvição do imputado se a culpabilidade não ficar suficientemente demonstrada.
A presunção de inocência, direito e garantia individual fundamental, está prevista no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal, o qual dispõe que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Nos termos da referida norma constitucional, com clareza solar, tem-se que o estado de inocência deve perdurar até a sentença penal condenatória transitada em julgado.
Em virtude dessa previsão expressa da norma constitucional, o recurso interposto pela defesa contra uma decisão condenatória deve ser recebido no duplo efeito, devolutivo e suspensivo, e a decisão de segundo grau que condenou o réu ficava sem produzir efeitos, até o trânsito em julgado do respectivo recurso. Entretanto, agora, o Supremo Tribunal Federal, implementando efetiva mutação constitucional[6], aplica nova interpretação ao dispositivo acima referido.
Veja-se que, ao mesmo tempo em que o ordenamento constitucional possui caráter estático, apresenta caráter dinâmico. A realidade social está em constante evolução, e, à medida que isso acontece, as exigências sociais vão se modificando, de maneira que o direito não pode permanecer alheio essas circunstâncias, devendo sempre estar intimamente ligado com o meio.[7]
Não há problema algum em realizar-se uma interpretação evolutiva do direito, pelo contrário, isso é extremamente recomendável para evitar a fossilização das normas e a aplicação de interpretações anacrônicas, divorciadas dos novos tempos. O problema, neste caso, é que a norma constitucional é “expressa e clara” ao estabelece o momento em que a presunção de inocência deve ser derrubada, qual seja, com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
A decisão em comento, assim, na visão do ministro Marco Aurélio[8], representa uma “flexibilização, sem precedentes, das liberdades fundamentais”, em que pese seu tenha sido do agrado da população, pois, conclui o ministro, “não se avança culturalmente fechando a Lei das leis da República, que é a Constituição Federal”.
Nas palavras de Sannini[9], o cenário atual representa “o império do ‘contorcionismo jurídico’, onde uma boa dose de retórica é capaz de mudar o rumo da justiça criminal. Foi o que acorreu, por exemplo, no julgamento do RE 593.727, em que o STF reconheceu o poder investigatório do Ministério Público, a meu ver, sem qualquer respaldo constitucional”.
Atente-se para o fato de que não estamos questionando o fato de ser justa ou injusta a execução provisória da sentença pena condenatória. O questionamento proposto deve ser convergido ao fato de ser ela autorizada ou não dentro do sistema adotado pela nossa Constituição Federal. Esse é o ponto crucial.
De acordo com as diretrizes convencionais internacionais, existem 02 sistemas para se derrubar a presunção de inocência, possibilitando, então, a execução da pena. O primeiro é o do trânsito em julgado da decisão condenatória; o segundo é o do duplo grau de jurisdição.
Conforme leciona Gomes[10]:
No primeiro sistema, somente depois de esgotados todos os recursos (ordinários e extraordinários) é que a pena pode ser executada (salvo o caso de prisão preventiva, que ocorreria teoricamente em situações excepcionalíssimas). No segundo sistema, a execução da pena exige dois julgamentos condenatórios feitos normalmente pelas instâncias ordinárias (1º e 2º graus). Nele há uma análise dupla dos fatos, das provas e do direito, leia-se, condenação imposta por uma instância e confirmada por outra.
É fato que praticamente todos os países ocidentais seguem o sistema do “duplo grau de jurisdição”. No entanto, conforme referimos, a Constituição Federal brasileira adotou o sistema do “trânsito em julgado da decisão condenatória”. Inclusive, no tocante ao direito internacional, ao proferir o seu voto no HC 126.292, o ministro Teori Zavascki citou manifestação da ex-ministra Ellen Gracie, no julgamento do HC 85886, quando salientou que “em país nenhum do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa aguardando referendo da Suprema Corte”.
Cabe referir, nesse ínterim, que o direito internacional deixa que cada país regule as balizas da presunção da inocência ao seu modo, de acordo com o seu ordenamento jurídico, não vinculando a legislação interna das nações a nenhum dos sistemas existentes. A única exigência internacional é que a presunção da inocência seja observada, como corolário lógico da dignidade da pessoa.
Dessa forma, em tratados e convenções internacionais, temos que a presunção da inocência deve “existir”, mas o seu “momento terminativo” fica a livre escolha de cada país. O princípio da presunção da inocência, no plano internacional, portanto, significa que deve ser garantido à pessoa ser tratada como não criminosa até que ela seja reconhecida dessa forma pelas normas do direito interno, é simples.
No entanto, ao seguir seu voto, Zavascki enfatizou que:
“A execução da pena na pendência de recursos de natureza extraordinária não compromete o núcleo essencial do pressuposto da não culpabilidade, na medida em que o acusado foi tratado como inocente no curso de todo o processo ordinário criminal, observados os direitos e as garantias a ele inerentes, bem como respeitadas as regras probatórias e o modelo acusatório atual. Não é incompatível com a garantia constitucional autorizar, a partir daí, ainda que cabíveis ou pendentes de julgamento de recursos extraordinários, a produção dos efeitos próprios da responsabilização criminal reconhecida pelas instâncias ordinárias". (grifamos)
Com a devida vênia, discordamos do entendimento ministro, ao passo que a execução provisória da pena, antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, vai exatamente de encontro com o que prevê o artigo 5°, inciso LVII, da Constituição Federal, ou seja, é, sim, “incompatível com a garantia constitucional”. Acreditamos que, diante dos argumentos até aqui expostos, o mais correto seria dizer: Em que pese ser incompatível com a norma constitucional, a execução provisória da pena é compatível com as diretrizes gerais do direito internacional ou, ainda, com o modelo adotado pela maioria dos países.
