8. JURISPRUDÊNCIA
A jurisprudência brasileira não tem solucionado a emblemática questão de maneira uniforme. No entanto, percebe-se certa prevalência da aplicação da teoria objetiva-formal quanto ao início dos atos executórios e alguns julgados – cada vez mais crescentes – adotando a teoria objetiva-individual.
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais possui vasta gama de decisões no sentido de reconhecer a teoria objetiva-formal. Assim o faz quando alega que, em relação à prática de furto por determinadas autoras, “percebe-se facilmente a perpetração de atos executórios do delito [...], tendo elas se apoderado do bem material, o ocultado na bolsa, e chegado a sair do estabelecimento.”200 No mesmo sentido:
APELAÇÃO CRIMINAL - FURTO - ABSOLVIÇÃO - IMPOSSIBILIDADE - ATOS EXECUTÓRIOS INICIADOS - REDUÇÃO DA REPRIMENDA - DESCABIMENTO - PENA-BASE - AUMENTO PELA CULPABILIDADE - CAUSA GERAL DE DIMINUIÇÃO DA TENTATIVA - FRAÇÃO MÍNIMA - PROXIMIDADE DA CONSUMAÇÃO DO CRIME.
1. Demonstrando as provas colhidas nos autos que o acusado deu início aos atos executórios, se mostra inviável a sua absolvição.
2. Justificando a culpabilidade do réu a fixação da pena-base um pouco acima do mínimo legal e a proximidade da consumação do crime a aplicação da causa geral de diminuição da tentativa na fração mínima, sem propósito a redução da reprimenda.201
APELAÇÃO CRIMINAL - FURTO QUALIFICADO TENTADO - CRIME IMPOSSÍVEL - NÃO CABIMENTO - EFICÁCIA RELATIVA DO MEIO - DECOTE DA QUALIFICADORA DA FRAUDE - INVIABILIDADE - DIMINUIÇÃO RELATIVA AO RECONHECIMENTO DA TENTATIVA PELO PATAMAR MÁXIMO - DESCABIMENTO - ANÁLISE DO ''ITER CRIMINIS'' PERCORRIDO - ''QUANTUM'' INTERMEDIÁRIO - ART. 307. DO CÓDIGO PENAL - ABSOLVIÇÃO - AUTO DEFESA CONFIGURADA - AUSÊNCIA DE VANTAGEM PARA SI OU PREJUÍZOS A TERCEIROS - NECESSIDADE. RECURSO PROVIDO EM PARTE. 01. Restando comprovado que o meio de execução utilizado pelo recorrente possuía eficácia relativa, a figura do crime impossível, prevista no art. 17. do Código Penal, não deve ser acolhida. 02. Comprovado que o agente se utilizou de artifício para enganar a vítima e subtrair a res, estando tal fato devidamente narrado na denúncia, não há falar-se em decote da qualificadora da fraude. 03. A redução da pena em virtude da tentativa deve corresponder ao trecho do iter criminis percorrido pelo autor do fato criminoso, entendendo-se que, se os atos executórios foram parcialmente praticados pelo agente, não se verificando o resultado por circunstâncias alheias à sua vontade, a hipótese se aperfeiçoa à incidência da redução intermediária, qual seja, um meio (1/2). 04. Não tipifica o crime descrito no artigo 307 do Código Penal o fato de o agente fornecer nome falso no momento da sua identificação, perante a Autoridade Policial, sendo que o procedimento por ele adotado caracteriza hipótese de autodefesa, já que não ensejou vantagem para si ou prejuízos a terceiros. (grifou-se)202
Em contrapartida, o mesmo Tribunal tem decidido fundamentando-se na teoria objetiva-individual ao manter a condenação por tentativa de roubo por determinados indivíduos que, portando um arsenal de arma de fogo, armaram uma emboscada em uma estrada vicinal, apenas não se consumando o crime porque a pretensa vítima percebeu a movimentação daqueles indivíduos e tomou outro rumo.203 Em outra situação, o indivíduo foi condenado por tentativa de estupro de vulnerável por ser surpreendido com as calças abaixadas logo após abaixar as peças inferiores de uma criança que estava ao seu lado, não se consumando a conjunção carnal ou ato libidinoso.204
No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul manteve a decisão que reconhecia a tentativa do delito de furto quando o agente é surpreendido pelo proprietário de uma residência tentando arrombar a janela.205
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, acompanhando o mesmo raciocínio, emitiu decisão que dispensa explicações ao dizer:
FURTO. AÇÃO DO AGENTE QUE CONFIGURA A TENTATIVA E NÃO ATOS PREPARATÓRIOS.
