6. HIPÓTESES DE EXCEÇÃO À PUNIÇÃO DA TENTATIVA
6.1. Tentativa Inidônea ou Crime Impossível
O art. 17. do Código Penal hodierno anuncia que “não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime.” Por própria ilação do próprio artigo, é necessário que se tenha iniciada a execução do delito para que se configure a tentativa inidônea; “sempre deve haver, objetivamente, também na tentativa inidônea, um começo de execução, ou seja, que a ação deve representar, se fora idônea, um começo de execução.”150
Desta forma, ocorre a tentativa inidônea quando “levada a cabo por meios inaptos ou sobre objecto essencial inexistente [...].”151 Ademais, também configura-se tentativa “pela ineficácia total do meio empregado ou pela impropriedade absoluta do objeto material.”152 Com isso, tem-se, portanto, que tentativa não é punível se ocorrer nestas circunstâncias.
No entanto, o art. 17. do CPB – assim como o art. 14, parágrafo único do Código Penal Brasileiro de 1890153 – apenas menciona que não há punibilidade ao agente quando pratica – ou tenta praticar – um delito naquelas condições, nada informando sobre o fundamento para tanto. Desta feita, há de se indagar o motivo pelo qual aquelas condições excluem a punibilidade do agente.
Sobre tal questão, importa-se o conhecimento de que o Código Penal de 1940, antes de sua reestrutura em 1984, submeteu a tentativa inidônea à medida de segurança, ou, mais especificamente, à liberdade vigiada, conforme ilação dos seus arts. 76, parágrafo único e 94, inc. III.154 Desta feita, o digesto penal atual, em sua forma original, punia o agente que praticava o crime impossível de se consumar fundamentado na teoria sintomática ou positivista, que possibilitava a punição do agente quando da prática da tentativa inidônea pela reconhecida periculosidade do mesmo.155
Conquanto à adoção deste posicionamento pela legislação original, considerar o crime impossível punível de forma geral, fundamentando-se apenas em uma periculosidade do agente, seria atentar gravemente contra os princípios fundantes do Direito Penal no Estado de Direito, de forma que, aceitar tal inconveniente “significa abrir a comporta terrível – e sempre rejeitada pelo Direito Penal pátrio – ao estado perigoso sem delito, o que é repudiado em qualquer Estado de Direito e é inconstitucional, [...]”156 visto à constante atuação do princípio da legalidade.
Visto tal crítica, elaborou-se interessante interpretação sobre os elementos da tentativa inidônea no sentido de averiguar aquele inconveniente. Certo é que o crime é impossível em duas situações, seja pela absoluta impropriedade do objeto ou pela ineficácia absoluta do meio. Conquanto à primeira, a impropriedade do objeto a qual se almejava atingir, o faz inexistente. Desta feita, não há o bem jurídico na qual a norma pretendia proteger, excluindo-se, por consequente, não a punibilidade, mas sim a própria tipicidade. A conduta do agente não atinge o bem jurídico tutelado pela norma dada à sua inexistência, não ocorrendo sequer a ameaça ao mesmo (e muito menos perigo), necessária à configuração da tentativa, conforme outrora explanado. Sendo assim, a tentativa inidônea é impunível nestes casos dada a atipicidade da conduta e não mera impunibilidade por política-criminal. Não há de se falar, contraditoriamente ao raciocínio antes demonstrado, em início da execução quando da impropriedade do objeto. Por tal motivo, na redação original do atual Código Penal, também não era punida a tentativa realizada nestas condições.157
Conquanto à outra situação de ocorrência da tentativa inidônea, na ineficácia absoluta do meio, pela presença do bem jurídico tutelado, há a relação típica da conduta, que somente não o atingiu – não se consumando o crime – pela inidoneidade dos meios adotados para tal. Desta feita, estão presentes todos os elementos do crime, que, só não foram atingidos, pela adoção de meios insuficientes para tal. Não há de se negar que, apesar da inexistência do perigo para o bem jurídico, o “caráter ameaçador não desaparece, não obstante a inidoneidade do meio empregado, [...].”158 Por isso, pode-se que tal conduta “implica, realmente, [...] começo de execução, porém levado a cabo através de meios aberrantemente errados, que nunca poderiam causar o resultado, vale dizer, [...] a tentativa inútil. 159 (grifo do texto). Sendo assim, tem-se como inexistente o inicio da execução, configurando-se, realmente uma tentativa inidônea. No atual Código Penal original, somente sob esta condição era punida o crime impossível.