A Declaração Universal dos Direito Humanos das Nações Unidas, de 1948, possui previsão expressa do princípio da presunção da inocência no seu artigo 11, o qual estabelece que “toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”.[11]
A decisão proferida no HC 126.292, portanto, com todo o respeito que merece a mais alta Corte do país, está de acordo com as diretrizes internacionais sobre a matéria, mas não está de acordo com as diretrizes da Constituição Federal e, nos países onde o regime político-jurídico adotado é Estado Democrático de Direito, as principais regras da coexistência são as previstas na sua constituição.
O espírito da decisão pode até está correto, pois ninguém mais suporta a criminalidade e a impunidade, sobretudo dos criminosos de colarinho branco, os quais a lei parece não alcançar. Estamos plenamente de acordo com a essência do julgamento. Entretanto, devemos reconhecer que, ao agir assim, a Suprema Corte adotou a máxima de Nicolau Maquiavel de que “os fins justificam os meio”, esquecendo-se da sua missão de ser o guardião da Constituição.
Pode se dizer que, em termos de filosofia, o Supremo Tribunal Federal abandonou o “principiologismo” e ficou com o “consequencialismo”. Para a primeira corrente, os princípios são sempre o que importa, valem incondicionalmente e deles devem decorrer todas as decisões. Para a segunda corrente, ao seu turno, os princípios abstratos não podem estar acima das consequências que acarretam; o ato é validado pelo resultado que produz. Assim, uma decisão judicial não seria boa se seus resultados não fossem bons para a nação.[12]
É visível que a Suprema Corte decidiu pela possibilidade de execução provisória da pena, após o duplo grau de jurisdição, atendendo aos anseios sociais, dado o momento histórico de combate a corrupção que o país atravessa, quando estamos diante da maior operação da Polícia Federal de toda a história. A intenção por trás do julgamento, nesse contexto, é louvável e precisa, pois, com essa decisão, o Supremo Tribunal Federal pretende dar um basta à impunidade generelizada dos barões do crime que, por meio de seus defensores, protelam – e, por vezes, inviabilizam –, a aplicação da pena, empurrando os processos por longos anos, de uma forma quase que ad infinitum.
Não se pode olvidar, entretanto, que interpretações que contrariem disposição expressa do texto constitucional, mesmo que alicerçadas na necessidade de combater a morosidade da justiça e a sensação de impunidade, abrem um rombo no sistema de direitos e garantias constitucionais.[13]
Aliás, conforme lembra Barbosa[14], reportando-se a Dworkin:
“... as argumentações éticas, morais e pragmáticas são conteúdos políticos desempenhados pelos legisladores durante o processo legislativo de elaboração das leis, no entanto, publicada e ingressando no ordenamento e, portanto, após sua incorporação ao Direito, sua invocação jurisdicional ou pelo sistema de justiça, apenas se pode dar por meio de argumentos de princípios jurídicos e não mais por argumentos de política”.
O recente pensamento adotado no julgamento do HC 126.292 deve prosperar. Não temos dúvida disso e levantamos essa bandeira. Os praticantes de crimes que afetam o interesse público e a própria coexistência social, geralmente praticados por segmentos privilegiados que acreditam estar acima da lei[15], devem ir para trás das grades. É inquestionável que o país vive uma crise de valores, o que exige soluções mais do que imediatas por parte do Estado, visando colocar um fim no círculo de inconformismo que provoca verdadeiro desgosto na sociedade.
No entanto, essa necessidade premente do país deve advir de um ato legal, em consonância com as regras do Estado Democrático de Direito. Dessa forma, é imprescindível que o novo entendimento do Supremo Tribunal Federal seja agasalhado pelo Congresso Nacional, com a edição de uma Emenda Constitucional.
Com efeito, a julgar pelos argumentos lançados, cremos que o “bem” que a decisão do Supremo Tribunal Federal promove ao restabelecer a efetividade das sentenças penais, prestigiando a manutenção da decisão condenatória em segundo grau e permitindo a execução provisória da pena, não supera o “mal” de desconsiderar uma norma constitucional cujo conteúdo é expresso, claro e objetivo.
Feitas estas considerações sobre a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 126.292, referimos, ainda, que, como pano de fundo, outra discussão deve tomar corpo em breve, qual seja: adotando-se o “sistema do duplo grau”, a presunção da inocência resta afastada com o duplo grau de jurisdição simples ou com o duplo grau de jurisdição condenatória?
De acordo com a primeira proposição, para início do cumprimento provisório da pena basta que exista um acórdão de 2º grau condenando o réu, ainda que ele tenha sido absolvido pelo juiz em 1ª instância. Isto é, a execução provisória da pena pode ser iniciada após o acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, não importando se a sentença foi absolutória ou condenatória[16]. No entanto, para os adeptos da segunda hipótese, a execução provisória da pena somente poderá iniciar depois de dois julgamentos condenatórios, em 1º e 2º graus. Ou seja, a execução provisória da pena exige a confirmação da sentença condenatória em segundo grau.[17]
Filiamo-nos a segunda corrente, posto que, a nosso ver, as chances de cometimento de uma injustiça seriam infinitamente menores. Neste caso, do duplo grau de jurisdição condenatória, o juízo valorativo de culpabilidade deverá ser avaliado negativamente em duas oportunidades, sedimentando-se em dois julgados a condenação criminal. Esta, inclusive, parece ser a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal, pois, da leitura da decisão do HC 126.292, se verifica que, na essência, “não há ofensa ao princípio constitucional da presunção da inocência quando o início da execução provisória da pena ocorrer após a confirmação da sentença condenatória.