Tem-se, como unanimidade de opiniões, que a caracterização, ou não, da tentativa está na ideia do perigo remoto ou próximo. Na primeira hipótese, ter-se-ia impuníveis atos preparativos, enquanto na segunda, a situação se constituiria na tentativa. A divergência doutrinária está nos critérios de aferição do perigo, sendo o mais adequado e correto aquele que se utiliza do conjunto de atos materiais praticados, para estabelecer a intenção do agente. E dentro deste critério, configura-se a tentativa de furto, e não só atos preparatórios, a ação do recorrido de arrancar a maçaneta da porta do veículo, fugindo ao notar a presença de pessoas. A não ser que o agente apresente uma explicação razoável para este fato - é um colecionador de maçanetas, por exemplo, está claro que pretendia adentrar no automóvel, para furtar bens de seu interior ou o próprio.206(grifou-se)
Por sua vez, o Tribunal de Justiça de São Paulo, em julgado cujo o relator fora o Desembargador Marco Nahum, exarou decisão claramente receptora da teoria objetiva-individual quando manteve a condenação por tentativa de um agente que pulara o muro de um Centro Odontológico e, com auxílio de um pé-de-cabra, tentou arrombar a porta daquela instituição, ocasião em, que foi surpreendido pelo guarda do local. Tamanha é a clareza e riqueza do voto, que se faz mister reproduzir o seguinte trecho:
Ademais, a existência do pé-de-cabra faz crer que, realmente, ele tinha intenção de subtrair bens do local. Soma-se a isso o depoimento do guarda municipal Antônio José Pereira Neto, que afirmou ter ouvido do sentenciado, no momento da prisão, que ele pretendia subtrair qualquer coisa que houvesse no referido Centro Odontológico.
Evidente, pois, que o recorrente tinha a intenção de praticar um furto naquele momento.
Não há que se falar que a conduta do réu se restringiu a atos preparatórios.
A lei (em especial o artigo 14, inciso II, do Código Penal) não define o conceito de “início de execução”, o que torna doutrinária e jurisprudencial a distinção entre atos preparatórios e atos de execução.
Este Relator filia-se à corrente que julga não ser o bastante para distinguir os dois tipos de ação o critério segundo o qual “o ato executivo é aquele que realiza uma parte da ação típica”.
Como argumenta Alberto Silva Franco, o critério lógico-formal faz recair no âmbito da preparação impune “atos bastante significativos e já merecedores de pena”. Segundo o autor, citando Rodríguez Mourullo, não raro há figuras delitivas em que a realização objetiva do tipo compreende com frequência apenas atividades que representam o último ato da ação.
No entanto, um critério puramente subjetivo poderia fazer concluir que o início da ação delituosa seja marcado em ponto indefinido no passado, de modo a, até mesmo, colocar em risco o princípio da legalidade.
Esta é a razão pela qual o doutrinador (e este Relator) entende que se faz necessária a composição dos dois critérios, embora tal procedimento não resolva todos os problemas que envolvem a distinção em comento.
No caso presente, o plano do autor é conhecido. Ele saiu de sua residência em poder de um “pé-de-cabra”, com a intenção de entrar em determinado local para subtrair bens que estariam em seu interior.
Talvez a incriminação fosse indevida, caso o autor ainda estivesse a caminho do sítio dos fatos no momento de hipotética detenção. Neste caso, a conduta do agente não seria inequívoca, posto que ele poderia desistir da subtração a qualquer momento, e porque o patrimônio do ofendido não teria sido colocado em risco concreto. Na hipótese em tela, as ações do suposto furtador ainda não seriam suficientes para a realização do tipo.