No sentido de que a tentativa por ineficácia absoluta dos meios apresenta ameaça ao bem jurídico, enuncia Jorge de Figueiredo Dias que “[...] apesar de na realidade das coisas estar impossibilitada de produzir o resultado típico, é suficiente para abalar a confiança comunitária na vigência e na validade da norma de comportamento.”160
Por certo, tal discussão possui cunho apenas doutrinário e teórico, visto que o Código Penal, em qualquer uma das ocorrências do crime impossível, extingue a punibilidade. No entanto, é excelente complemento para identificação do início da execução – tema do presente trabalho – levando-se à ilação conclusiva de que, leva-se em consideração a propriedade do bem jurídico para a configuração do início da execução e não a eficiência da conduta almejante à lesá-lo.
6.2. Tentativa abandonada: desistência voluntária e arrependimento eficaz
Estatui o art. 15. do Código Penal que “o agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados.” Desta feita, configura-se a tentativa abandonada161, que incorpora os institutos da desistência voluntária e do arrependimento eficaz respectivamente.
Conquanto à desistência voluntária, a mesma ocorre quando “o agente, embora tenha iniciado a execução, não a leva adiante, desistindo da realização típica,”162 o que vale dizer que o agente “interrompe voluntariamente a execução do crime, impedindo, desse modo, a sua consumação.”163 Destaca-se o termo interrupção da execução, de forma voluntária, significando que a execução ainda não se concluiu e que a conduta deve ser voluntária e não necessariamente espontânea.164
Por outrora, o arrependimento eficaz ocorre quando “o agente, após ter esgotado todos os meios de que dispunha – necessários e suficientes –, arrepende-se e evita que o resultado aconteça. Isto é, pratica nova atividade para evitar que o resultado ocorra.”165 Desta forma, tem-se que a execução do delito já se completara, mas ao agente pratica conduta contrária no sentido de evitar-lhe o resultado.
Ante tais institutos, o dispositivo penal enuncia que são puníveis apenas os atos já praticados, desconsiderando-se a tentativa já existente, tornando-a impune. Com isso, apesar da concordância do fato com o disposto no art. 14, inc. II do CP – início da execução, em regra sujeito à penalidade –, o próprio Código Penal o isenta da punibilidade, configurando-se interessante exceção.
Para explicar tal impunidade, a doutrina oscila quanto ao seu fundamento, a começar por Fernando Capez que, numa interpretação literal do dispositivo correspondente, menciona ocorrer uma atipicidade da conduta do agente ocorrendo uma “exclusão da adequação típica indireta.”166 No entanto, Zaffaroni e Pierangeli contra-argumentam tal posicionamento alegando haver “uma causa pessoal que extingue a punibilidade do delito, mas que não afeta qualquer de seus caracteres, os quais permanecem inalterados,”167 argumentando que “se o começo de uma execução é objetiva e subjetivamente típico, não se compreende como um ato posterior possa eliminar o que já se apresentou como proibido, [...].”168
No mesmo sentido elucida Régis Prado ao dizer que “têm natureza jurídica de causas pessoais de exclusão da punibilidade ou isenção de pena, por razões de política criminal (“ponte de ouro”-teoria político-criminal).”169(grifo do texto). Percebe-se que o motivo de tal exclusão da punibilidade é a conveniência da política criminal, para a qual “essa impunidade assenta-se no interesse que tem o Estado (política criminal) em estimular a não consumação do crime, oferecendo ao agente a oportunidade de sair da situação que criara, sem ser punido.”170 Para Zaffaroni e Pierangeli
A impunidade da desistência do arrependimento não pode ter outra significação que não a efetuada pelo Direito em razão de os mesmos fazerem desaparecer o perigo criado pela tentativa e, ao mesmo tempo, extinguirem, no caso concreto, a impressão ameaçadora que a tentativa apresenta.
Diante o exposto, tem-se que, apesar de ocorrer o início da execução, exatamente como estatui o art. 14, inc. II do Código Penal, não haverá punição da tentativa – senão dos atos já praticados – quando o agente desistir voluntariamente em prosseguir com a execução ou, após concluída esta, evitar a ocorrência do resultado, pela conveniência de tal atitude perante a política criminal, configurando-se em mais uma exceção à punibilidade dos atos executórios.
7. DO CABIMENTO DA TENTATIVA NAS DIVERSAS ESPÉCIES DE CRIMES
Dentre as várias classificações dos crimes, há aquelas nas quais a tentativa se encaixa perfeitamente e de maneira indiscutível, como o é no crime doloso e no material, que se caracteriza pela necessidade da ocorrência de um resultado, em que é perfeitamente possível o desenrolar do iter criminis, suscetível de interrupção em sua execução.
Por outrora, os crimes de pura atividade ou de mera conduta, nos ditames dos doutrinadores Zaffaroni e Pierangeli, admitem a tentativa pelo fato de o que resultado possa ocorrer de duas formas, seja quando “o resultado físico pode ser qualquer, sempre que ofender o bem jurídico, e há outros casos em que o resultado consiste só na exteriorização física da ação.”171 Na primeira hipótese, a tentativa é cabível pois a própria conduta permite o seu desenvolvimento, como ocorre na injúria verbal proferida à um surdo ou à um estrangeiro que nada entende sobre o idioma na qual fora dita.172 Na segunda hipótese, “não resulta concebível a tentativa acabada, uma vez que a realização do verbo típico implica o resultado.”173 No entanto, a Luiz Regis Prado e Fernando Capez têm opinado pelo descabimento da tentativa em tais atos.174
Sobre a possibilidade da tentativa nos crimes formais, o STJ já se manifestou favoravelmente ao editar a súmula 96, dizendo “o crime de extorsão consuma-se independentemente da obtenção da vantagem indevida.”
Conquanto ao crime culposo, a doutrina é unânime175 em afirmar que não comporta-se a tentativa devido à ausência do dolo em relação ao resultado ocorrido, o que se permite alegar que “na tentativa há intenção sem resultado (pelo menos aquele desejado); no crime culposo, ao contrário, há resultado sem intenção.”176
No entanto, a mesma doutrina opina pela possibilidade de ocorrência da tentativa na culpa imprópria. Esta ocorre quando “o agente, por erro de tipo inescusável, supõe estar diante de uma causa de justificação que lhe permita praticar, licitamente, um fato típico.”177 Com a propriedade e clareza que lhe é peculiar, Fernando Capez discorre sobre o tema ao explicar o exemplo no qual o agente atira em um parente que, ironicamente, se disfarça de assaltante e simula uma invasão domiciliar, dizendo:
Se a vítima vier a sobreviver, dado o aspecto híbrido da culpa imprópria (metade culpa, metade dolo), o agente responderá por tentativa de homicídio culposo. Sim, porque houve culpa no momento inicial, mas a vítima só não morreu por circunstâncias alheias à vontade do autor, no momento dos disparos. A ação subsequente dolosa faz com que seja possível a tentativa, mas houve culpa, pois se trata de caso de erro de tipo evitável. Aliás, esse é o único caso em que se admite tentativa em crime culposo. (grifou-se)
Referindo-se ao crime preterdoloso (caracterizado por possuir “conduta dolosa e resultado agravador culposo”178), a mesma doutrina aqui utilizada entende não ser possível a hipótese de cabimento da tentativa ao alegar que “como a tentativa fica aquém do resultado desejado, conclui-se ser ela impossível nos delitos preterintencionais.”179 Utiliza-se o mesmo argumento direcionado à impossibilidade da tentativa nos crimes culposos, sendo-o a ausência de dolo no fato consequente.