Todavia, os atos levados a cabo pelo recorrente já estavam em relação direta com a subtração, de acordo com o plano referido acima. O réu estava em meio à sequência de eventos imediatamente anterior e indispensável à tomada dos bens, o que faz crer que, de fato, ele não pretendia desistir da ideia de cometer o crime. Soma-se a isso o fato de que o sentenciado já havia ingressado, sem autorização, no imóvel do ofendido, e já afetado seu patrimônio ao danificar a porta da cozinha, o que leva à conclusão que uma resposta estatal é necessária para o caso presente.207
Em mais um interessante julgado, o Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu o início da execução pelo fato de que o agente forçava o miolo da fechadura da porta de um veículo, evadindo-se sem alcançar êxito, devido a aproximação do proprietário.208
Outrora, o Superior Tribunal de Justiça tem decidido no reconhecimento da teoria objetiva-individual, quando o fez no Recurso Especial nº 979.753, onde firmou-se o entendimento de que
configura desistência voluntária a conduta do agente que, muito embora anuncie o assalto em estabelecimento comercial, desiste da execução do delito, ausentando-se do local sem nada levar, mesmo tendo à sua disposição diversos outros produtos.209(grifou-se)
Da mesma maneira ocorreu no Habeas Corpus nº 140.997, reconhecendo o início da execução quando o agente danifica o veículo para subtrair o sem automotivo do seu interior e ainda enfatiza seu caráter lesivo:
PENAL. HABEAS CORPUS. TENTATIVA DE FURTO QUALIFICADO. SOM AUTOMOTIVO. BEM RECUPERADO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. TIPICIDADE MATERIAL. EXISTÊNCIA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. INOCORRÊNCIA. ORDEM DENEGADA.
1. [...];
2. No caso, o paciente e o corréu tentaram subtrair do veículo da vítima um som automotivo, danificando o carro ao procurar retirar o bem, estando na ocasião o agente em cumprimento de pena pelo cometimento de outro crime.
3. Tais características demonstram um plus de reprovabilidade suficiente para ensejar a tipicidade material, não havendo como reconhecer o caráter bagatelar do comportamento imputado, pois a afetação do bem jurídico tutelado não se mostra ínfima.
4. Ordem denegada.210
O Supremo Tribunal Federal já decidiu acompanhando o mesmo raciocínio objetivo-individual, através do voto do, à época, relator e Min. Ilmar Galvão, acompanhado pela Min. Ellen Gracie, cujo trecho se reproduz:
Com efeito, não teriam passado da etapa preparatória do item criminis (sic), entre outros atos, a aquisição dos apetrechos para a prática do crime, a locação dos veículos utilizados na ação criminosa, os telefonemas dados à vítima e a escola do eventual cativeiro. Contudo, a partir do momento em que comparsas do paciente, de arma em punho, aproximaram-se do veículo onde se achava a vítima, é inegável que chegaram à fase da execução, que não se consumou tão-somente por circunstância alheia à vontade dos agentes, qual seja, o rápido afastamento da vítima do alcance daqueles, após haver percebido a sua aproximação.211
Desta feita, têm-se que, apesar da forte influência legalista, os tribunais brasileiros têm adotado em algumas de suas decisões os ideais objetivo-individuais, entendo ser a que melhor atende aos casos concretos que lhe foram apresentados.
9. DO POSICIONAMENTO ADOTADO PELO NOVO CÓDIGO PENAL
A Comissão de Juristas para a Elaboração de Anteprojeto de Código Penal, criada pelo Requerimento nº 756, de 2011, realizado pelo Senador Pedro Taques, aditado pelo de nº 1.034, de 2011, de Vossa Excelência, com aprovação pelos Senadores da República em 10 de agosto de 2011, apresentou ao Presidente do Senado, Sen. José Sarney, no dia 18 de junho de 2012, um relatório de suas atividades contendo o Anteprojeto de Código Penal.
Com o objetivo de adequar o Código Penal às disposições constitucionais, além de tentar unir, em um único dispositivo, todas as disposições criminais esparsas, sejam elas eleitorais, tributárias, etc., o novo Código Penal buscou conferir maior clareza às suas disposições. Por este motivo, ao contrário do ainda vigente Código Penal, que apenas diz se configurar tentativa com início da execução, sem oferecer um conceito delimitador deste, o futuro Código Penal oferece uma definição àquele quando enuncia em seu art. 24:
Art. 24. Há o início da execução quando o autor realiza uma das condutas constitutivas do tipo ou, segundo seu plano delitivo, pratica atos imediatamente anteriores à realização do tipo, que exponham a perigo o bem jurídico protegido.
Parágrafo único. Nos crimes contra o patrimônio, a inversão da posse do bem não caracteriza, por si só, a consumação do delito.
Desta feita, percebe-se claramente a adoção do critério objetivo-individual ao mencionar que se trata de início de execução o ato que, segundo o intelecto do agente é imediatamente anterior à realização do tipo legal, que ofereçam certo perigo ao bem jurídico tutelado. Também fora expressamente adota a teoria objetiva-formal, cuja adoção se dava de forma apenas doutrinária e jurisprudencial.
Desta feita, o novo Código Penal atende aos anseios doutrinários e jurisprudenciais no que tange a conceituação do termo início de execução, conferindo maior segurança, justiça e respeito ao princípio da legalidade.
10. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ante toda a exposição do presente trabalho, algumas conclusões podem ser extraídas, sendo a mais evidente aquela que revela a complexidade do tema aqui proposto. A delimitação entre o término dos atos preparatórios e o início dos atos executórios no iter criminis é discussão de longa data e desafia os mais renomados doutrinadores jurídicos. Sobre o impreciso elemento “início da execução”, adotado pela legislação brasileira e por vários ordenamentos estrangeiros,212 diversas teses e teorias foram elaboradas no afã de delimitá-lo e distingui-lo precisamente.
Essas teorias, propostas por grandes pensadores jurídicos – diga-se, a maioria alemães, como Ernest von Beling, Grolmann, von Buri, e o próprio Hans Welzel – se equiparam ao pensamento jurídico vigente à época de sua concepção. Desta feita, consoante à concepção positivista do direito penal no final do século XIX, ao ideal causalista da ação,213 reside a teoria objetiva-formal da distinção dos atos executórios e os preparatórios. Fundamentada naquele positivismo, a teoria objetiva-formal alegava que somente se iniciava a execução quando o agente praticava diretamente o verbo elementar do tipo.214
A evolução na concepção de ação delituosa para a adoção do neokantismo, já no início do séc. XX, inseriu ao delito conceitos normativos e subjetivos, ampliando a sua concepção e lhe conferindo um aspecto material.215 Paralelamente, inseria-se um aspecto material na teoria objetiva-formal, ampliando seu conceito para compreender uma interpretação do verbo elementar do delito conforme os “usos de linguagem” ou aquela conduta que gere “perigo imediato” ao bem jurídico tutelado.
Welzel, por sua vez, ao idealizar a teoria finalista, baseada no desvalor da conduta, concebeu a teoria objetiva-individual da distinção central do trabalho, utilizando-se a referência ao tipo, a proximidade do perigo – ameaça – ao bem jurídico e a intenção do autor para lograr o intento distintivo.216 Percebe-se, por consequente, uma evolução de pensamentos doutrinários almejantes a encontrar a linha tênue que distingui os atos preparatórios impunes – em regra – dos atos executórios sujeitos à atuação penal.
No entanto, todas as teorias distintivas desenvolvidas são alvos de críticas e passíveis de complementação, seja pela estreiteza da mera relação típica, pela indefinição dos termos materiais extensivos ou pela insuficiência ante a possibilidade quase infinita de diferentes formas do atuar humano, conferindo particularidade e distinção à cada caso. Desta forma, apesar de também se sujeitar à críticas, a teoria objetiva-individual se mostra mais completa que a demais, motivo pelo qual alguns doutrinadores confessam ser a que oferece melhor resultado.217
Sobre a adoção de tais teorias, a jurisprudência brasileira ainda tem se mostrado temerosa e retendo-se, em sua grande maioria, à adoção da teoria objetiva-formal, visto à atuação do princípio da legalidade adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, conforme fora demonstrado, a teoria objetiva-individual começou a conquistar adeptos em determinados tribunais, inclusive no Supremo Tribunal Federal, originando um número crescente de decisões que tendem a adotá-la como fundamento.218
Desta feita, o Anteprojeto do Novo Código Penal, sabiamente, optou por precisar o termo “início de execução” através dos conceitos das teorias objetiva-formal e objetiva-individual. Sendo assim, nova sistemática penal adotará um critério delimitador entre os atos preparatórios e os executórios, abrangendo seu entendimento para a adoção da teoria de Welzel. Convém ressaltar que, apesar de o futuro Código Penal mencionar expressamente qual o critério de distinção a ser adotado, não significa que o emblema está encerrado. Conforme dito alhures, as teorias aqui estudadas não são absolutas e carecem de complementação, atuando unicamente como princípios orientadores para se buscar uma análise mais apurada e justa.
Ante todo o exposto no presente trabalho, pode-se certamente concluir que o objetivo inicial definido fora atingido. Estudou-se as teorias delimitadoras dos atos preparatórios e executórios, expondo seus conceitos e ideais e analisando as críticas existentes. Desta parte, apesar de forte aceitação pela teoria objetiva-individual, conclui-se que a discussão ainda arde calorosamente e desafia os juristas a empreenderem esforços no sentido de buscar um critério mais preciso.