Em contrapartida, o delito qualificado pelo resultado com dolo no fato consequente é plenamente apto a comportar a tentativa,180 sendo que esta começa quando da prática da conduta qualificada,181 visto que o “resultado agravador também era visado.”182 Contrariamente a tal entendimento, Luiz Regis Prado menciona a possibilidade da tentativa apenas “em relação ao tipo básico doloso.”183
Conquanto à qualificação presente na conduta, Zaffaroni e Pierangeli enxergam a possibilidade de cabimento da tentativa e mencionam que, neste caso, ela se “inicia com o começo da execução da conduta qualificante precedente.”184 Desta feita, no crime de furto qualificado pelo arrombamento, a sua tentativa inicia-se quando do início deste.185
Nos crimes unissubsistentes é incabível a tentativa186 pelo fato de que, nestes o “processo executivo unitário, que não admite fracionamento, coincide temporalmente com a consumação.”187 Desta feita, dada a impossibilidade de uma extensão da conduta pelo tempo, inviabilizando o seu fracionamento, não é possível ocorrer a tentativa. No entanto, Fernando Capez haver exceções, citando o exemplo de quando o agente dispara uma única vez contra a vítima e erra e quando da injúria verbal quando a vítima não ouve.188
No crime habitual, há interessante questão, sendo que, inicialmente, Capez nega a possibilidade da tentativa. No mesmo prumo, Mirabete e Bitencourt, alegam não ser possível a tentativa no crime habitual, anunciando que “ou há reiteração e o crime consumou-se ou não há reiteração e não se pode falar em crime.”189 No entanto, contraditoriamente, aceitam o raciocínio dos autores Zaffaroni e Pierangeli, que enxergam a tentativa no crime habitual quando comprovado o dolo e o animus de habitualidade do autor, como ocorre no crime de curandeirismo (art. 284, I), quando o indivíduo já instalara consultório e possui pacientes à espera enquanto realiza uma consulta para logo após ministrar o medicamento.
Alguns doutrinadores alegam haver a possibilidade da tentativa nos delitos regrados pelo dolo eventual. Zaffaroni menciona que nesse caso a tentativa é admissível “nos mesmos casos e circunstâncias em que o for para o delito”190, cabendo, no entanto, a parte especial determinar quando ocorre tal possibilidade. Dias, por sua vez, argumenta que o dolo eventual não deve ser entendido
em termos diferentes e mais exigentes do que aqueles que valem para qualquer tipo de ilícito doloso, que exige sempre ser integrado por uma “decisão”, não necessariamente por uma “intenção”; quer porque não existe nenhuma incompatibilidade lógica e dogmática entre o tentar cometer o facto doloso e a representação da realização apenas como possível, conformando-se o agente com ela; quer porque, decisivamente, estão nestes casos colocadas as mesmas exigências políticos-criminais, a mesma “dignidade punitiva” e a mesma “carência de pena” que justificam a punibilidade de qualquer tentativa [...]. (grifos do texto)
A tentativa na estrutura típica omissiva própria é vista como incabível pelos doutrinadores Bitencourt191 e Mirabete e Fabbrini, sendo que este justifica seu posicionamento dizendo que “não se exige um resultado naturalístico decorrente da omissão”192 e continua dizendo que “se o sujeito deixou escoar o momento em que deveria agir, ocorreu a consumação; [...].”193
Zaffaroni e Pierangeli194 defende a possibilidade de tentativa nos delitos omissivos próprios quando o agente deixa de prestar socorro a alguém que se encontra em perigo reversível, consumando-se o crime quando este perigo se torna irreversível. Segundo os autores, “os atos de tentativa existem desde que o agente, com o dolo de omitir o auxílio, realiza uma ação diferente, enquanto o delito está consumado quando o transcurso do tempo aumenta o perigo e diminui as possibilidades de auxiliar.”195
Conquanto à estrutura omissiva imprópria, os mesmos doutrinadores assumem incontestavelmente a possibilidade de cabimento da tentativa, devido ao fato de produzirem resultado naturalístico.196
Para Zaffaroni e Pierangeli, há tentativa na estrutura omissiva imprópria quando, presente o perigo ao bem jurídico, fazendo com que haja a posição de garante e a obrigação de agir, o agente realiza o primeiro ato contrário a tal obrigação.197 Os doutrinadores também entendem “quanto à desistência, esta é perfeitamente possível tanto na tentativa acabada como na inacabada.”198 O autor explica seu posicionamento alegando que “deve tratar-se de uma conduta que tenda a evitar o resultado, vale dizer, a desistência opera na tentativa que tem lugar dentro de uma estrutura típica omissiva de forma equivalente à desistência na tentativa acabada na estrutura ativa.”199
Por fim, o decreto-lei nº 3688, de 03 de outubro de 1941, intitulado “Lei das Contravenções Penais”, alega, em seu art. 4º, que “não é punível a tentativa da contravenção.” Desta feita, embora possível num plano prático, a tentativa das contravenções penais são impuníveis.